Opinião

A esfera pública e o PL das Fake News: reflexões habermasianas

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14 de maio de 2023, 6h05

O Brasil encontra-se, atualmente, profundamente imerso numa discussão sobre a regulamentação das redes sociais. Isso deveria soar como algo positivo, mas não é. Ao menos não se o debate continuar centrado num espantalho do que é o PL 2.630/2020 (PL das Fake News).

Começarei pelo começo: deveria ser possível partir do princípio de que, como afirma mesmo a mais comezinha doutrina, nenhum direito é absoluto. A partir daí é discutir as melhores formas de criar parâmetros para o exercício seguro, livre, responsável e democrático de direitos na internet, e mais especificamente, nas redes sociais. A leitura dos artigos 1º, 3º e 4º do PL deveria ser suficiente para que isso fosse esclarecido. Esse é um desafio, aliás, com o qual todo país democrático do mundo irá se deparar em algum momento.

Mas o debate tomou um rumo radicalmente outro. Seus termos já estão completamente viciados. Não se trata mais de discutir formas de se exercer um direito, mas sim de supostos partidários da liberdade ou da censura. O texto do PL saiu de cena e uma discussão a respeito dos atores envolvidos na sua elaboração, votação e eventual análise judicial (STF) tomou o seu lugar.

O chamado PL das Fake News enceta uma metadiscussão. Ele, no intuito de criar melhores práticas nas redes sociais e, com isso, condições mais favoráveis a um debate público saudável, racional e inclusivo, vê-se confrontado com o fato de que nossas condições atuais não fomentam um debate público, saudável, racional e inclusivo dentro do qual o PL possa ser discutido.

Atitudes francamente repreensíveis como o envio massivo de mensagens alarmistas pelo Telegram aos seus usuários, veiculando ideias distorcidas ou simplesmente mentirosas acerca do PL das Fake News  a ensejar a pronta atuação do STF  apenas reforçam a necessidade de uma regulamentação das redes sociais. A retórica apocalíptica cai numa aporia: a ação fraudulenta contra a sua própria regulação apenas esgarça a necessidade da própria regulação [1].

Não há como deixar de lembrar, aqui, do filósofo e sociólogo Jürgen Habermas que, no início da década de 1960, escreveu uma monumental monografia intitulada Mudança Estrutural da Esfera Pública. Lá, o alemão toma a "esfera pública" como um tipo sociológico digno de estudo para analisar como, especialmente a partir do século 18, ela passou a abrigar debates políticos que tinham um medium específico: a discussão racional pública, plasmada no melhor argumento [2].

Convergiram, no século mencionado, condições favoráveis ao surgimento de um público de indivíduos que discutia questões referentes à dominação política com o intuito não de gerar um novo regime social, mas, antes, de mudar a base de legitimidade dessa dominação, antes calcada primordialmente por relações de poder entre estamentos. Trata-se de um motivo bastante weberiano: dominação legítima é aquela em que os donos do poder são capazes de oferecer boas razões para que os dominados concordem com a manutenção da ordem estabelecida [3].

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Bruno Spada/Câmara dos Deputados

É bem verdade que a teoria de Habermas se complexificou muito desde o Mudança Estrutural; ele mesmo o reconhece no Prefácio que escreveu em 1990 a uma nova edição do livro. Em parte, porque os grandes desafios eram, e ainda são, os de garantir boas condições na esfera pública no contexto da sociedade de massas. Por outro, porque em 1990 Habermas já havia atingido sua maturidade teórica, o que significa que houvera, àquela altura, fundamentado definitivamente sua teoria da sociedade sobre as bases de uma filosofia da linguagem.

Nada obstante, suas ideias permaneceram, em essência, as mesmas. O filósofo alemão sempre acreditou no potencial racional da linguagem e no potencial imanente da esfera pública para a auto-organização da sociedade. Na sociologia habermasiana madura, a comunicação é o fundamento da sociabilidade. Ser racional não significa tão somente possuir um conhecimento ou ser capaz de justificá-lo; antes, é necessário que o indivíduo seja capaz de aprender com os próprios fracassos e agir de acordo com aquilo que foi aprendido [4].

Mas a qualidade do resultado dos debates depende do preenchimento de certas "condições", e essa intuição fez com que Habermas levasse as questões prático-morais ao nível epistemológico das hard sciences: tal como essas, a produção de normas de convívio social passou a depender, também, da incolumidade de um certo procedimento. Não poderei discutir, aqui, a interessante questão de que as condições do discurso só podem ser validadas, no procedimentalismo habermasiano, pelo próprio discurso, com o que se cai num paradoxo [5].

O que me interessa é um ponto fundamental e frequentemente incompreendido acerca da teoria do discurso de Habermas, que é o conceito de consenso. Habermas é tido como um idealista por considerar que, nas condições complexas da sociedade atual, um consenso possa ser atingido. O que essa posição desconsidera, contudo, é que o consenso não é um objetivo, mas um pressuposto. Pouco importa se o consenso será de fato atingido, ou se será duradouro. O importante é que os partícipes do debate partam do princípio de que um consenso é possível, quiçá até desejável [6].

Para que a práxis comunicativa possa ser bem-sucedida é necessário que "os participantes da interação reivindiquem e aceitem mutuamente, para seus atos de fala, a inteligibilidade das orações que os constitui, a verdade do seu conteúdo proposicional, a correção normativa do proferimento em relação a um contexto de normas compartilhado e, enfim, a veracidade com que cada um expressa suas intenções" [7].

