Opinião

Lei 14.133/2021: "neofobia" e improbidade administrativa

Autor

  • é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

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5 de maio de 2023, 15h26

Tema que deverá abarrotar tribunais pelo país é o da falta de aplicação da nova Lei de Licitações e a configuração da improbidade administrativa decorrente da “neofobia” (aversão injustificada e preguiçosa de aplicação da nova lei).

A ausência de planejamento (citado em doze oportunidades pela nova lei) já foi objeto de decisão pelo Poder Judiciário e configuração da improbidade administrativa pelo e. TJ-SP. Assim:

 

“Ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA RESSARCIMENTO ATO DE AGENTE MUNICIPAL DANO DO ERÁRIO COMPROVAÇÃO IRREGULARIDADE NÃO SUPERÁVEL CARACTERIZAÇÃO DE IMPROBIDADE (ART. 10 DA LEI Nº 8.429/92). REPARAÇÃO RECONHECIDA. A realização de obra não concluída ao final da gestão, implica insuficiência de planejamento administrativo. A causa do dano ao erário constatada propicia reparação. Com a consideração decorrente do previsto pelo parágrafo único, do art. 12, da Lei da Improbidade, é possível restringir e dosar penas, resultando na cominação apenas da reparação. Sucumbência recíproca. Recurso provido em parte.” (Apelação 0004974-79.2011.8.26.0104, relator: Danilo Panizza, Comarca de Cafelândia, Câmara de Direito Público, data de julgamento: 27/1/2015, data de publicação: 29/1/2015 – grifos nossos).

No precedente indicado, a improbidade decorre da falta de planejamento elementar que fez com que a obra não fosse concluída dentro do período do mandato.

A dúvida que surge é se a necessidade de dolo inserida com a reforma da Lei de Improbidade descaracterizaria a falta de aplicação da nova lei de licitações (neofobia) como ato passível de configuração como improbidade.

Pensamos que não. Neofobia é improbidade dolosa de ressarcimento imprescritível.

A nova Lei de Licitações teve seu prazo de vigência obrigatória prorrogado pela medida provisória nº 1.167/2023 para 30 de dezembro de 2023 e não mais 1º de abril de 2023.

A medida provisória, data maxima venia, nasceu de anseios de prefeitos desleixados que “não tiveram tempo” no período de dois anos para a implementação da nova lei.

De qualquer forma, a recusa em aplicar a nova lei no período suplementar criado pela medida provisória configura o dolo necessário para a configuração da improbidade administrativa.

Aquilo que foi feito para amparo jurídico à procrastinação acaba servindo de elemento de demonstração do dolo na hipótese de insistência da inércia na aplicação da lei.

O “dolo” é a vontade livre e consciente de praticar o ato. Se a aplicação da nova lei deveria ter sido efetivada em 1/4/2023 e não foi efetivada em 31 de dezembro de 2023 fica claro, como a luz do sol, o dolo A vontade livre e consciente de não aplicar a nova lei fica escancarada.

Desta forma, a “neofobia” tão conhecida de servidores públicos com tacanho profissionalismo configura improbidade administrativa no que tange ao dolo de omitir-se num dever legal, sem prejuízo dos eventuais aspectos penais do crime de prevaricação.

Uma possível saída criada pela reforma da lei de improbidade refere-se à necessidade de indicação na sentença das circunstâncias reais da administração pública que “obrigaram” o servidor a ter agido da maneira como agiu. Assim:

“Art. 17-C. A sentença proferida nos processos a que se refere esta Lei deverá, além de observar o disposto no art. 489 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil):
(…)
III – considerar os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados e das circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente; (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)(grifos nossos).

Note-se que as “desculpas esfarrapadas” que o servidor poderia tentar encaixar na previsão legal de “obstáculos e dificuldades” acabam se encaixando melhor na negligência permanente configuradora do dolo A prorrogação do prazo de aplicação feita pela medida provisória deixa patente que o prazo de dois anos e oito meses é suficiente e adequado, máxime quando dois já o seriam.

Alegações do gênero “já contávamos com a prorrogação” só pioram a situação do servidor/ réu já que a fofoca e a adivinhação não podem ser utilizadas como escusa ao dever jurídico de planejamento.

