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Rodrigues Mariano: Regime de urgência de PL no Congresso

4 de maio de 2023, 6h34

Por Jonathan de Mello Rodrigues Mariano

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Não são incomuns as divulgações de notícias pela imprensa no sentido de a Câmara dos Deputados e/ou Senado empregarem a técnica de aprovação de requerimento de urgência para a votação célere de projetos de lei. A qualificação de determinado PL como urgente para discussão e votação pelos parlamentares não possui, por si só, problemas.

Na realidade, trata-se de mecanismo que busca equilibrar a necessidade de amadurecimento político de determinados assuntos no Parlamento com os anseios da sociedade de ter mais segurança jurídica, previsibilidade e confiabilidade no seu agir diante de problemas ainda não regulados pelo Estado.

Ou seja, a urgência é um instrumento legítimo das democracias representativas para afastar a crítica geralmente colocada pela doutrina de que os processos legislativos são morosos e burocráticos. Nada obstante a sua relevância, certo é que o instituto como está hoje regulado pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) e do Senado (Risf) e vem sendo aplicado pelos agentes políticos não parece se coadunar com a Constituição. Explica-se.

O devido processo legislativo, para ser democrático, exige a discussão não só do tema como também da própria redação do texto do PL. Mostra-se inviável que a aprovação de requerimento de urgência aconteça quando não se possui um consenso entre os parlamentares sobre qual texto será aquele submetido à apreciação em regime de urgência ou, no mínimo, quando não se possui nem mesmo ideia de qual será a redação pronta do texto do PL — ainda seja possível emendas no Plenário — a que se submeterá aos demais parlamentares pelo relator da matéria. Essas situações, infelizmente, acontecem com frequência em temas caros à sociedade brasileira, como, por exemplo, o denominado PL das Fake News.

A falta de transparência e de conhecimento sobre o texto não atende ao princípio constitucional democrático (artigo 1º da CRFB/88), uma vez que suprime a etapa de discussão sobre a redação em si do PL para evitar lacunas, obscuridades e contradições, essencial para o devido processo legislativo (artigo 5º, inciso LIV, da CRFB/88), e dificulta desproporcionalmente a fase de votação, já que os parlamentares serão chamados a votarem simbólica ou nominalmente um texto que não possuem qualquer condição de se posicionarem sobre o seu mérito, inclusive se o texto atende ao que, em tese, foi obtido através do consenso da maioria parlamentar.

Isso ficou claramente evidenciado a partir do episódio ocorrido nesta terça-feira (2/5) em relação ao denominado PL das Fake News, considerando a sua retirada de pauta, por não existir o mínimo consenso entre os parlamentares sobre o seu conteúdo, assim como diante da falta clara de posicionamento dor relator sobre qual seria o texto a ser apreciado — ainda que suscetível de modificações por emendas a serem apresentadas em Plenário.

Além desse ponto, a falta de divulgação com uma antecedência tolerável do texto para a submissão da matéria em Plenário da Casa Legislativa dificulta ou torna extremamente oneroso o exercício do controle social pelos cidadãos e pelas organizações civis, funcionando como uma tentativa de quase obstrução parlamentar inconstitucional de manifestações públicas de repúdio pela sociedade sobre o texto a que será analisado, debatido e votado, o que enfraquece o espírito democrático de maneira desproporcional e, com isso, protege de maneira deficiente (princípio da proporcionalidade) a participação democrática da população (artigo 1º, caput, da CRFB/88).

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Bruno Spada/Cãmara dos Deputados

Não é só. Quem acompanha minimamente as deliberações do Parlamento brasileiro percebe que não é incomum a praxe de serem prolatados votos e relatórios orais das comissões e do próprio texto do PL pelo relator da matéria incluída em regime de urgência. Na maioria dos casos, os votos das comissões são rasos, por não conferirem o debate aos seus integrantes ordinários, e evitam qualquer debate a respeito de uma eventual inconstitucionalidade pelo Parlamento, a quem compete o exercício preventivo do controle de constitucionalidade no Brasil.

As comissões do Poder Legislativo, com a Constituição de 1988, ganharam protagonismo no processo legislativo, uma vez que possuem competência até mesmo para deliberar e votar de maneira terminativa PLs, na forma do inciso I, do §2º, do artigo 58, da CRFB/88.

O tratamento fugaz de uma análise de matéria em regime de urgência por uma comissão é contrário ao espírito de relevância a que o Constituinte conferiu a tal órgão fracionário parlamentar. E, mais. A falta de uma análise criteriosa sobre eventual inconstitucionalidade de parte ou da totalidade do texto do PL em regime de urgência enfraquece a integridade do sistema jurídico brasileiro (Dworkin) e atenua a relevância do Parlamento no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, por conferir apenas à Comissão de Constituição e Justiça apenas uma etapa formal, sem relevância, violando assim a eficiência do próprio devido processo legislativo (artigo 37, caput, da CRFB/88).

Quer-se dizer: a prolação de votos e de relatórios das comissões em plenário, de maneira verbal, sem prévio conhecimento dos parlamentares — inclusive dos integrantes das próprias comissões —, reduz desproporcionalmente a importância das comissões no processo legislativo, o que transgride a própria relevância empregada pelo Constituinte a tais órgãos fracionários do Parlamento (inciso I, do §2º, do artigo 58, da CRFB/88), assim como torna inócua qualquer avaliação de controle preventivo de constitucionalidade, permitindo a aprovação de normas inconstitucionais e, com isso, fragilizando a integridade do Direito.

Esses são, a princípio, dois aspectos procedimentais para a adequação constitucional do regime de urgência de debate e de votação de PLs. Embora importantes, mostra-se imprescindível colocar um limite material imanente ao regime de urgência. Para tanto, rememore-se que o inciso I, do artigo 153, do RICD, estabelece que a urgência poderá ser requerida quando se tratar de matéria que envolva a defesa da sociedade democrática e das liberdades fundamentais.

