Uma sentença judicial clara dispensa interpretação?
6 de maio de 2023, 8h00
Prolegômeno 1: no centro da discussão, um tema de filosofia no direito há muito trabalhado pelo professor Lenio Streck: estamos condenados a interpretar.
Prolegômeno 2: no debate, a interpretação do sentido e alcance da decisão judicial no processo do trabalho; em alguma medida, uma justa homenagem ao recente dia do trabalhador.
Há 100 anos, Carlos Maximiliano publicava uma obra dedicada à interpretação do fenômeno jurídico. Em Hermenêutica e Aplicação do Direito [1], criticava o vetusto axioma que reinou absoluto por meio século, qual seja, o dogma segundo o qual a clareza do texto dispensaria a interpretação — "in claris cessat interpretatio".
Embora tratasse, na altura, da posição do exegeta diante de um texto normativo (fosse o texto claro ou obscuro), a reflexão tem aderência ao propósito das reflexões aqui sucedidas, porque, julgamos, não parece sustentável afirmar, cientificamente, que uma decisão judicial "clara" dispense um processo compreensivo/interpretativo.
A noção de plenitude do texto remonta ao positivismo primevo [2]. A escola da exegese tinha por premissa amalgamar o direito às proposições gerais das leis, enquanto abstrações a respeito do que o direito deveria ser. Tal corrente legitimou o mito do "juiz boca da lei", por meio do qual o Judiciário atuaria como despachante da vontade geral ou da lei natural, por sua vez perfeitamente representadas no texto legal.
Nesta perspectiva, a linguagem se apresentava como uma ferramenta a serviço de uma racionalidade assujeitadora. Entre o sujeito e o objeto estaria a linguagem, como um instrumento designativo neutro, enquanto a tarefa da teoria do direito se resumiria a uma ciência da legislação, tal como propunha Jeremy Bentham.
Contudo, até mesmo os positivistas pós-exegéticos (como Kelsen e Hart) reconheciam a inevitabilidade do componente subjetivo na dicção do direito, reconhecendo, portanto, o papel discricionário do julgador [3].
Nesse contexto, podemos afirmar que, apesar de o sujeito moderno rejeitar a ideia de que as coisas possuem uma essência (como na metafísica clássica), não há uma superação do esquema sujeito-objeto. A verdade ainda depende de corresponder com algo ideal, objetivo e alcançável mediante o uso do instrumento-linguagem. Neste sentido, as metafísicas têm diferentes abordagens, mas se aproximam: a linguagem deve ser boa o suficiente para corresponder à essência de um objeto (adeaquatio intellectum et rei) ou é boa o suficiente para articular o ideal instituído pela autoridade (adeaquatio rei et intellectum).
O século 20, contudo, testemunhou uma virada no âmbito da filosofia: o giro ontológico-linguístico [4], que libertou a filosofia de um fundamento último e a introduziu ao mundo prático.
Wittgenstein e Heidegger foram corifeus desta virada, a partir da qual não há como se pretender alcançar um ponto arquimediano para a interpretação. Em outras e poucas palavras, a linguagem não pode mais ser utilizada como ferramenta disponível ao intérprete, pois a relação do sujeito não se dá com algo externo, mas sempre consigo mesmo, visto que a linguagem intermedeia a existência e qualquer interação humana. É a linguagem que abre o horizonte do intérprete, legitima e, concomitantemente, limita a interpretação.
Daí a famosa passagem de Gadamer: "ser que pode ser compreendido é linguagem" [5]. O autor rejeita a ideia de interpretação meramente reprodutora do sentido do texto. É na fusão de horizontes (texto-intérprete) que o sujeito, consciente da diferença ontológica e a distância histórica, atribui sentido ao texto (Sinngebung), jamais dele se apropriando. Trata-se da noção de Applicatio, segundo a qual a interpretação não ocorre — e nem pode ocorrer — em etapas, como se fosse possível primeiro conhecer, para então interpretar e só depois aplicar [6].
Dizer que um texto é claro e, por isso, prescinde de interpretação é se render ao senso comum teórico [7], replicando teses abstratas sem a devida atenção aos argumentos que a amparam. E isso ocorre pela falta da recepção paradigmática da filosofia pela teoria do direito, sem responsabilidade epistêmica, política e jurídica [8].
