O Poder Judiciário do Rio de Janeiro deu um grande passo tanto no reconhecimento do dever da saúde pública de aderir aos padrões e diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) quanto no reconhecimento do direito do paciente adulto e capaz de ser protagonista do seu próprio tratamento médico.
Em 26 de abril de 2023, o juiz federal dr. Mario Victor Braga Pereira Francisco de Souza, da 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro, julgou parcialmente procedente o pedido formulado pelo Ministério Público Federal e determinou que a União coordene a implantação do programa de gerenciamento do sangue do paciente (PBM — sigla em inglês para patient blood management) nos hospitais federais do estado do Rio e que sejam feitos ajustes nos termos de consentimento hospitalares.Em caráter liminar, a referida decisão determinou que os hospitais federais adequem seus protocolos para tratar os pacientes à luz do PBM no pré, intra e pós-operatório, viabilizem a transferência do paciente quando não for possível fazer o tratamento no próprio hospital e adequem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) "para pacientes que se recusam a transfundir, com campo específico de opção de recusa, que viabilize ao paciente a manifestação do motivo, sendo este campo de motivo de preenchimento facultativo pelo paciente".
O que muito se via era a obrigatoriedade de pacientes assinarem o Termo de Consentimento (TCLE) sem poder externar a sua recusa em se submeter a uma transfusão de sangue, muito menos manifestar a escolha de seu tratamento médico.
A ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro que manifestou notável sensibilidade com os direitos humanos da minoria de cidadãos brasileiros Testemunhas de Jeová, após apurar que essa minoria tem sofrido discriminação no seu atendimento médico em razão de optarem por tratamentos médicos sem transfusão de sangue.
Embora tendo pano de fundo a realidade dessa minoria, essa decisão é uma conquista para a saúde pública brasileira, visto que é a primeira no Brasil que determina que o governo brasileiro tome medidas efetivas para se adequar à diretriz mundial da Organização Mundial de Saúde, publicada em 2021, que recomenda em caráter de urgência a implementação do programa de gerenciamento do sangue do próprio paciente, em razão das suas vantagens clínicas, éticas e econômicas (disponível aqui).
Nas últimas décadas, juntamente com uma maior consciência dos sérios riscos da transfusão de sangue alogênico (de terceiros), os pesquisadores descobriram que a prevenção e o controle da anemia, juntamente com a minimização ou prevenção da perda de sangue do próprio paciente, leva a resultados clínicos superiores. Em vista disso, a OMS tem instado aos governos de todos os países, incluindo países de média e baixa renda, a usar métodos para conservar e administrar o sangue do próprio paciente, usando uma abordagem conhecida coletivamente como gerenciamento do sangue do próprio paciente (PBM — sigla em inglês).
A sentença prolatada pelo magistrado da 4ª Vara Federal também está em harmonia com o entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal, manifestado no julgamento da ADI 6.341 MC, no sentido de que "os entes públicos devem aderir às diretrizes da Organização Mundial da Saúde, não apenas por serem elas obrigatórias nos termos do Artigo 22 da Constituição da Organização Mundial da Saúde (Decreto 26.042, de 17 de dezembro de 1948), mas sobretudo porque contam com a expertise necessária para dar plena eficácia ao direito à saúde' e que a atuação dos entes federativos 'deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde".
Portanto, a inédita decisão exarada pela Justiça Federal do Rio de Janeiro beneficia toda a coletividade fluminense à medida que reafirma a autonomia de todos os pacientes e determina que a saúde pública adote os mesmos standards reconhecidos pela OMS.