Que as deusas da Constituição de 1988 nos protejam do deus que odeia o orgulho LGBT
20 de junho de 2023, 12h19
"Sob a proteção dos deuses e das deusas: [nós], representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos…" [CF/88 – adaptado] [1].
O Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 2.076-5/AC, sob a relatoria do ministro Carlos Velloso, registrou que "o preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa" [2]
Não há dúvidas, neste julgado, que o preâmbulo, por si só, não possui força normativa constitucional e tampouco se trata de reprodução obrigatória nas constituições estaduais. Entretanto, como ressaltado no voto do ministro Carlos Velloso, tanto os princípios quanto os direitos e garantias fundamentais antecipados pelo preâmbulo e reproduzidos ao longo do texto constitucional, esses, sim, revelam o anseio constituinte [3].
Entre os anseios do constituinte está a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. É por essa razão, inclusive, que o artigo 5º da CF/88 estabelece a igualdade entre os sujeitos e a inviolabilidade da liberdade de crença e o livre exercício do(s) culto(s) religioso(s), no plural. Por isso, não se trata de culto ao deus cristão, pode ser as deusas ou aos deuses, ou culto a coisa nenhuma.
Até aí, aparentemente, nenhum problema. A não ser a ideia falaciosa de que, por ser um país majoritariamente masculino, hétero, branco e cristão os outros devem — esse suposto dever "bíblico" e não constitucional — se amoldar aos parâmetros de fé que eles escolheram.
Numa dualidade entre Anderson Freire "você é um espelho que reflete a imagem do Senhor" [4] e Caetano Veloso o "narciso acha feio o que não é espelho" [5], parte da comunidade religiosa brasileira é levada a reproduzir, com larga influência de seus líderes religiosos, um discurso de ódio contra a população LGBTQIAP+ como uma espécie de grupo o qual deve ser "combatido" por atentar contra família tradicional brasileira e preservarmos a sagrada doutrina cristã como manual de conduta a ser seguido.
Essa pretensão absoluta não se sustenta juridicamente, tampouco num suposto aspecto espiritual de matriz cristã. Por isso, não há dúvidas da baixeza, inigualável, de se utilizar de alguma divindade como escudo para propagar o ódio aos quatro cantos, sob uma equivocada noção de liberdade religiosa.
Imagine a existência de um ser supremo, todo-poderoso — diante dos céus e da terra e todos os possíveis universos existentes — reinando sobre tudo, todas, todos e todes, sentado em seu trono de glória com uma prancheta estilo check-list, diariamente, conversando com seus anjos dizendo mais ou menos o seguinte: "Misericórdia, o cantor gospel se assumiu homossexual, preciso adiantar minha volta!".

Há quem se convence desse ser supremo fiscalizador do orifício e dos desejos sexuais alheios e, não satisfeito, voluntaria-se em ajudá-lo nesta empreitada fiscalizatória, tudo em nome de um mundo melhor e "mais puro". Se esse tal deus odeia o orgulho LGBTQIAPN+ — o que duvido muito — é um problema dele. Se as pessoas decidem acreditar nesse deus é um problema delas, inclusive, deve ser protegido pela liberdade de crença. Entretanto, se as pessoas, a partir desta suposta existência e crença, transformam — e propagam — em suas premissas um discurso de ódio contra grupos minoritários, deixa de ser um problema delas e se torna um problema nosso, enquanto sujeitos políticos que buscam concretizar os objetivos constitucionais propostos na CRFB/88.
É nosso porque o "nós" do preâmbulo da CRFB/88, apesar da ausência de força normativa e da baixa representatividade de diversos sujeitos e povos quando de sua construção, reafirma o compromisso deste pretenso Estado democrático de Direito. Nosso porque entre os objetivos fundamentais desta República Federativa do Brasil, previstos no artigo 3º da CRFB/88, tem-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos e quaisquer outras formas de discriminação. Nosso, porque a CRFB/88 garante a igualdade de todos perante a lei. Nosso porque a lei buscará punir qualquer forma de discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
É importante reafirmar tais aspectos, pois, nos textos sagrados independentemente da fé do indivíduo é dada a faculdade da crença. A sujeição dos indivíduos aos ditames constitucionais, mesmo com suas transformações e rupturas, não está sob o prisma da voluntariedade, transcendência e imutabilidade. Pelo contrário, os ditames e preceitos constitucionais estão em constante disputa, sobretudo, porque está no plano da realidade social e na busca pela concretização dos valores sociais aos quais partilhamos em busca de melhorias enquanto sociedade democrática.
É nesse sentido na busca por concretizar os direitos fundamentais, que não se pode admitir a utilização de discursos transcendentais para justificar o ódio contra grupos historicamente subalternizados, numa nítida atuação homotransfóbica. É por isso que a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) de nº 26 descreve uma ponderação entre a liberdade religiosa e a rejeição ao discurso de ódio, em obediência aos princípios constitucionais.
