Direito a recursos para cassação
23 de junho de 2023, 6h31
Partindo-se do próprio conceito de recursos no direito brasileiro, podemos extrair seus principais princípios, dos quais os princípios da taxatividade e do duplo grau de jurisdição. Para além dos objetivos imediatos de reforma, anulação e integração (ou mero esclarecimento), o recurso possui as funções essenciais de controle da decisão impugnada, da chamada função paradigmática e uniformizadora e da função denominada de nomofilática. Daí nascer a ideia de cassação nas cortes superiores e, como consequência, a noção de precedentes.
Da compreensão conceitual de recurso no direito brasileiro, diz-se que constitui "remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de decisão judicial que se impugna" [1].
Acrescentando-se um outro elemento, diz-se, também, que os recursos podem ser definidos como remédios voluntários, criados por lei, em que se busca, na mesma relação processual, um dos objetivos supracitados (anulação, reforma ou integração de decisão judicial) [2].
Desse segundo conceito, extrai-se a necessidade de que os recursos sejam criados por lei, ou seja, requer-se iniciativa do legislador. De ambos, a ideia de voluntariedade da parte, eis que são manifestação do poder dispositivo da parte, ou mesmo de um terceiro interessado no processo.
Aliás, nada mais natural de que a parte vencida em uma ação judicial, demonstrando eventual erro na aplicação do direito (error in iudicando) ou eventual erro de procedimento (error in procedendo), tente, com o recurso cabível e geralmente na instância recursal, uma decisão favorável.
Principais princípios dos recursos
Da própria compreensão conceitual do recurso, podemos extrair seus principais princípios, os quais são mandamentos de otimização [3], de que extraímos a importância de sua aplicação para a conformação das normas jurídicas.
Para o que interessa ao objeto do presente artigo, trataremos aqui apenas dos princípios da taxatividade e do duplo grau de jurisdição, mas ressaltando-se que vários outros são discutidos na doutrina processual pátria.
Quanto ao princípio da taxatividade, já que o recurso ataca um pronunciamento judicial presumidamente correto, imprescindível que ele tenha expressa previsão legal, não só das hipóteses de seu cabimento, como também seus requisitos e forma de processamento [4].
Mas, qual lei, em nosso sistema processual, pode instituir recurso?
E a resposta há de ser lei federal [5]. Isso porque, diante da repartição constitucional de competência, o artigo 22, I, da Constituição prevê a competência privativa da União para legislar sobre matéria processual. Vale dizer, para se instituir o recurso, bem como regular seu cabimento, exige-se atuação positiva do legislador federal.
Aos demais entes da federação (estados, Distrito Federal e municípios), portanto, cabe apenas competência concorrente com a União para legislar sobre procedimentos em material processual (artigo 24, XI), nunca na instituição de recursos propriamente ditos, ao menos com a nossa vigente ordem constitucional.
Por outro lado, o princípio do duplo grau de jurisdição pode ser conceituado como "o direito à revisão das decisões judiciais por órgão jurisdicional hierarquicamente superior, na forma e cumpridos os requisitos previstos em lei" [6].
Como dito em linhas volvidas, nada mais natural de que a parte vencida em uma demanda judicial, demonstrando eventual erro na aplicação do direito (error in iudicando) ou mesmo eventual erro de procedimento (error in procedendo), tente, através do recurso cabível e geralmente na instância recursal, uma decisão que lhe seja favorável.
O inconformismo do recorrente, pois, aliado à falibilidade humana, justifica o direito a uso dessa ferramenta processual [7].
Cabe registrar que, se não há grandes divergências do princípio do duplo grau de jurisdição no direito processual penal pátrio, o mesmo não se pode dizer quando se trata do nosso direito processual civil.
A ausência de divergências significativas no campo processual penal advém do fato de que o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, o qual expressamente assegura ao acusado de um delito o direito de recorrer da decisão a um juiz ou tribunal superior (artigo 8º, n., 2, h). Acresce-se, ainda, o fato de que o Supremo Tribunal Federal já tem precedente no mesmo sentido [8].
De mais a mais, parte dos processualistas penais defendem que, apesar de o duplo grau de jurisdição não estar expresso no texto constitucional, ele é direito inserido, implicitamente, na garantia do devido processo legal e no direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, artigo 5º, incisos LIV e LV, respectivamente) [9].
Assim, pode-se dizer que, no direito processual penal brasileiro, o duplo grau de jurisdição é uma garantia fundamental das partes.
Isso não significa dizer, contudo, que não haja decisões irrecorríveis no nosso sistema processual, de forma excepcional, tal como a decisão que denegar a suspensão do processo em razão de questão prejudicial (CPP, artigo 93, §2º). De igual modo, não significa dizer que não haja exceção ao duplo grau de jurisdição, como sói ocorrer nas hipóteses de competência originária dos tribunais [10].