Significa dizer que o sentido não mora no texto; o texto não existe na sua "textitude", como costuma nos lembrar o professor Lenio Streck [9]. Tampouco é possível dizer que habita na subjetividade do intérprete, porque o homem não é senhor dos sentidos; pensar assim é prender-se ao paradigma da filosofia da consciência e suas vulgatas, já ultrapassado pela invasão da linguagem no âmbito da filosofia.
Se o paradigma contemporâneo da filosofia assenta na linguagem — e o fenômeno jurídico é caudatário do manancial filosófico —, por mais escorreita que seja a linguagem, estamos condenados a interpretar (Streck). "Nítida ou obscura a norma, o que lhe empresta elastério, alcance, dutilidade, é a interpretação", porque até mesmo o silêncio deve ser interpretado [10].
Em que pese essas premissas da filosofia contemporânea — que impactam diretamente na compreensão do fenômeno jurídico, algumas práticas dos tribunais ainda parecem reféns de paradigmas ultrapassados.
No âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, ao tratar da interpretação do sentido e alcance do título executivo, a Orientação Jurisprudencial nº 123 da Subseção de Dissídios Individuais 2 dispõe que "o acolhimento da ação rescisória calcada em ofensa à coisa julgada supõe dissonância patente entre as decisões exeqüenda e rescindenda, o que não se verifica quando se faz necessária a interpretação do título executivo judicial para se concluir pela lesão à coisa julgada".
Nos julgados que deram origem ao verbete, a justificação é fundamentalmente a mesma, variando nas expressões alusivas à clareza ou obscuridade do título executivo: apenas há ofensa constitucional em caso de dissonância patente — inequívoca, aberrante, nítida, evidente, gritante – entre a decisão exequenda e rescindenda.
Essa mesma orientação jurisprudencial é utilizada, por analogia, como obstáculo ao recurso de revista interposto por ofensa constitucional, quando a parte aspira debater, na fase de execução trabalhista, o sentido da coisa julgada. O fundamento é simples: se for necessário interpretar o alcance do título executivo, não se divisa ofensa à coisa julgada. E a mesma ratio é utilizada nos casos de ação rescisória; se for preciso interpretar, o corte rescisório é inviável.
Contudo, não logramos encontrar uma só decisão, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, que tenha acolhido a pretensão de ofensa à coisa julgada. Como resposta, o fundamento é contumaz: a necessidade de interpretar o alcance da sentença ou acórdão, o que inviabiliza a alegada violação ao artigo 5º, XXXVI da CF/88. Se o tribunal, como regra, denega o recurso de revista sob a justificativa da (necessária) interpretação, acaba por reconhecer a inexorabilidade do processo interpretativo.
Inúmeras questões se podem colocar: o que seria uma dissonância patente? Um título judicial que defere horas extras com reflexos em repousos, cuja liquidação não contempla reflexos em feriados, é um título claro ou obscuro? O conceito de repouso abrange o feriado? Ou uma sentença que define a reintegração do empregado "nas mesmas condições" anteriores à dissolução do contrato, mas seu cumprimento é questionado porque o trabalhador deixa de exercer atividade insalubre, enquadra-se "nas mesmas condições"? Trata-se de uma reintegração nos moldes determinados? Ou a condição mais benéfica (salubre), embora financeiramente prejudicial, viola a coisa julgada?
Como visto, "a verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a, pressupõe o uso preliminar da mesma" [11]. Por mais translúcida e rigorosa a linguagem empregada no texto, o discurso jurídico, como qualquer outro objeto, não carrega consigo a plenitude dos sentidos, dispensando a (inter)mediação do sujeito. Não é possível demarcar cientificamente uma linha divisória entre os casos de violação patente à coisa julgada e as hipóteses de violação decorrente da interpretação do título executivo.
Quando introduziu as súmulas no direito brasileiro em 1963, Victor Nunes Leal não pretendeu emprestar-lhe vocação normativa, porque visou criar apenas um método de trabalho, compilando os julgamentos do STF no mesmo sentido, com a advertência de que não seria recomendável a interpretação dos verbetes. Dizia textualmente: "o que se interpreta é a norma da lei ou do regulamento, e a Súmula é o resultado dessa interpretação, realizada pelo Supremo Tribunal. (…) A Súmula não é norma autônoma, não é lei, é uma síntese de jurisprudência (…). Em alguns casos, interpretar a Súmula é fazer interpretação de interpretação. Voltaríamos à insegurança que a Súmula quis remediar" [12].
Por isso, é sempre problemática a tentativa de fornecer respostas antes das perguntas ou acreditar num objeto plenipotenciário, claro e indene de interpretação.
