Opinião

Gilmar Mendes: O juiz constitucional, o direito e as relações internacionais

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  • fez graduação em Direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco 1998) mestrado em Direito pela UnB (Universidade de Brasília 2001) doutorado em Relações Internacionais pela UnB (2006). Fez estágios pós-doutorais em direito internacional na Universidade de Helsinki (2010) e na Universidade de Bremen (2014). Foi consultor da União na Advocacia-Geral da União e assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal.

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25 de junho de 2023, 6h14

*trecho do livro "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz"
Ainda que gradativamente o STF (Supremo Tribunal Federal) esteja a tratar de um número maior de casos relativos a direito internacional, tal quantidade permanece substancialmente menor se comparada, por exemplo, à atividade, nesse campo, da Suprema Corte dos Estados Unidos ou do Reino Unido. Ainda que não o único, um dos principais desafios em casos envolvendo tal temática diz respeito às repercussões da decisão de um tribunal constitucional interno para o cumprimento, por parte de um Estado, de normas jurídicas internacionais e mesmo para as suas relações bilaterais e multilaterais.[1]

O voto do ministro Gilmar Mendes no ARE 954.858 (rel. min. Edson Fachin, Pleno, DJ de 24.09.2021), que restou vencido, nos fornece uma boa ideia sobre a percepção de um juiz constitucional acerca das repercussões da decisão de um tribunal constitucional interno para o ambiente internacional.

O caso envolvia a questão de saber se um Estado — a Alemanha — gozava de imunidade de jurisdição, no Brasil, por violações de direitos humanos. Em específico, a ação originária visava a garantir reparação por morte a descendentes de vítima do torpedeamento, no mar territorial brasileiro, do barco pesqueiro Changri-lá, por submarino daquele Estado, em 1943, durante a II Guerra Mundial. Em sede de recurso ordinário constitucional, o STJ entendeu configurar-se imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro em virtude de se tratar de ato de guerra.

Infelizmente, a posição majoritária no caso somente pode ser extraída do voto do relator, o mininstro Fachin; os demais não fizeram juntar votos. Do lado minoritário, apresentaram votos escritos os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Alexandre de Moraes.

A tese fixada no julgamento, após o julgamento parcialmente procedente de embargos de declaração opostos pelo MPF, foi a seguinte: "Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos, dentro do território nacional, não gozam de imunidade de jurisdição". A alteração se referiu apenas ao âmbito espacial —  "território nacional" — das violações de direitos humanos.

Neste pequeno escrito, concentrar-me-ei no julgamento original do ARE 954.858, mais especificamente no voto do ministro Gilmar Mendes. Antes disso, no entanto, é essencial conferir as linhas mestras do voto do ministro Fachin.

O voto do ministro Edson Fachin
O voto condutor parte da premissa de que, após a CF/1988, a jurisprudência do STF teria abarcado a distinção entre atos de império e atos de gestão, cabendo falar-se em imunidade de jurisdição apenas em relação aos primeiros. Em sua visão, tal entendimento seria corroborado pelo direito (internacional) costumeiro, mas com uma exceção.

A partir da transcrição que faz do voto do ministro Luis Felipe Salomão no RO nº 60, julgado pelo STJ, o chamado Direito da Haia como expressão dos princípios gerais de direito internacional humanitário e de normas de direitos humanos (não especificadas) seriam limites à imunidade de jurisdição do Estado até mesmo por atos de império.

Para além do trecho transcrito, são citados, também como limites, o art. 6 (B) do Estatuto do Tribunal de Nuremberg, 1945 (violações das leis e costumes de guerra como crimes de guerra), e o art. 6 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966 (direito à vida). Adiante, o voto também lembra o art. 32 do Protocolo Adicional I das Convenções de Genebra, 1977 (direito dos familiares de conhecerem a sorte de seus membros em caso de conflitos armados internacionais).

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O voto cita diversos casos e leis nacionais que, em sua perspectiva, corroborariam uma limitação da imunidade por atos de império. Também menciona o caso das Imunidades Jurisdicionais (Alemanha vs. Itália, Grécia intervindo), julgado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), em que foi reconhecido que a Itália deveria respeitar a imunidade de jurisdição alemã, em virtude de alegadas violações ocorridas durante a II Guerra Mundial. Dele discorda, no entanto, sustentando que não possui eficácia erga omnes e efeito vinculante. Por outro lado, sua adesão é expressa ao voto dissidente, naquele caso, do Juiz Cançado Trindade — embora este tenha sustentado, de maneira mais estrita, que inexiste a imunidade de jurisdição para atos de império quando as violações de direitos humanos (e de direito humanitário) são especificamente dotadas do elemento gravidade.

O voto do ministro Fachin, em conclusão, afasta a imunidade de jurisdição da Alemanha, no caso, mesmo em se tratado de ato de império, em virtude do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (artigo 4º, II, da CF/1988).

