Opinião

Animais como responsáveis penais: a ursa Gaia e a morte do alpinista italiano

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  • é especialista em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerh) pós-graduada em Direitos Difusos e Coletivos pelo Curso Círculo de Estudos na Internet (CEI) membra da Comissão de Proteção Animal da Associação Brasileira de Advogados (ABA) advogada professora de Direito Civil e autora de obras jurídicas.

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19 de maio de 2023, 15h21

Em tempos nos quais ainda não há sequer consenso jurídico sobre a atribuição de direitos aos animais, apresenta-se como uma aberração jurídica a responsabilização penal dos animais, como se titulares de deveres jurídicos fossem. Por isso tanto causa estranheza a notícia, recentemente veiculada, a respeito da condenação de uma ursa à pena de morte na Itália, sob a acusação de ter dado causa à morte de um alpinista.

No último dia 5 de abril, Andrea Papi, 26 anos, saiu para correr na floresta de Monte Peller, na província autônoma de Trento, assim como o fazem tantos outros cidadãos italianos, tendo sido encontrado morto, horas depois, com profundas feridas no pescoço, braços e estômago. Os exames genéticos identificaram o urso pardo alpino JJ4, conhecido como Gaia, uma fêmea de 17 anos, como o responsável pelo ataque.

Com isso, o governador da província, Maurizio Fugatti  eleito pelo partido Liga de extrema direita —, emitiu a ordem de apreensão da ursa Gaia e determinou a execução da pena de morte do animal por eutanásia, com base nas diretrizes que instituíram o programa Life Ursus.

O programa, criado em 1999 e financiado pela União Europeia, tinha como escopo o repovoamento da população de ursos pardos alpinos, que já estavam quase extintos da Itália. As diretrizes do programa estabelecem que o urso responsável pela morte de uma pessoa humana deve ser sacrificado [1].

Acontece que a eutanásia ou a boa morte  do grego eu, bom e thanatos, morte  remete ao modo humanitário de matar o animal para alívio do sofrimento causado por uma patologia. Como a ursa Gaia é saudável, a Ordem dos Veterinários de Trento manifestou-se de forma contrária ao sacrifício do animal, afirmando oficialmente que nenhum veterinário trentino a sacrificará executando a decisão [2].

Se a eutanásia, do ponto de vista médico veterinário, não justifica a morte do animal, por ser exemplar saudável, seu sacrifício seria a execução de uma pena pela atribuição de responsabilidade penal? O operador do direito responderá de forma categoricamente negativa, afinal, mesmo que os ordenamentos jurídicos reconhecessem a personalidade dos animais, é certo que diante da inimputabilidade não é possível atribuir o resultado lesivo (morte do alpinista) a uma suposta conduta da ursa. Afinal, nem conduta no sentido técnico-jurídico há.

Entende-se por conduta a ação ou a omissão do agente que decorre da expressão de sua vontade individual: associa-se ao comportamento humano voluntário. Apenas será penalmente relevante a ação ou a omissão humana livre e conscientemente manifestadas, dirigidas por uma finalidade de realização de determinado objetivo. Mesmo que se defenda os direitos dos animais, isso não implica  em uma busca por harmonia sistemática do ordenamento jurídico  o necessário reconhecimento deles como responsáveis penais.

Isso acontece porque não é possível considerar que as ações dos animais se amoldem ao conceito penal de conduta, visto que a ciência não demonstrou, até o presente momento, que os animais sejam dotados de racionalidade tal qual a humana, que os possibilite direcionar suas ações ou omissões à determinada finalidade querida.

Mesmo se fosse possível amoldar a ação da ursa Gaia ao conceito penal de conduta, poder-se-ia questionar se ela não teria agido amparada pela excludente de ilicitude do estado de necessidade ou de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa. Afinal, ambientalistas afirmam que os animais apenas atacam quando se sentem ameaçados e que Gaia, provavelmente, agiu na defesa de seus três filhotes, que estavam consigo no momento do ataque.