Marilena Chauí, por exemplo, diz que uma montanha é só uma montanha; quando a miramos, concluímos que ela é real; até aqui, nenhuma dissonância patente. Mas para o politeísta, ela pode ser a morada dos deuses; para o capitalista que descobre uma jazida de minério, uma propriedade privada; se for explorada, é capital; para o trabalhador, o local de labor; para o pintor, a montanha é campo de visibilidade [13].
Se a clareza do objeto não dispensa o sujeito — e tampouco o intérprete é dono dos sentidos, as leis, sentenças, acórdãos e correlatos são textos que dependem da interpretação, sempre constrangida (limitada) pelo conceito de linguagem pública e intersubjetiva.
Por isso, é impossível trabalhar qualquer texto sem o elemento hermenêutico. No contexto aqui defendido, a hermenêutica se dá entre a subjetividade e a objetividade (Zwischen), o que ampara a Crítica Hermenêutica do Direito edificada pelo professor Lenio Streck, cuja matriz teórica, assumindo a responsabilidade política para tratar do direito, recepciona paradigmaticamente a filosofia. Neste sentido, a CHD é interpretativista [14], rejeita o criterialismo (caro ao positivismo), sem cair em relativismo [15].
Em suma, nem o realismo filosófico (que pressupunha um mundo dado, com objetos que teriam uma essência, bastando ao sujeito a tentativa de "extrair" os respectivos sentidos), nem o idealismo filosófico (que pressupunha a verdade/a realidade na razão do intérprete). Não há "a coisa-em-si" e a "coisa-para-nós", mas sim "um entrelaçamento do físico-material e da significação, a unidade de um ser e de seu sentido, fazendo com que aquilo que chamamos de coisa seja sempre um campo significativo" [16] — e, acrescentamos, interpretativo.
Por isso, concluímos, é filosoficamente impossível pretender eliminar o processo interpretativo, traçando uma linha demarcatória entre o que seria uma dissonância patente e uma divergência interpretativa ao título executivo.
Numa palavra final — e com toda lhaneza: a OJ 123 da SbDI-2 do TST é anti-hermenêutica.
[1] A obra foi escrita em 1924, cf. prefácio. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
[2] Há vários positivismos e o assunto pode ser aprofundado em STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 263-327.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 287.
[4] Cf. Verbete específico no Dicionário de Hermenêutica. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. Ver também OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2015.
[5] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços Fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meuer, São Paulo: Vozes, 1999. p. 687.
[6] Contrariamente à pretensa cisão dos momentos interpretativos, conferir Streck no verbete "Applicatio": STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 21-23.
[7] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito I. Porto Alegre: Fabris, 1994.
[8] Especificamente no caso do livre convencimento, cf. STRECK, Lenio; JUNG, Luã Nogueira. Livre convencimento judicial e verdade: crítica hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán. Novos Estudos Jurídicos, [S. l.], v. 27, n. 1, p. 2–21, 2022. DOI: 10.14210/nej.v27n1.p2-21. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/18696. Acesso em: 29 abr. 2023.
[9] Conferir verbete "Texto e norma" in STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 421.
[10] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 8-29.
[11] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 30.
[12] LEAL, Victor Nunes – Passado e futuro da Súmula do STF. Revista de Direito Administrativo (jul./set., Rio de Janeiro, 1981. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43387/42051 p. 11-13.
[13] CHAUI, Marilena. O que é ideologia. 35ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 17.
[14] A CHD abraça a angústia de interpretar corretamente em direito. Assume a responsabilidade de estabelecer critérios que permitam a análise e a classificação de uma interpretação como legítima ou ilegítima, não com a pretensão de adiantar os sentidos na interpretação, o que é filosoficamente impossível. Há criteriologia, não criterialismo (diferença propriamente abordada pelos colegas Vinícius Quarelli e Luísa Giuliani Bernsts em https://www.conjur.com.br/2023-abr-15/diario-classe-teoria-decisao-principios-critica-hermeneutica-direito), e disso depende a democracia, pois, contemporaneamente, democracia é critério, accountabillity, na medida em que não existe linguagem privada e deve haver um modo de constatar a veracidade/validade de qualquer determinação em direito. Cf. verbete "Autonomia do direito" no Dicionário de Hermenêutica. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020.
[15] Cf. verbete "Cognitivismo e não cognitivismo moral" no Dicionário de Hermenêutica. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020.
[16] CHAUI, Marilena. O que é ideologia. 35ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 18.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!