O triunfo da civilidade

A delicadeza da democracia e a clava forte da Justiça

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10 de maio de 2023, 8h14

*Artigo publicado no Anuário da Justiça Brasil 2023, que será lançado nesta quarta-feira, dia 10 de maio, no Supremo Tribunal Federal. A publicação ficará disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para acessar o site) a partir das 18h e já está à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar)

Em 12 de setembro de 2022, quando assumi a Presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, expressei o desejo de que todos vissem na solenidade uma celebração da democracia e do primado das liberdades.

Minhas primeiras palavras foram de reverência incondicional à autoridade suprema da Constituição e das leis da República; de crença inabalável na superioridade ética e política do Estado Democrático de Direito; de prevalência do princípio republicano e suas naturais derivações, com destaque para a essencial igualdade entre as pessoas; de estrita observância da laicidade do Estado brasileiro.

Essa a minha profissão de fé como magistrada, disse eu naquele momento. Tempos depois da minha posse como chefe do Poder Judiciário brasileiro, na abertura do Ano Judiciário de 2023, no mesmo plenário do Tribunal, totalmente reconstituído depois da invasão criminosa do dia 8 de janeiro, por uma turba insana movida pelo ódio e pela irracionalidade, reafirmo minha profissão de fé como juíza e a ela acresço, em reforço, o que erigi como norte da atual administração desta Casa: a proteção da jurisdição constitucional e da integridade do regime democrático, ou, mais simplesmente, a defesa, diuturna e intransigente, da Constituição e do Estado Democrático de Direito.

As instalações do Congresso Nacional e o Palácio do Planalto, igualmente sedes dos pilares da democracia brasileira, foram alvo de ataque golpista e ignóbil, dirigido com maior virulência contra esta Suprema Corte. Seguramente porque ela, ao fazer prevalecer em sua atuação jurisdicional a autoridade da Constituição, se contrapõe a toda sorte de pretensões autocráticas.

Possuídos de ódio irracional, quase patológico, os vândalos, com total desapreço pela res publica e imbuídos da ousadia da ignorância, destroçaram bens públicos sujeitos a proteção especial, como os tombados pelo patrimônio histórico, mobiliário, tapetes e obras de arte. Também em sanha deplorável estilhaçaram vidraças, espelhos e luminárias, quebraram painéis, bancadas e mármore, rasgaram retratos e livros, destruíram equipamentos digitais e de áudio e vídeo, câmeras, computadores e impressoras, engendrando um cenário de caos a provocar sentimento de profunda repulsa diante de tamanha indignidade.

Mas advirto. Não destruíram o espírito da democracia. Não foram e jamais serão capazes de subvertê-lo porque o sentimento de respeito pela ordem democrática continua e continuará a iluminar as mentes e os corações dos juízes desta Corte Suprema, que não hesitarão em fazer prevalecer sempre os fundamentos éticos e políticos que informam e dão sustentação ao Estado Democrático de Direito.

Que os inimigos da liberdade saibam que no solo sagrado deste Tribunal o regime democrático, permanentemente cultuado, permanece inabalável.

Frustrado restou o real objetivo dos que assaltaram as instituições democráticas: o ultraje só poderia resultar, como resultou, no enaltecimento da dignidade da Justiça, e no fortalecimento do valor insubstituível do princípio democrático, jamais no aviltamento do Poder Judiciário.

Intensa a repulsa e irrestrita a solidariedade de todos — autoridades e sociedade civil — já nas primeiras horas que se seguiram à violência criminosa, reforçando a união dos Poderes, de todo inabalados os valores superiores da Justiça e da democracia.

Moldada em cerâmica de Petrópolis, por Alfredo Ceschiatti, na escultura também vandalizada à frente da Corte, a Justiça sobreleva e perdura, pois, habita o espírito das instituições democráticas, e não a argamassa ou os tijolos de seus prédios.

As instalações físicas de um Tribunal podem até ser destruídas, mas a elas se sobrepõe — e se mantém incólume —, a instituição Poder Judiciário, em seu elevado mister de dizer e tornar efetivo o Direito, viabilizando a vida em sociedade, realizando o valor Justiça.

Não sabiam os agressores de 8 de janeiro que o prédio-sede do Supremo Tribunal Federal, na leveza de suas linhas e na transparência de seus vidros, enquanto símbolo da democracia constitucional é absolutamente intangível à ignorância crassa da força bruta.

De todo inútil o intento que perseguiam: a destruição do patrimônio físico da Suprema Corte que, na verdade, é patrimônio do povo brasileiro, é patrimônio da humanidade!