No direito processual civil, como dito, há divergências, em especial se há, ou não, uma sede constitucional para o princípio do duplo grau de jurisdição.
De um lado, Greco lembra-nos que "os instrumentos internacionais de direitos humanos e a jurisprudência internacional não reconhecem o duplo grau de jurisdição como garantia fundamental no processo civil, pelo caráter discricionário de que se reveste o acesso às jurisdições superiores nos países da common law", concluindo, então, que "[…] mesmo não previsto expressamente no artigo 5º da Constituição Federal como garantia fundamental do processo civil, o duplo grau de jurisdição integra o devido processo legal, o qual incontestavelmente constitui uma daquelas garantias ou direitos fundamentais (inciso LIV)" [11].
De outra banda, a norma expressa no artigo 5º, inciso LV, do atual texto constitucional, que assegura aos litigantes, em processo administrativo ou judicial, a ampla defesa e os meios e recursos a ela inerentes, conferiria estatura constitucional ao duplo grau de jurisdição, já que o recurso seria uma forma de salvaguardar a ampla defesa, garantindo-se uma reanálise da causa pelo órgão superior [12].
Há, ainda, quem defenda que o duplo grau de jurisdição é um direito decorrente da previsão inespecífica de competência recursal para a 2ª instância (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais) [13] e quem a isso acrescenta as normas dos "[…] artigos 102, II, e 105, II, que trazem hipótese de cabimento de recurso ordinário, respectivamente, para o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça" [14].
Seja por quaisquer dos fundamentos, sabe-se que o reexame da causa por órgão colegiado assegura maior probabilidade de acerto da decisão, a uma porque, de regra, há uma melhor análise das provas, a duas porque, regra geral, os órgãos colegiados são constituídos por magistrados mais experientes e que tomam decisão conjuntamente [15].
Funções essenciais dos recursos
O recurso, para além desses objetivos imediatos extraídos de seu próprio conceito — reforma, anulação e integração (ou mero esclarecimento) —, possui funções essenciais.
Ao lado de uma primeira função do recurso, a de controle da decisão impugnada (já que a recorribilidade constitui um dos fatores de sua legitimação), e de uma segunda função presente em especial nos recursos especial e extraordinário, chamada de paradigmática e uniformizadora (já que a decisão de um recurso pode se tornar um paradigma para outros casos, como também pode uniformizar a interpretação de uma norma jurídica), temos uma terceira função do recurso, denominada de nomofilática, cujo objetivo é a obtenção da adequada aplicação da norma. Por isso, ao "se buscar a reforma ou anulação de um julgado, a finalidade do recurso pode não ser diretamente a proteção a um interesse subjetivo, mas a correta observância da norma jurídica porventura aplicável ao caso" [16].
Daí nascer a ideia de cassação nas cortes superiores e, como consequência, a noção de precedentes.
Direito a recursos para cassação no STF
Como visto em linhas volvidas, uma das funções do recurso é a função paradigmática e uniformizadora, visto que a decisão de um recurso pode se tornar um paradigma para outros casos ainda pendentes de julgamento, como também pode uniformizar a interpretação de uma norma jurídica.
Vale dizer, é possível que a decisão proferida em grau recursal tenha finalidade que ultrapasse o interesse subjetivo da parte e alcance casos futuros, pendentes de julgamento. Reafirmando-se essa ideia, digamos do ponto de vista generalizante dos efeitos que a decisão proferida no recurso, "cuando hablamos de casación estemos tomando en consideración un tema profundamente social" [17].
Aliás, com íntima conexão com a função paradigmática e uniformizadora tem-se a eficácia do precedente, cuja decisão sabidamente supera a solução do caso particular levado ao Judiciário e projeta-se aos casos futuros que com ele guardem similaridade fática (mesma ratio decidendi) [18].
Não por acaso, se diz que a criação de uma jurisprudência uniforme, por atuar na própria proteção do sistema jurídico, é fator dotado de relevância social [19].
No STF, esse "filtro" é feito por meio do recurso extraordinário (RE), cujo conhecimento e processamento, a partir de uma das hipóteses de cabimento previstas no artigo 102, III, da CF/88, requer o cumprimento de pressupostos específicos de admissibilidade, em especial a repercussão geral (introduzida pela EC 45/2004).
Aliás, a existência de "filtro" para acesso às cortes superiores, por meio recursal, não é exclusividade do Brasil.
Não por acaso, a nossa repercussão geral foi inspirada nas petitions for certiorari levadas à Supreme Court dos EUA [20].
