Opinião

Controvérsias da cassação de Deltan

Autor

  • Marcelo Aith

    é advogado latin legum magister (LLM) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa (IDP) especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca mestrando em Direito Penal pela PUC-SP e presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Econômico da Abracrim-SP.

17 de maio de 2023, 19h51

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral), por unanimidade de votos, indeferiu o registro de candidatura do ex-procurador da lava jato Deltan Martinazzo Dallagnol ao cargo de deputado federal pelo estado do Paraná nas eleições 2022.

A corte entendeu que Dallagnol incorreu na hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, "q", da LC 64/90, uma vez que ele teria antecipado seu pedido de exoneração do cargo de procurador da República para contornar a concreta possibilidade de que 15 procedimentos administrativos de natureza diversa fossem convertidos em processos administrativos disciplinares (PADs), o que o tornaria inelegível para as eleições de 2022.

O artigo 1º, I, q, da LC 64/90 estabelece que são inelegíveis, para qualquer cargo eletivo, pelo período de oito anos, os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário que, alternativamente, tenham sido aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, tenham perdido o cargo por sentença ou, ainda, tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar.

A controvérsia consiste em saber se o pedido de exoneração, durante os procedimentos preparatórios para um processo administrativo disciplinar (PAD), se enquadra na hipótese prevista no artigo 1°, I, q, da LC 64/90.

Há duas situações incontroversas: a) Deltan é ex-integrante dos quadros do Ministério Público, exonerado, a pedido, em 3/11/2021, conforme Portaria PGR/MPF nº 688, de 4 de novembro de 2021; b) quando houve sua exoneração a pedido, tinha contra ele 15 procedimentos diversos em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para apurar infrações funcionais.

Os tribunais superiores, em inúmeras oportunidades, têm entendido que são inadmissíveis as condutas que importem violação indireta à lei, frustrando sua aplicação. Mas, na hipótese dos autos, a conduta de Dallagnol se enquadra nas causas de inelegibilidade previstas na alínea "q"?

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O TSE apontou que "a somatória de cinco elementos, devidamente concatenados e contextualizados, revela de forma cristalina que o recorrido exonerou-se do cargo de procurador da República em 3/11/2021 com propósito de frustrar a incidência da inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90".

Para o TSE, os cinco elementos configuradores da fraude à lei podem ser assim resumidos: "(a) a anterior existência de dois processos administrativos disciplinares (PAD), com trânsito em julgado, nos quais o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) aplicou ao recorrido as penalidades de censura e advertência, que por sua vez eram aptas a caracterizar maus antecedentes para fins de imposição de sanções mais gravosas em procedimentos posteriores (arts. 239 e 241 da LC 75/93); (b) tramitavam contra o recorrido, no CNMP, 15 procedimentos administrativos de natureza diversa (tais como reclamações), os quais, depois de sua exoneração a pedido, foram arquivados, extintos ou paralisados. Há ainda de se considerar dois fatores: (b.1) conforme disposições constitucionais e legais, esses procedimentos poderiam vir a ser convertidos ou darem azo a processos administrativos disciplinares (PAD); (b.2) os fatos a princípio se enquadram em hipóteses legais de demissão por quebra do dever de sigilo, do decoro e pela prática de improbidade administrativa na Operação Lava Jato; (c) um dos procuradores da República que atuou com o recorrido na Operação Lava Jato sofreu penalidade de demissão em 18/10/2021, em processo administrativo disciplinar instaurado pelo CNMP a partir de anterior reclamação, por contratar e instalar outdoor em homenagem à força-tarefa, contendo fotografia na qual o recorrido também aparece (ato de improbidade administrativa); (d) logo em seguida, apenas 16 dias após esse fato, o candidato recorrido pediu sua exoneração do cargo de procurador da República; (e) a exoneração do recorrido em 3/11/2021, onze meses antes das Eleições 2022, causou espécie tanto pelos fatores acima como também porque, nos termos do art. 1º, II, j, da LC 64/90, os membros do Ministério Público apenas precisam se afastar do cargo faltando seis meses para o pleito, isto é, somente em 2/4/2022".

Não há dúvida da gravidade dos fatos narrados nos procedimentos preparatórios de PAD instaurados contra Deltan, que foram arquivados por conta do pedido de exoneração.

Dentre eles há que se destacar: a) Reclamação Disciplinar 1.00441.2020-90, instaurada para apurar novas mensagens divulgadas pelo periódico eletrônico The Intercept, que revelariam que Deltan e outros procuradores da operação "lava jato" teriam atuado de forma ilegal no compartilhamento de informações e em diligências com agências policiais estrangeiras; b) Reclamação Disciplinar 1.00099.2021-08, formulada pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, para apurar infrações funcionais do recorrido e de outros procuradores da operação "lava jato"; c) Sindicância 1.00145.2020-16, instaurada pelo Corregedor Nacional do CNMP, para apurar potencial violação ao dever de resguardo de informações e relações protegidas por sigilo profissional pelos coordenadores da operação "lava jato"; d) Reclamação Disciplinar 1.00232.2021-18, instaurada, para apurar ato de improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos, puníveis com demissão (art. 240, V, a e b, da LC 75/93), consistente na celebração, por Deltan, na condição de coordenador da operação "lava jato", de acordo de assunção de dívidas com a Petrobras cuja ilegalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 568.

Para o TSE, esse conjunto de elementos demonstra que Dallagnol estava plenamente ciente de que a instauração de novos processos administrativos disciplinares em seu desfavor, culminando em ulterior e eventual demissão, não era apenas uma hipótese remota, mas uma possibilidade concreta.

E concluiu o ministro relator: "Constata-se, assim, que o recorrido agiu para fraudar a lei, uma vez que praticou, de forma capciosa e deliberada, uma série de atos para obstar processos administrativos disciplinares contra si e, portanto, elidir a inelegibilidade. Dito de outro modo, o candidato, para impedir a aplicação da inelegibilidade do artigo 1º, I, q, da LC 64/90, antecipou sua exoneração em fraude à lei. É importante reiterar: a inelegibilidade em apreço aplica-se no caso dos autos não com base em hipótese não prevista na LC 64/90, o que não se admite na interpretação de disposições legais restritivas de direitos. Na verdade, o óbice incide porque o recorrido, em fraude à lei, utilizou-se de subterfúgio na tentativa de se esquivar dos termos da alínea q, vindo a se exonerar do cargo de procurador da República antes do início de processos administrativos envolvendo condutas na Operação Lava Jato".

Embora entenda que as condutas de Deltan sejam deploráveis diante do cargo que ocupava, bem como é inquestionável que ele tinha ciência dos riscos que corria com os procedimentos e por isso pediu exoneração, ouso divergir da decisão do Tribunal Superior Eleitoral.

A norma estampada na alínea "q" prevê como causa de inelegibilidade exonerar-se na constância de um procedimento administrativo disciplinar. Não há menção expressa em relação aos procedimentos preparatórios. Considerando a natureza sancionatória das causas de inelegibilidade, as regras de hermenêutica estabelecem que as interpretações dos dispositivos legais devem ser restritivas, não comportando, portanto, aplicações extensivas como sugerida pelo relator, que foi acompanhado pelos demais ministros. Dessa forma, penso que o TSE não laborou com o costumeiro acerto ao indeferir o registro do ex-procurador, embora, repita-se, os fatos narrados nas reclamações disciplinares são extremamente graves.

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    é advogado, Latin Legum Magister (LLM) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa (IDP), especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca, mestrando em Direito Penal pela PUC-SP e presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Econômico da Abracrim-SP.

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