Diversos questionamentos no âmbito do processo constitucional penal podem ser feitos. Se a ursa Gaia está sendo submetida a um julgamento, no mínimo deveria ter sido observado o devido processo legal e os direitos fundamentais da acusada. Sem se falar nos efeitos externos da decisão, já que Gaia foi capturada com seus três filhotes, que contam com um ano e quatro meses, e, por mais que tenham sido libertados, não terão condições de viver sem os cuidados de sua mãe, a considerar a pouca idade. É certo que o princípio da intranscendência da pena fora violado no caso concreto, já que a pena de morte da ursa, uma vez executada, passará da "pessoa" da condenada, implicando a provável morte de seus filhotes, que não sobreviverão em ambiente selvagem sem os cuidados maternos.

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Tantos são os debates éticos e jurídicos que a decisão de sacrificar o animal motivou inúmeros protestos na província de Treno, ocupando posição de destaque na imprensa italiana e sendo considerada bastante impopular [3]. Ao menos 80 associações ambientalistas colocaram-se na defesa do animal. Dentre elas, a associação animalista LAV recorreu da decisão administrativa do governador, que condenou sumariamente a ursa à pena de morte. O recurso foi provido pelo Tribunal Administrativo Regional, que suspendeu a execução da pena de morte até a prolação da decisão definitiva, que estabelecerá o futuro do animal. Enquanto isso, Gaia aguarda o julgamento do recurso recolhida no centro de detenção da reserva faunística Casteller, não lhe tendo sido garantido o direito de recorrer em liberdade.

De fato, parece absurdo discutir, atualmente, a atribuição de responsabilidade penal a um animal, o que não era em tempos medievais. Eugenio Raúl Zaffaroni [4], criminólogo e penalista argentino, narra que, na Idade Média, entre os séculos 13 e 17, eram comuns processos judiciais contra animais, como casos de processamento de porcos acusados de terem matado crianças. O autor sustenta que, desde aquela época, "[…] era reconhecida aos animais a condição de pessoa ou no mínimo de responsável" [5]. Desse modo se entendia, embora não fosse pacífico, que os animais tinham "um pouco de alma" [6], o que justificava o reconhecimento de sua responsabilidade e a consequente necessidade da imposição de uma sanção. As sanções eram das mais diversas, mas, em regra, se aplicava a pena de morte e a de excomunhão.

Tal crença acerca da condição de pessoa ou, ao menos, de responsável atribuída aos animais perdurou até o Iluminismo, quando ocorreu, para a doutrina, uma ruptura paradigmática, e os animais voltaram a ser considerados "coisas". Zaffaroni entende que não se pode afirmar que os animais medievais eram reconhecidos propriamente como pessoas, o que vigorava era uma relação ambivalente: o animal ora era pessoa, ora era coisa, não havendo uma uniformidade sistemática do direito.

Fato é que, de alguma forma, durante o período medieval, o ser humano reconheceu alguma dignidade nos animais porque se via, de certa maneira, como reflexo deles: "[…] mesmo que em boa parte tenha desejado se constituir a partir da diferença com o animal e da identificação com Deus, e até às vezes tenha se considerado Deus, não deixou de pensar que o animal o refletia" [7]. O surpreendente é constatar que, ao mesmo tempo que o ser humano entendia que os animais eram seres inferiores quando comparados à espécie humana, atribuiu-lhes virtudes e defeitos próprios e exclusivos dos seres humanos.

Mas tal perspectiva, na época medieval, não levou ao reconhecimento de nenhum direito, do ponto de vista moderno, aos animais. Segundo Zaffaroni, a ideia de direito subjetivo "[…] se formaliza perante o poder do Estado [apenas] no século 18". Assim, no sentido moderno, nem os animais, nem os próprios seres humanos tinham direitos. Ou seja, por mais que os animais pudessem responder criminalmente por suas "condutas", não há que se falar em direitos dos animais na Idade Média. Os animais tinham apenas deveres.

Para o penalista, os animais eram punidos como responsáveis por eventos danosos para que, com isso, não se precisasse buscar quem era o responsável humano por aquela conduta. No caso dos porcos que matavam crianças, por exemplo, era mais simples responsabilizar o porco do que os pais dessas vítimas, por eventual conduta negligente [8]. Com isso, os animais foram colocados na posição de "bodes expiatórios", ou seja, àquele sobre a qual recai a culpa [9] alheia.