O acesso a esse órgão de cúpula judiciária norte-americano, através de recursos, é feito através do appeal, certificação, writ extraordinário e writ of certiorari [21].
Com isso, percebe-se que a existência de "filtros" para a escolha dos recursos que devem ser levados às cortes superiores é imprescindível para a otimização do sistema. Não fosse assim, as cortes superiores seriam "inundadas" com questões de menor importância do ponto de vista geral e, como consequência, não conseguiriam cumprir o papel uniformizador legitimador de sua própria existência (função paradigmática e uniformizadora dos recursos).
Conclusão
O presente ensaio limitou-se a fazer uma breve reflexão sobre o direito a recursos para cassação, sem a pretensão de esgotar o assunto, abordando-se o conceito, os principais princípios e das funções do recurso.
Viu-se que, do conceito de recursos no direito brasileiro, podemos extrair seus principais princípios, em especial os princípios da taxatividade e do duplo grau de jurisdição.
Viu-se que, para além dos objetivos imediatos de reforma, anulação e integração (ou mero esclarecimento) —, o recurso possui as funções essenciais de controle da decisão impugnada, da chamada função paradigmática e uniformizadora e da função denominada de nomofilática. Dessas funções essenciais, adveio a necessidade de analisar a ideia de cassação nas cortes superiores e, como consequência, uma breve noção de precedentes.
Viu-se, ainda, que a existência de "filtros" (requisitos) para acesso às cortes superiores, através de recursos, é imprescindível para a otimização do sistema, sob pena impedir as cortes superiores de cumprir o papel uniformizador legitimador de sua própria existência (função paradigmática e uniformizadora dos recursos).
Ao final, viu-se que a existência desses "filtros" não é novidade do sistema jurídico brasileiro, havendo também em sistema jurídico alienígena.
Referências
ALEXY, Robert; SILVA, Virgílio Afonso da (Trad.). Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
ARENHART, Sergio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, v. II.
GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, v. III.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: JusPodivm, 2022.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. V.
NIEVA FENOLL, Jordi. "La relevancia social de la casación: La importancia del ius litigatoris". In: Jurisdicción y proceso. Barcelona: Marcial Pons, 2009.
RODRIGUES, Marco Antonio. Manual dos Recursos, Reclamação e Rescisória. SP: GEN, 2017.
RODRIGUES, Marco Antonio; PEPE, Rafael. Writ of certiorari e Recurso Extraordinário: encontros e desencontros. In: Revista de Processo, nº 280, 2018.
TARUFFO, Michele. Processo civil comparado: ensaios. SP: Marcial Pons.
[1] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. V, p. 233.
[2] RODRIGUES, Marco Antonio. Manual dos Recursos, Reclamação e Rescisória. SP: GEN, 2017, p. 4.
[3] ALEXY, Robert; SILVA, Virgílio Afonso da (Trad.). Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90.
[4] RODRIGUES, op. cit., p. 33.
[5] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 1475.
[6] RODRIGUES, op. cit., p. 31.
[7] LIMA, op. cit., p. 1476.
[8] HC 88420, relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, DJe-032 DIVULG 06-06-2007 PUBLIC 08-06-2007 DJ 08-06-2007 PP-00037 EMENT VOL-02279-03 PP-00429 LEXSTF v. 29, nº 345, 2007, p. 466-474.
[9] LIMA, op. cit., p. 1477.
[10] LIMA, op. cit., pp. 1477-1478.
[11] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, v. III, p. 11.
[12] RODRIGUES, op. cit., p. 31.
[13] ARENHART, Sergio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, v. II, p. 508.
[14] RODRIGUES, op. cit., p. 32.
[15] RODRIGUES, op. cit., p. 32.
[16] RODRIGUES, op. cit., p. 8.
[17] NIEVA FENOLL, Jordi. "La relevancia social de la casación: La importancia del ius litigatoris". In: Jurisdicción y proceso. Barcelona: Marcial Pons, 2009, p. 114. Tradução livre pelo autor: "Quando falamos de cassação estamos levando em consideração uma questão profundamente social".
[18] TARUFFO, Michele. Processo civil comparado: ensaios. SP: Marcial Pons, pp. 130-131.
[19] NIEVA FENOLL, Jordi. "La relevancia social de la casación: La importancia del ius litigatoris". In: Jurisdicción y proceso. Barcelona: Marcial Pons, 2009, p. 115.
[20] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 17. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. V, p. 584.
[21] RODRIGUES, Marco Antonio; PEPE, Rafael. Writ of certiorari e Recurso Extraordinário: encontros e desencontros. In: Revista de Processo, nº 280, 2018, pp. 281/283.
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