Deve-se compreender por defesa das liberdades fundamentais, pelo seu próprio sentido etimológico, a atividade de proteger ou, até mesmo, de garantia e de ampliação de direitos fundamentais. Não se pode colocar dentro da zona de certeza positiva de "defesa de liberdades fundamentais" o estabelecimento de parâmetros ou de limites para o exercício dos direitos fundamentais, uma vez que não se coaduna com o seu sentido etimológico e, com isso, viola regras básicas de hermenêutica jurídica (o texto é sempre o limite da interpretação a ser empregada para a obtenção da norma).

O artigo 153, inciso I, do RICD somente comporta a situação em que o Parlamento pretende proteger os direitos e as liberdades fundamentais, com o emprego de limites ao exercício do poder pelo Estado (teoria norte-americana do state action de direitos fundamentais adotada no Brasil). Qualquer matéria que suscite dúvidas e debates se realmente se está defendendo liberdades fundamentais não pode ser submetida à discussão e à votação em regime de urgência.

Entender o contrário é o mesmo que admitir uma proteção deficiente e ir de encontro à atribuição de eficácia máxima aos direitos fundamentais, contribuindo para a violação ao regime jurídico de tutela às liberdades constitucionais, que não é admitido pela Constituição de 1988.

Dessa forma, pode-se dizer que somente podem ser submetidas a regime de urgência as matérias que evidentemente a sociedade civil entenda ser como defensora (ampliadora ou garantidora) de liberdades fundamentais.

A existência de controvérsia pública relevante sobre essa sensação de concordância na sociedade civil, por si só, torna inconstitucional qualquer seja o PL submetido e aprovado em regime de urgência. Aliás, esse é um ponto que existe no denominado PL das Fake News. Há aqueles que defendam que o PL garantirá uma liberdade de expressão adequada à Constituição e outros que defendem que a liberdade de expressão será atacada em seu núcleo duro.

Independentemente do mérito do denominado PL das Fake News — que não se busca responder nessas breves reflexões —, existe um ponto insuperável e incontroverso: a sua submissão ao regime de urgência viola um limite implícito e imanente ao devido processo legislativo, qual seja, a impossibilidade de que temas de grande controvérsia pública e que suscitem dúvidas sobre eventual restrição, ainda que temporária, de garantias fundamentais devem ser sujeitos a um processo legislativo com ampla participação e debate pela sociedade e pelos parlamentares — através, inclusive, das comissões do Poder Legislativo.

Ainda sobre o artigo 153, inciso I, do RICD, destaca-se que a possibilidade de inclusão de PL em regime de urgência, quando houver a defesa da sociedade democrática, deve englobar apenas uma linha não utilitarista do direito. Isto é, não se pode admitir a submissão em regime de urgência de PL que atenue ou diminua direitos e garantias fundamentais em prol de uma suposta defesa do sistema democrático. Trata-se visão correlacionada àquela de interesse público defendido pelas administrativistas clássicos que não encontra mais respaldo na doutrina moderna e na jurisprudência hodierna, já que atentatória ao regime jurídico de tutela de direitos fundamentais adotado pelo Poder Constituinte Originário de 1988.

Assim, tanto na hipótese de defesa da sociedade democrática, quanto na defesa de liberdades fundamentais, somente é possível submeter determinada matéria a regime de urgência quando não houver controvérsia pública relevante a respeito do mérito do PL, em específico se não restringe, ainda que minimamente, direitos fundamentais. Nessas hipóteses, o tema poderá ser debatido e votado pelo Parlamento brasileiro. Porém, deverá sê-lo através do respeito às normas regimentais ordinários do devido processo legislativo ordinário, ainda que com a adoção de rito mais abreviado (regime especial de análise), sob pena de admissão de uma proteção deficiente de direitos fundamentais e de contradição à máxima eficácia das garantias constitucionais incompatíveis com a Constituição de 1988.

Por todo o exposto, o regime de urgência de deliberação e de votação de PLs no Congresso Nacional, para ser minimamente compatível com a atual ordem constitucional, deve observar três pressupostos:

1) a matéria deve passar, ainda que em rito breve (por exemplo, uma ou duas sessões antecedentes à análise em plenário), por uma análise em reunião formal das comissões necessárias para contribuírem com a análise de constitucionalidade e meritória do PL;
2) somente são possíveis a votação e a aprovação da urgência quando o texto do PL estiver finalizado nas comissões competentes para a sua análise e com a atribuição de um texto finalizado pelo relator da matéria, ainda que seja possível a apresentação de emendas em Plenário pelos Parlamentares, devendo ser divulgado com um prazo razoável de antecedência à votação (por exemplo, uma ou duas sessões antes da deliberação e da votação final pelo Plenário da Casa Legislativa);
3) não pode ser atribuído regime de urgência à matéria ou a texto de PL em que há uma controvérsia pública relevante relativa à existência de uma defesa ou de uma atenuação de direitos fundamentais a partir de sua aprovação, já que, nessas hipóteses de dúvida, deve ser privilegiado um debate amplo pela sociedade e pelo Parlamento para melhor maturação do texto, o que acontecerá somente de houver a observância das normas ordinárias de processo legislativo, ainda que em rito especial mais abreviado.

A não observância desses critérios redundará, como visto linhas acima, em desfavor do PL aprovado em regime de urgência em inconstitucionalidades formal, por violação ao devido processo legislativo, e materiais, por transgressão ao princípio democrático e à configuração de um estado de proteção deficiente ao sistema político representativo, à efetividade do controle social e à proteção de direitos fundamentais.