Alegações lamentáveis do gênero “determinado servidor estava de férias” ou outras manifestações dissimuladas de preguiça também não socorrem neofóbicos. Férias tem o limite temporal de 30 dias que é muitíssimo inferior aos dois anos e oito meses de prazo para aplicação da nova lei.

O princípio da legalidade restará vilipendiado pelo servidor que insistir em agir desta forma vergonhosa e ilícita.

A jurisprudência da egrégia Corte Paulista já decidiu (após a reforma da LIA ocorrida em 2.021) que a ofensa ao princípio da legalidade já traz ínsita a presunção de prejuízo. Assim:

“Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO – Ação civil pública – Improbidade administrativa – Decisão interlocutória que recebeu a petição inicial e determinou seu processamento – Acerto – Preenchimento das condições da ação – Cuida-se de imputação que, em tese, implica a violação ao princípio da legalidade, o dano ao erário é presumido – Teoria da asserção – Ausência de comprovação, de plano, da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita – Inteligência do art. 17, § 6º, da Lei nº 8.429/1992 – Inexistência de situação apta a justificar a reforma da decisão agravada – Recurso não provido” (Agravo de Instrumento 2239973-80.2019.8.26.0000, relator: Magalhães Coelho, Comarca de Santa Adélia, 7ª Câmara de Direito Público, data de julgamento: 6/7/2.020, data de publicação: 7/7/2.020 — grifos nossos).

Merece destaque o fato de que a presença do dolo traz ao servidor a aplicação da imprescritibilidade da ação de ressarcimento.

Assim, já decidiu o c. STF:

“DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. IMPRESCRITIBILIDADE. SENTIDO E ALCANCE DO ART. 37, § 5 º, DA CONSTITUIÇÃO. 1. A prescrição é instituto que milita em favor da estabilização das relações sociais. 2. Há, no entanto, uma série de exceções explícitas no texto constitucional, como a prática dos crimes de racismo (art. 5º, XLII, CRFB) e da ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CRFB). 3. O texto constitucional é expresso (art. 37, § 5º, CRFB) ao prever que a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos na esfera cível ou penal, aqui entendidas em sentido amplo, que gerem prejuízo ao erário e sejam praticados por qualquer agente. 4. A Constituição, no mesmo dispositivo (art. 37, § 5º, CRFB) decota de tal comando para o Legislador as ações cíveis de ressarcimento ao erário, tornando-as, assim, imprescritíveis. 5. São, portanto, imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. 6. Parcial provimento do recurso extraordinário para (i) afastar a prescrição da sanção de ressarcimento e (ii) determinar que o tribunal recorrido, superada a preliminar de mérito pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento por improbidade administrativa, aprecie o mérito apenas quanto à pretensão de ressarcimento.” (RE 852475, Tribunal Pleno, relator: min. Alexandre de Moraes, relator para o acordão: min. Edson Fachin, julgamento: 08/08/2018, publicação: 25/3/2019 — grifos nossos).

Não se trata de informação irrelevante se levarmos em conta que a nova lei de licitações tem forte tendência de simplificar procedimentos e evitar o desperdício de dinheiro público.

Exemplo de economia da nova lei: os contratos podem ser firmados por 5 anos prorrogáveis por idêntico prazo, evitando os intermináveis e inúteis aditamentos da provecta Lei 8.666/93. Outro exemplo: a contratação integrada facilita a implantação da obra diminuindo prejuízos decorrentes da demora do procedimento licitatório. Ou ainda: o Registro de Preços pode ser prorrogado de forma a evitar gasto com nova licitação.

Enfim, somente após alguns anos os Tribunais de Contas e os próprios entes públicos terão condições de avaliar a economia gerada pela nova lei.

O servidor improbo, porém, tem contra si uma ameaça permanente de ação de ressarcimento, já que a presença do dolo decorrente da “neofobia” acarreta a imprescritibilidade da ação de ressarcimento.

Enfim, a “neofobia” existente quanto à nova lei de licitações caracteriza improbidade administrativa pela ofensa ao princípio da legalidade. A presença do dolo configura-se com a inércia mesmo após a prorrogação do prazo. A imprescritibilidade é ínsita às ações de ressarcimento em face do abominável e inoperante servidor .

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro, Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª Ed. Dialética, 2.023) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (Coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2.023).

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