Opinião

Gratuidade de justiça precisa ser pensada numa perspectiva política mais ampla

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8 de maio de 2023, 16h19

A Corte Especial do STJ afetou recentemente os Recursos Especiais nº 1.988.686, 1.988.687 e 1.988.697 para serem julgados pelo rito do repetitivos sob o Tema nº 1.178. O propósito do julgamento é analisar a adoção de critérios utilizados na apreciação de pedidos de gratuidade de Justiça.

A questão é relevante por trazer à corte uma matéria que normalmente não costuma ser apreciada. Diversos são os precedentes, das várias turmas do STJ, no sentido de que os tribunais estaduais e federais são soberanos na análise dos critérios para concessão do benefício da assistência judiciária gratuita, sejam eles objetivos (como a renda mensal) ou subjetivos (como as provas produzidas no caso concreto).

Assim, é possível perceber que a matéria por anos pode ter ficado embarreirada da análise do STJ em razão da jurisprudência defensiva da corte, sem que seja sequer possível estimar quantas pessoas efetivamente ficaram sem acesso à prestação jurisdicional por não terem a possibilidade de arcarem com as custas judiciais.

Uma outra questão que não diz respeito propriamente ao mérito, mas também chama a atenção, é que essa discussão, caso já estivesse vigente o requisito da relevância, muito provavelmente também não seria apreciada. Após a aprovação da emenda constitucional que instituiu a relevância como requisito adicional para inauguração da instância especial, o STJ decidiu, administrativamente, que o requisito iria aguardar a regulamentação por lei específica, justamente para que os critérios e procedimentos fiquem claros a todas as partes.

Mas, na redação atual do dispositivo legal, a discussão da gratuidade de justiça não iria cumprir nenhum dos requisitos indicados no artigo 105, §3º da Constituição. Ao contrário: a redação que foi incorporada ao texto constitucional indica que a relevância também é demonstrada pelo critério econômico, já que são consideradas relevantes as causas que superem os 500 salários mínimos. Desse modo, o acesso à justiça para discutir justamente as repercussões do critério econômico, para muitas causas, sequer chegaria a ser analisado pela corte.

Tais considerações iniciais mostram que questões de absoluta relevância para o sistema de justiça como um todo (como se demonstra pela discussão dos critérios objetivos da gratuidade de justiça) tendem a demorar para serem analisadas pelo STJ, quando chegam a ser analisadas. Seja em razão da jurisprudência defensiva, seja em razão dos novos requisitos instituídos para diminuir a quantidade de recursos, fato é que a crise quantitativa de processos nas cortes superiores está criando também uma barreira de acesso material, na medida em que matérias de suma importância que são debatidas no âmbito infraconstitucional tendem a ficar limitadas às decisões de primeira e segunda instância.

E a verdade é que a questão da gratuidade de justiça e da demonstração de seus requisitos objetivos traz reflexões muito importantes.

Dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) mostram que, em 2022, a média de renda dos trabalhadores brasileiros era de R$ 2.715. Em 2021, pesquisa conduzida pelo IBGE mostrou que 90% dos brasileiros ganham menos de R$ 3.500. Ou seja, vivemos em país de profunda desigualdade social, no qual a maior parte da população ganha até quatro salários mínimos, quando muito.

Assim, se uma pessoa dentro desses 90% da população brasileira ajuizar uma ação indenizatória perante o TJ-SP no valor de R$ 20 mil (o que é um valor relativamente comum de danos materiais e morais para ações em matéria de consumo, por exemplo), ela terá que pagar 1% do valor da causa a título de custas processuais. Isso quer dizer que ela terá que dispor de R$ 200 para poder litigar, valor que corresponde a mais de 5% da sua renda mensal.

Apesar de ser um percentual nominalmente pequeno, em um contexto de crise, é inequívoco que litigar no Brasil se torna extremamente custoso para uma parcela muito significativa da população.

Se incluirmos nessa conta as despesas para citação (que no TJ-SP são de R$ 102,78 por ato), e eventual interposição de recurso de apelação (4% do valor da causa, devidamente atualizado) o valor do litígio fica muito maior: de R$ 200, o custo da ação passa a ser de, pelo menos, R$ 1.102,78, que não só representa um valor superior ao valor de uma cesta básica, como também mais de 30% da renda mensal da pessoa.

Incluindo as despesas com honorários advocatícios (que só de sucumbência podem chegar em 20% do valor atualizado da causa), a renda mensal média da população se torna completamente insuficiente para o pagamento das despesas, pois além dos R$ 1.102,78, a parte sucumbente terá que pagar, no mínimo, R$ 4.000 de honorários.

Ou seja, para o ajuizamento de uma única ação, a renda mensal de 90% da população brasileira não é suficiente para litigar.

Um dos casos que foi afetado pelo STJ, trata de uma situação muito próxima: um aposentado, que ganha três salários mínimos de aposentadoria, pediu o benefício da gratuidade de justiça. É inequívoco que o litígio poderia custar uma parcela significativa de sua renda, mas também se percebe que o valor em questão autorizaria o benefício para a maioria quase que absoluta da população brasileira.

Desse modo, se a preocupação com o sistema de justiça efetivamente envolve o acesso da população ao poder judiciário, percebe-se que há uma grande discrepância entre o valor das custas processuais em comparação com a renda mensal das pessoas. Frise-se: o exemplo acima considera uma renda que é representativa de mais de 90% da população brasileira, o que significa dizer que deveria se pensar uma política de acesso à justiça para envolver a maioria quase absoluta do país.

Outra dificuldade do critério objetivo de renda mensal é que, ao considerá-lo como válido, deverá o STJ também estabelecer parâmetros razoáveis para que ele seja implementado. Quantos salários mínimos, então, podem caracterizar a pessoa como hipossuficiente?

Ainda, percebe-se que dificuldade do critério objetivo é justamente que o valor fixo da renda mensal tem nuances que não estão inseridas somente no valor nominal e no percentual que o litígio representa naquela renda mensal. Muitas mulheres, por exemplo, usam essa renda mensal para sustentar famílias inteiras, o que torna ainda mais agressivo os custos para acessar o poder judiciário.

Por outro lado, o critério objetivo dá uma importante baliza para os pedidos de gratuidade de justiça nos diversos litígios, pois é comum ações, ajuizadas principalmente contra grandes empresas, terem pedidos de gratuidade em ações com valores verdadeiramente aventureiros, pois o autor tem a garantia de que, no julgamento de improcedência, ele não terá custo individual algum.

A gratuidade de justiça precisa, portanto, ser pensada numa perspectiva política mais ampla, de acesso à justiça, independentemente da natureza da ação e do polo passivo, justamente para que pessoas que percebam uma renda maior que a média possam suportar, coletivamente, os custos do processo para aqueles que têm uma renda menor.

Além disso, o critério objetivo deve ser apenas mais uma das balizas para a análise do benefício da gratuidade, que ainda deverá ser analisada caso a caso pelos tribunais locais para avaliar qual o impacto daquele custo do processo na realidade da pessoa.

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