O grande o problema está no fato de que o PL das Fake News atua no plano do discurso, enquanto a crítica alarmista atua no plano do agente. O discurso é a forma reflexiva da ação comunicativa. É a ação refletindo internamente a respeito de suas próprias condições de sucesso. O PL, a meu ver, esforça-se para melhorar as condições dentro das quais os agentes possam se entender quanto às coisas do mundo (relação sujeito-objeto) e quanto às relações sociais (relação sujeito-sujeito) [8].

Dito de outra forma, não se pretende, numa espécie de dirigismo legal alheio ao liberalismo professado de forma tresloucada, de uma legislação que indique como o indivíduo deve agir, o que deve pensar e de que forma deve se relacionar com o mundo ou com os outros. Isso permanece uma tarefa do agente, ou, mais especificamente, dos agentes, já que o agir racional em perspectiva comunicativa não é tanto a ação de um indivíduo isolado quanto o conjunto da obra da teia de ações intersubjetivas.

Uma esfera pública saudável é criada por todo um conjunto de sujeitos que queira, sinceramente, se entender sobre algo, e que parta do princípio de que isso é possível, o que certamente é obstado quando a pressuposição é a de que meu interlocutor é um censor. A manutenção das condições atuais da esfera pública só pode conduzir a um caminho, que é o da reprodução patológica das relações sociais que já não mais caminham para um horizonte comum tido, também em comum, como possível, mas, antes, pela plena convicção de que o outro é alguém de quem devo desconfiar.

A esfera pública é, em Habermas, o locus em que se estruturam os processos dentro dos quais a sociedade alcança consciência comum a respeito de si mesma. A partir dessa autorreflexão, "por mais difusa e controversa que seja, a sociedade inteira pode distanciar-se normativamente de si mesma e reagir às percepções de crises (…)" [9].

No atual debate sobre o PL das Fake News, "liberdade" não é uma ideia, mas uma palavra de ordem. Platão alertou n'A República que a "ambição daquilo que a democracia assinala como o bem supremo [a liberdade, M.K.] (…)" poderia ser "a causa da sua dissolução" [10]. Cerca de dois milênios e meio depois, Max Horkheimer escreveu, em Eclipse da Razão, que "se é verdade que devemos saber o que é liberdade a fim de determinar quais partidos na história lutaram por ela, não é menos verdade que devemos conhecer o caráter desses partidos a fim de determinar o que é liberdade" [11].

Evidentemente, não se trata de enxergar a teoria do discurso de Habermas como panacéia. Temos boas razões para crer, com Lenio Streck, que o conceito de mundo da vida  herdado, com adaptações, da fenomenologia de Husserl  que serve de pano de fundo da ação comunicativa representa "uma espécie de fundamentum, um senso comum ideal(izado), com funções contrafatuais", que permanece aquém da dimensão hermenêutica [12].

Nada obstante, os méritos do procedimentalismo habermasiano, naquilo que interessa à presente discussão, são os de explicitar a comunicação como meio essencial da dialética "indivíduo-sociedade", bem como demonstrar que a forma de nos entendermos sobre algo é por vezes tão importante quanto o algo a respeito de que nos entendemos.

 


[1] Desde uma perspectiva mais luhmanniana, Douglas Elmauer demonstrou de forma exemplar como a passagem da diferenciação hierárquica para a funcional da sociedade gerou, na modernidade, ondas de inclusão, o que significa a crescente possibilidade de acesso aos recursos e prestações da sociedade a uma parcela cada vez maior da população. Cf. Douglas Elmauer, "The rise of modernity and the changing patterns of inclusion in the world Society". In: Contemporary Socio-Legal Studies: Empirical and Global Perspectives, Portal de Livros Abertos da USP: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2023, ed. Lucas Fucci Amato et. al., pp. 360-388.

[2] Cf. Jürgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações Sobre uma Categoria Da Sociedade Burguesa, trad. Denilson Luís Werle, São Paulo: UNESP, 2014.

[3] Por todos, Max Weber. "Os Três Tipos Puros de Dominação Legítima". In: Metodologia das Ciências Sociais, trad. Augustin Wernet, 5. Ed., São Paulo-Campinas: Cortez/UNICAMP, 2016, pp. 543-557.

[4] HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo, cit., v. I, p. 49.

[5] Cf. Gunther Teubner. Gunther. "The King's Many Bodies: The Self-Deconstruction of Law's Hierarchy", in: Law & Society Review, v. 31, n. 4, 1997, pp. 763-788.

[6] Christina W. Andrews. Emancipação e Legitimidade: Uma Introdução à Obra de Jürgen Habermas, São Paulo: Editora UNIFESP, 2011, p. 27; Jürgen Habermas. Teoria do Agir Comunicativo: Racionalidade da Ação e Racionalidade Social, trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Martins Fontes, v. I, 2012, pp. 49 e ss.

[7] Luiz Repa. Reconstrução e Emancipação: Método e Política em Jürgen Habermas, São Paulo: UNESP, 2021, p. 171.

[8] A sinceridade dos proferimentos relaciona-se à subjetividade e está sujeita não ao discurso, mas à crítica terapêutica.

[9] Jürgen Habermas. O Discurso Filosófico da Modernidade: Doze Lições, trad. Luiz Repa e Rodnei Nascimento, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2000, pp. 521-522.

[10] Platão. A República, 9ª Ed., trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 562a-563a, p.392-394

[11] Max Horkheimer. Eclipse da Razão, trad. Carlos Henrique Pissardo, São Paulo: UNESP, 2015, p. 185.

[12] Lenio Luiz Streck. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, 6. Ed., Saraiva, 2017, p. 132 e ss.

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