Modelos europeus influenciam debate brasileiro sobre regulação de plataformas
27 de junho de 2023, 19h29
O segundo painel do segundo dia do XI Fórum Jurídico de Lisboa, nesta terça-feira (27/6), teve um debate sobre as regulações europeias para a economia digital e suas influências no Brasil. As exposições abordaram principalmente a regulação das plataformas de redes sociais, além do papel da defesa da concorrência.
O painel se baseou no conceito de "efeito Bruxelas", termo que define a replicação de decisões regulatórias da União Europeia em outros países. Nas palavras da pesquisadora Mariana Valente — diretora associada do InternetLab (centro independente de pesquisas sobre Direito e Tecnologia) e professora assistente da Universität Saint Gallen, da Suíça —, é "uma espécie de exportação dos standards do poder regulatório da UE por meio de forças de mercado".
O principal exemplo desse fenômeno, segundo ela, é o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) europeu, que se tornou o padrão para as plataformas digitais.
Recentemente, foi aprovado na UE o Digital Services Act (DSA), que criou regras para conter a disseminação de conteúdos ilegais e desinformativos nas plataformas — por exemplo, a obrigação de avaliação de risco sistêmico. Alguns pontos estão presentes no Projeto de Lei das Fake News brasileiro.
Para Mariana, o DSA e a regulação de conteúdo como um todo talvez não sejam incorporados globalmente, como aconteceu com o GDPR, porque "possivelmente não vai ser vantajoso para as plataformas digitais adotar o mesmo grau de controle de conteúdo no mundo inteiro". Ela contou que os mesmos padrões globais vêm sendo "implementados de maneira muito desigual" ao redor do mundo, "conforme o tamanho dos mercados e a capacidade institucional de resposta".
Segundo a professora, muitos pontos do DSA "só fazem sentido diante de autoridades reguladoras independentes e fortes, pensadas em um contexto europeu".
"Parece-me evidente que uma importação acrítica de legislação estrangeira não faz sentido. Mas a pergunta que temos de fazer é: o que faz sentido no lugar?", indagou.
O painel foi mediado por Francisco Balaguer Callejón, professor catedrático da Universidade de Granada, na Espanha. Na sua visão, o Brasil tem uma vantagem com relação à UE: "O Brasil pode fazer uma regulação mais abrangente", enquanto a Europa precisa de uma regulação muito mais orientada "do ponto de vista das competências" para lidar com os diversos países que a integram.
Por outro lado, as possibilidades são limitadas para ambos, porque nem o Brasil, nem a Europa têm companhias tecnológicas desenvolvidas, a exemplo das norte-americanas e chinesas. "Nós podemos trabalhar sobre os efeitos e sobre as consequências jurídicas, mas não sobre as causas."
Modelos
A advogada Estela Aranha, secretária de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, sustentou que o mercado internacional é dominado pelo hardware chinês e pelo software norte-americano, enquanto busca ser regido por políticas europeias.
Ela explicou que o modelo norte-americano de regulação é pautado na proteção da liberdade de expressão, do livre mercado e da internet livre, a partir da autorregulação das empresas e do mercado — ou seja, cético com qualquer regulação estatal. Já o modelo europeu é focado na proteção de direitos fundamentais como os dados pessoais e o direito da concorrência.
Hoje em dia, segundo Estela, a internet concentra poder político e econômico desproporcionalmente nas mãos das big techs. No mundo democrático, "há o diagnóstico de que o modelo americano falhou, de que autorregulação e tecnolibertarianismo não vão funcionar e da necessidade de trazer alguma intervenção para o mercado, visando à estabilidade da democracia". Assim, "há um consenso de que o modelo regulatório europeu, no que foi proposto até hoje, serve ao interesse público".
Propostas governamentais
João Brant, secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, defendeu a aplicação no Brasil da avaliação de risco sistêmico, princípio que é o "coração" do DSA.
"Parece-nos que a combinação de avaliação de risco sistêmico com medidas de obrigação de atenuação desses riscos, de auditoria externa e um processo de regulação direta são soluções adequadas e coerentes — talvez a melhor solução que temos à mesa", opinou ele.
Brant explicou que o governo federal "nunca propôs uma entidade que tivesse papel de avaliar discursos individuais", pois defende que isso "deve se dar por parte das próprias empresas, por mecanismos de autorregulação, e pelo Judiciário". A sugestão do governo, atualmente em discussão no Congresso, é apenas uma entidade autônoma de supervisão das obrigações das plataformas.
Concorrência
Victor Oliveira Fernandes, conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica do Brasil (Cade), destacou a importância da dimensão concorrencial no debate de regulação das plataformas digitais.
Ele explicou que boa parte das leis antritruste ao redor do mundo "é exportada de um padrão normativo norte-americano", baseado no bem-estar do consumidor a partir de preços baixos e demanda alta. Mas, nos últimos anos, há um "movimento de questionamento da suficiência dessa moldura", mais aberto a outros valores, "como a contestabilidade e a justiça nos mercados digitais".
Desde 2017, por exemplo, a Comissão Europeia vem "condenando e impondo multas bilionárias às empresas de tecnologia por condutas anticompetitivas".
Segundo Fernandes, estamos vivendo "o momento de pensar a política de concorrência para além da simples moldura antitruste tradicional". Então, "para além de simplesmente reprimir atos de abuso de posição dominante e controlar fusões e aquisições, as autoridades estão indo além e projetando uma política de concorrência que tem um caráter interdisciplinar".
Já Paulo Burnier da Silveira, especialista sênior da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e professor-adjunto da Universidade de Brasília (UnB), explicou a diferença entre as regulações europeia e latino-americana sobre concorrência.
A regulação europeia, disse ele, é muito concentrada nas big techs. Já a maioria dos países da América Latina, que são menores, têm poucos funcionários em suas autoridades de concorrência. Com isso, preocupam-se mais com as chamadas local techs — "plataformas digitais que têm um poder de mercado local". Ou seja, fazem a aposta de não gastar energia com a regulação das big techs e de que "as restrições impostas no exterior vão ser replicadas lá".
Neutralidade
Por fim, Carlos Manuel Baigorri, presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), criticou a importação de regulações ruins. Segundo ele, Estados Unidos e União Europeia "trocam chumbo com más regulações", enquanto o Brasil "copia e cola".
Ele explicou que os EUA criaram o conceito de neutralidade de rede, segundo o qual todos os dados que trafegam na rede devem ser tratados da mesma forma e com a mesma velocidade. A medida foi uma resposta à cobrança aplicada pelas empresas europeias para carregar as aplicações das empresas americanas.
Segundo Baigorri, UE e EUA sempre querem "ter as empresas mais fortes desse mercado" e "a arma usada nessa disputa geopolítica é a má regulação" — nesse caso, adotar a neutralidade. Ele observou que o conceito mais tarde foi reproduzido no Brasil, no Marco Civil da Internet.
O evento
Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal "Governança e Constitucionalismo Digital". O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV)
Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos.
Confira aqui a programação completa
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