Para os que, consumidos pela fogueira da irracionalidade, tangidos pelo pérfido fanatismo ou dominados pelo fundamentalismo de sua triste visão de mundo, distorcem maliciosamente o conceito de liberdade e o próprio sentido das palavras, tão a gosto de espíritos totalitários, como na prática da novilíngua, atribuindo à destruição do patrimônio público conteúdo outro que não os de ignomínia e vergonha, digo novamente: é inútil, pois mesmo que desejassem destruir mil vezes o Supremo Tribunal Federal, subsistiria incólume o sentimento de reverência desta Casa pelo Estado Democrático de Direito, e mil e uma vezes reconstruiríamos seu prédio, como fizemos agora, sem interromper um só instante o exercício da jurisdição, graças à tenacidade dos que respeitam as instituições e amam a democracia.

Isso, entretanto, advirto, não desfigura a invasão criminosa nem atenua a gravidade do ataque covarde, nunca antes perpetrado contra as instalações desta Suprema Corte — seja ao longo do Império, seja na República.

Se alguma dúvida restasse sobre o sentido do que digo, assevero, em nome do Supremo Tribunal Federal, que, uma vez erguida da justiça a clava forte sobre a violência cometida em 8 de janeiro, os que a conceberam, os que a praticaram, os que a insuflaram e os que a financiaram serão responsabilizados com o rigor da lei nas diferentes esferas. Só assim estará reafirmada a ordem constitucional, com a observância ao devido processo legal e resguardadas, a todos os envolvidos, as garantias do contraditório e da ampla defesa, como exige e prevê o processo penal de índole democrática.

O busto de Rui Barbosa, o patrono dos advogados brasileiros, de relevância ímpar para esta Casa, vilipendiado neste ano de 2023 em que se rememora o centésimo aniversário de sua morte, voltou a repousar altaneiro no hall, em novo pedestal, sem a restauração do dano sofrido, cicatriz estampada no bronze como lembrança às presentes e futuras gerações de que nem os vultos ilustres desta Nação, como o grande Rui, estão imunes à malta irresponsável, em evidente demonstração de que a ignorância — que nada reconhece, nada respeita, nada provê e se volta, como algoz, em seu vazio substancial, até contra os que buscam iluminá-la —, nada mais é do que terreno infértil, incapaz de germinar as sementes de que florescem os valores fundamentais da liberdade e da democracia.

O Estado Democrático de Direito, cerne da República, com suas ideias nucleares de liberdade e responsabilidade, nunca é uma obra completa. E a democracia, conquista diária e permanente que se aperfeiçoa por meio da evolução do Estado Democrático de Direito, a cada dia desafiado, a democracia, por ser plural, pressupõe diálogo constante e tolerância com as diferenças, em convivência pautada pelos mecanismos constitucionais de promoção, nas arenas política e social, de amplo debate para a formação de possíveis consensos, garantido o respeito às regras do jogo e assegurado a todos os cidadãos um núcleo essencial de direitos e garantias que não podem ser transgredidos nem ignorados.

Tempos verdadeiramente perturbadores de maniqueísmos e deformações inaceitáveis, que tantas divisões impuseram à comunhão nacional, exigem cuidado, atenção, resistência e resiliência das instituições, em especial do Poder Judiciário, objeto de constantes ataques.

Sempre oportuno enfatizar que o STF — guardião da Constituição não porque se arrogue este papel, e sim por expressa delegação da Constituinte (CF art. 102) —, detém, em matéria de interpretação constitucional e considerados os objetivos precípuos do Direito de pacificação social e segurança jurídica, o monopólio da última palavra, como há mais de um século já o proclamava o grande Rui, como Senador da República, em histórico debate parlamentar com Pinheiro Machado.

Atua, assim, esta Corte Suprema como órgão de encerramento das controvérsias constitucionais, exercendo a relevantíssima função contramajoritária, que significa a salvaguarda dos direitos fundamentais, notadamente na proteção das minorias, em especial as mais vulneráveis.

Os juízes e juízas brasileiros honram a toga que vestem e, mercê da sua independência e comprometimento com as instituições, são garantes da democracia em nosso país e da preservação da supremacia da Constituição da República.

Um Brasil inclusivo e igualitário, de ordem, progresso — está na nossa bandeira — e de paz, uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia e comprometida com a solução pacífica das controvérsias, como orienta o preâmbulo da Constituição Cidadã de 1988, é o que almejamos.

Vamos caminhar com serenidade e equilíbrio para cumprir os objetivos traçados na Carta Magna. Olhos postos na entrega de prestação jurisdicional efetiva e qualificada, na coesão do Poder Judiciário, no respeito e harmonia entre os Poderes, na união e fortalecimento das instituições e na defesa do Estado Democrático de Direito consagrado no artigo primeiro da nossa Constituição!

* Condensado do discurso de Abertura do Ano Judiciário de 2023

Lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2023
Quando:
Quarta-feira, 10 de maio, às 18h
Onde: Salão Branco do Supremo Tribunal Federal. Praça dos Três Poderes, Edifício-sede, Brasília – DF
Versão digital (a partir do dia 10 de maio): http://anuario.conjur.com.br (gratuita)
Versão impressa: Livraria ConJur (R$ 40)

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