A sociedade no Antigo Regime era extremamente estratificada. Assim, naquela época, fez-se do animal o bode expiatório, responsabilizando-o por determinados eventos, justamente para que os seres humanos, "poderosos ou dignos de lástima" [10]  em especial as classes dominantes: nobreza e clero  não precisassem ser responsabilizados. Seria um meio de alcançar os mesmos resultados práticos do perdão judicial [11], que é um instituto do ordenamento jurídico brasileiro vigente [12]. Com a punição dos animais, garantia-se, assim, um duplo efeito: além de não precisar punir o ser humano responsável, era garantida paz social, visto que prosperaria um sentimento de que justiça havia sido feita; afinal, alguém havia sido responsabilizado por aquela conduta ilegal ou simplesmente não ética.

Interessante notar a insuficiência de fundamentos jurídicos que possibilitasse a responsabilização dos animais na Idade Média. Como aponta Zaffaroni [13], no Antigo Regime, entendeu-se que, como os animais "[…] não podiam ser objeto de reprovação personalizada, da mesma forma que o ser humano pleno, pois não eram igualmente culpados", sua responsabilização deveria encontrar fundamento na ideia de perigo abstrato. "O poder punitivo inquisitorial é puro poder de polícia baseado na periculosidade". O modelo penal da Idade Média era fundado em modelos autoritários, era crime o que o soberano quisesse que crime fosse; por isso, não se deve empreender esforços buscando uma coerência no discurso, para justificar a punição dos animais naquele período.

Zaffaroni [14] aponta que, no Iluminismo (século 12 e 18), por sua vez, conforme foram sendo reconhecidos direitos no sentido moderno aos seres humanos, esses foram negados aos animais não humanos. Para isso, dirimindo a contradição eminente, precisou-se deixar de considerá-los responsáveis penais. Se fosse reconhecido que tinham "um pouco de alma", deveriam ser reconhecidos a eles direitos e deveres, e não apenas deveres. A não atribuição de deveres jurídicos aos animais perdura até os dias de hoje.

A condenação da ursa Gaia aproxima-se da ideia de arbítrio estatal. É certo que o animal não pode ser objeto de reprovação personalizada, como um ser humano pleno, já que não é igualmente culpado. Sua responsabilização, no caso, encontra fundamento na ideia de perigo abstrato. A condenação da ursa à pena de morte é manifestação de um poder punitivo inquisitorial  já que, além de tudo, não foi garantido o devido processo legal  como puro poder de polícia baseado na periculosidade.

Parece ser também o caso de Gaia estar sendo usada como bode expiatório para que não haja a responsabilização dos reais responsáveis pelo evento lesivo. Para o grupo Animalisti Italiani, a responsabilidade pelos ataques a humanos é do Estado, que não teria tomado as medidas necessárias para minimizar os riscos de interações perigosas entre ursos e seres humanos. Esse também é o entendimento da própria família da vítima, que clama por justiça, mas sustenta que os verdadeiros responsáveis pela morte de Andrea Papi são as autoridades públicas [15].

A responsabilidade do Estado estaria caracterizada já que as regras do projeto Life Ursus não teriam sido respeitadas, dentre as quais o uso de lixeiras na província com um sistema de fechamento a prova de ursos. Com a abundância de alimentos nos centros urbanos e por ocuparem o topo da cadeia alimentar, a população desses grandes predadores cresceu mais do que o esperado e os ursos aproximaram-se cada vez mais dos seres humanos.

O diretor científico do Fundo Mundial para a Natureza Itália, Marco Galaverni, disse ao Times que o governo adota uma postura dura em relação aos ataques de ursos para mostrar aos cidadãos que consegue gerenciar os incidentes. Só que, com essa lógica, ursos estão sendo punidos por coisas como chegar muito perto dos subúrbios da cidade [16].