O voto do ministro Gilmar
Em seu voto-vogal, o ministro Gilmar Mendes também parte da consagração, do ponto de vista tanto constitucional como internacional, da distinção entre atos de império e atos de gestão para fins de imunidade de jurisdição, restando absoluta a imunidade de execução. Quanto a esse último tipo de imunidade, já se percebe uma preocupação com as repercussões de uma eventual relativização da imunidade de execução, em virtude de a determinação de uma medida constritiva contra bens de um Estado estrangeiro ser "no mínimo, um incidente internacional delicado". Diferentemente do ministro Fachin, o voto do ministro Gilmar Mendes menciona várias legislações nacionais e, em especial, a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus bens e a Convenção Europeia sobre Imunidade do Estado para confirmar a existência de uma norma costumeira sobre imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro por atos de império. Ou seja, parte de elementos semelhantes de prática internacional estatal, mas chega a uma conclusão oposta àquela do voto vencedor.

O voto também se diferencia por entender que apenas uma minoria de Estados busca excepcionar atos de império à imunidade de jurisdição. E é preciso ao identificar que, ainda nesses casos, os atos de império não são todas e quaisquer violação de direitos humanos, mas violação de "direitos humanos absolutos, assim tidos como aqueles que decorrem do direito à vida e à integridade física da população civil como advindos do jus cogens". Ou seja, o desafio à imunidade de jurisdição, em alguns direitos internos, se referiria às graves violações a direitos humanos — aquelas que podem ser subsumidas a normas jus cogens. E complementa que tal posição minoritária não seria reveladora de uma prática geral apta a formar norma internacional consuetudinária, além de contrária a diversos tratados de que o Brasil é parte. Seu entendimento, portanto, se alinha com o posicionamento majoritário da CIJ.

Também essa consideração é relevante para entender a preocupação do min. Gilmar Mendes — e do juiz nacional, em geral — em cumprir normas internacionais. Na medida em que a posição majoritária no caso julgado perante a CIJ é calcada no direito internacional costumeiro tal como existente, uma decisão contrária poderia, portanto, configurar um ato ilícito internacional e a consequente responsabilização internacional do Estado. É por essa razão que, na parte final de seu voto, adverte: "Nunca é demais lembrar que o descumprimento de qualquer tratado ou norma consuetudinária, em tese, ocasionaria um conflito internacional entre Estados soberanos" E ainda: "Além disso, caso proceda ao descumprimento de qualquer norma consuetudinária, a República Federativa do Brasil, através do seu Chefe de Estado, deve assumir, no plano internacional, inúmeras consequências, não existindo qualquer atribuição do Poder Judiciário nesse sentido". A posição que assume, portanto, é a de que ao juiz nacional é dado identificar a norma internacional consuetudinária e aplicá-la.

A conclusão chega mesmo a visualizar não somente a possibilidade de ocorrência de um ato ilícito internacional, mas consequências do ponto de vista político entre os Estados: "Com todas as vênias aos pensamentos contrários, penso que devemos manter a integridade da nossa jurisprudência, a qual tem mantido a imunidade absoluta em se tratando de atos de império, tal como no caso em análise, além de refletir a exegese majoritária da comunidade internacional, sob pena de criarmos um incidente diplomático internacional". Esse é um impacto que não é externo ao fenômeno jurídico, mas o constitui, na medida em que afeta a própria competência de um tribunal para analisar questões de direito internacional.

Conclusões
Já se disse que, em matéria de imunidades, tribunais internacionais cumprem a função de arremessar a "primeira pedra". Esta, por sua vez, é capaz de gerar um “efeito em cascata” que produz (ou visa a produzir) mudanças no direito internacional.[2]

O grande desafio, no entanto, é fazer com que tal primeira pedra não esteja em flagrante descompasso com normas internacionais estabelecidas. Afinal, o compromisso do juiz nacional não é somente com o Estado de direito na esfera interna, mas também na esfera internacional. É por essa razão que o voto do min. Gilmar Mendes acima referido deve ser levado bastante a sério em qualquer análise sobre as repercussões de decisões nacionais do juiz constitucional na esfera internacional.

** "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" será lançado nesta semana em Lisboa, e em agosto no Brasil

 


[1] Para um panorama geral sobre o assunto, ver NOLLKAEMPER, André et al (Eds.) International Law in Domestic Courts: A Casebook. New York: OUP, 2018.

[2] VAN ALEBEEK, R. Domestic Courts as Agents of Development of International Immunity Rules. Leiden Journal of International Law. Vol. 26. Nº 3, 2013, p. 577-578.

Autores

  • fez graduação em Direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco, 1998), mestrado em Direito pela UnB (Universidade de Brasília, 2001), doutorado em Relações Internacionais pela UnB (2006). Fez estágios pós-doutorais em direito internacional na Universidade de Helsinki (2010) e na Universidade de Bremen (2014). Foi consultor da União na Advocacia-Geral da União e assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal.

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