Nos termos da ADO nº 26 a responsabilização penal em relação à homotransfobia não alcança e nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, independente do segmento religioso o qual pertença ou o meio de transmissão. Entretanto, uma ressalva é feita, só não haverá responsabilização criminal "desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas 1) exteriorizações que incitem a discriminação, 2) a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual, ou a violência de sua identidade de gênero".
O que é discriminação? Uma forma de defini-la está no artigo 1º da Convenção Interamericana Contra Toda a Forma de Discriminação e Intolerância, segundo a qual a discriminação é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Parte.
Adilson Moreira [6] destaca que a discriminação por orientação sexual é baseada na expressão do desejo sexual e suas relações com os sentidos sociais de gênero. Ressalta que, em relação à orientação sexual como a sexualidade não é necessariamente visível as pessoas podem ocultar essa "parte" de sua existência de modo a evitar discriminações. Os resultados desse modo de viver são: 1) danos psicológicos; 2) impedimento ao exercício pleno da sua cidadania; 3) risco de vida constante. Essa é a razão, inclusive, de que a luta pelo tratamento igualitário, baseado no conceito de dignidade sexual, é uma busca pela expansão da democracia, no sentido de ampliar a proteção ao direito à igualdade e à dignidade.
Nesse contexto, a discriminação por orientação sexual se utiliza dos estigmas culturais difundidos na sociedade e, muitas vezes, a partir do discurso religioso o qual, ao difundir tais estigmas, não possuem blindagem jurídica constitucional. Adilson Moreira, didaticamente, aponta que a laicidade do Estado é uma proteção contra os princípios religiosos ditados como verdade, uma vez que se o Estado não possui religião oficial, os princípios religiosos, embora guardada e respeitada a sua existência, não é fundamento para pregar o ódio a determinados grupos sociais. Isso porque "a homofobia é um discurso de ódio que tem o propósito de afirmar a ideia de que homens e mulheres homossexuais não são pessoas que merecem o mesmo respeito e consideração, que não podem ser vistos como indivíduos que podem desempenhar funções sociais de maneira adequada porque seriam naturalmente degenerados".
Trevisan [7] nos ensinou uma lição importante: a homossexualidade é um fato consumado. Trevisan lembra que Abelardo Romero apelidou os indígenas brasileiros de "devassos no paraíso", uma vez que seus códigos sexuais destoavam do puritanismo ocidental, exemplo disso era a pouca importância que dava a virgindade e a condenação do celibato. Relembra Trevisan do deus punitivo — tanto católico quanto protestante — aquele que apontava para uma severidade a sodomia. E, ainda, lamenta que "a cada vez que alguém sente o apelo da diferença em seu desejo, provavelmente terá de vencer séculos de repressão para chegar ao epicentro do seu eu".
Esse discurso da punição ao modo de viver e, consequentemente, a redução das liberdades fundamentais, a professora doutora Bartira Miranda [8] registra que "a Idade Média não acabou". "O fascismo não acabou. Os discursos punitivos da idade das trevas e mesmo do holocausto persistem na atualidade, alguns mudando as formas de expressão, sem mudar o fundamento que os sustentam."
Não estamos mais — ainda bem e graças a luta daquelas/es que nos antecederam — num país sob uma jurisdição eclesiástica, apesar dos desejos de muitos religiosos de enquadrarem nossas vidas e desejos em um livro o qual são regras de fé e de conduta para eles. As regras, numa sociedade democrática, laica e plural, têm como ponto de partida a Constituição, não a bíblia ou qualquer livro sagrado. Mais uma vez, pelo esforço repetitivo didático: a primeira de adesão obrigatória; a segunda, facultativa.
Por fim, rogamos às deusas e aos deuses, proteção da Constituição, reverência a todas e todas que tornaram e tornam esse país um espaço de pluralidade de gênero e sexualidade: Renato Russo, Cazuza, Cássia Eller, Maria Gadú, Adriana Calcanhoto, Ney Matogrosso, Ana Carolina, Gloria Groove, Pablo Vittar, Liniker, Laerte, Paulo Iotti, Amara Moira, Erika Hilton. Para o mês do orgulho, fiquemos com a palavra de Joohny Wooker "ninguém vai poder nos dizer como amar!!!".
[1] BRASIL. Constituição da República1 Federativa do Brasil de 1988.
[2] STF. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.076-5/AC. Relator ministro Carlos Veloso. Brasília, 2008.
[3] STF. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.076-5/AC. Relator ministro Carlos Veloso. Brasília, 2008.
[4] FREIRE, Anderson. Raridade. MK Music, 2013.
[5] VELOSO, Caetano. Sampa. Universal Music Group, 1978
[6] MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório.
[7] TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil da Colônia à atualidade. 4ª edição revista, atualizada e ampliada.
[8] SANTOS, Bartira Macedo de Miranda. Professora, homossexualidade não é crime!… mas o preconceito mata pessoas. Empório do Direito, 2016. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/professora-homossexualidade-nao-e-crime-mas-o-preconceito-mata-pessoas. Acesso em: 14 jun. 2023
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