Fala-se, ainda, em conduta omissiva do Estado ao não colocar placas na região da floresta, onde ocorreu o ataque, informando a existência de ursos na região, mesmo diante de milhares de pessoas que, assim como Andrea Papi, frequentam a floresta.

O destino da ursa Gaia ainda é incerto, mas o sentimento que paira é que talvez estejamos regredindo como sociedade, retornando aos tempos medievais, para debater a responsabilidade penal dos animais, ao invés de avançar na discussão dos reconhecimento dos direitos para além da humanidade.

Referências
BRASIL. Código Penal. ano. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 6 out. 2019.

DECISÃO de abater ursa que atacou e matou jovem na Itália divide o país. G1, São Paulo, 21 abri. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/ 2023/04/21/decisao-de-abater-ursa-que-atacou-e-matou-jovem-na-italia-divide-o-pais.ghtml. Acesso: 14 mai. 2023.

ITÁLIA condena urso à morte e ativistas pedem fim da pena para animais. VEJA, São Paulo, 29 jun. 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/italia-condena-urso-a-morte-e-ativistas-pedem-fim-da-pena-para-animais. Acesso: 14 mai. 2023.

ITÁLIA não sabe o que fazer com ursa que matou alpinista. FOLHA, São Pulo, 20 abri. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/04/italia-captura-ursa-que-matou-alpinista-e-nao-sabe-o-que-fazer-com-ela.shtml. Acesso: 14 mai. 2023.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 27.

 


[1] ITÁLIA não sabe o que fazer com ursa que matou alpinista. FOLHA, São Pulo, 20 abri. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/04/italia-captura-ursa-que-matou-alpinista-e-nao-sabe-o-que-fazer-com-ela.shtml. Acesso: 14 mai. 2023.

[2] DECISÃO de abater ursa que atacou e matou jovem na Itália divide o país. G1, São Paulo, 21 abri. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/04/21/decisao-de-abater-ursa-que-atacou-e-matou-jovem-na-italia-divide-o-pais.ghtml. Acesso: 14 mai. 2023.

[3] "Várias pesquisas apontam que uma média de 80 % dos italianos é contrária ao abatimento de Gaia e de outros ursos".  ITÁLIA não sabe o que fazer com ursa que matou alpinista. FOLHA, São Pulo, 20 abri. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/04/italia-captura-ursa-que-matou-alpinista-e-nao-sabe-o-que-fazer-com-ela.shtml. Acesso: 14 mai. 2023.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 23.

[5]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 27. 

[6]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 27.

[7]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 23.

[8]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 29.

[9]Sentido não técnico da palavra.

[10]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 38.

[11] O artigo 121, parágrafo 5º do Código Penal prevê que, no homicídio culposo, o juiz pode deixar de aplicar a pena se as consequências do crime atingirem o agente de tal forma que a sanção penal se torne desnecessária. BRASIL. Código Penal. ano. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 6 out. 2019.

[12] Por meio do instituto do perdão judicial, o pai, por exemplo, que, por uma conduta culposa, dá causa à morte de seu filho, pode ser perdoado judicialmente, por se considerar que as consequências de sua ação já representaram a verdadeira punição à sua conduta, sendo a pena considerada desnecessária.

[13] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 32.

[14] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Pachamama e o ser humano. Tradução de Javier Ignacio Vernal. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 32.

[15] ITÁLIA não sabe o que fazer com ursa que matou alpinista. FOLHA, São Pulo, 20 abri. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/04/italia-captura-ursa-que-matou-alpinista-e-nao-sabe-o-que-fazer-com-ela.shtml. Acesso: 14 mai. 2023.

[16] ITÁLIA condena urso à morte e ativistas pedem fim da pena para animais. VEJA, São Paulo, 29 jun. 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/italia-condena-urso-a-morte-e-ativistas-pedem-fim-da-pena-para-animais. Acesso: 14 mai. 2023.

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  • é especialista em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerh), pós-graduada em Direitos Difusos e Coletivos pelo Curso Círculo de Estudos na Internet (CEI), membra da Comissão de Proteção Animal da Associação Brasileira de Advogados (ABA), advogada, professora de Direito Civil e autora de obras jurídicas.

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