Opinião

Perfilamento racial e hermenêutica jurídica

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  • é advogado professor de Processo Penal e Direito Penal membro relator da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB-PR e membro relator da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB-PR.

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15 de junho de 2023, 11h21

Certamente raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnia de uma pessoa não devem ser critérios objetivos para suspeita e abordagem policial. Não é surpreendente, portanto, que as diretrizes dos sistemas de proteção aos direitos humanos condenem o perfilamento racial, uma vez que permite a criação de padrões destinados a criminalizar sobretudo a população afrodescendente.

A pergunta que surge é a seguinte: é preocupante observar que essa prática tem sido validada pelo Poder Judiciário?

No dia 1º de março deste ano, o Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento do habeas corpus nº 208.240, que trata da questionável legalidade de uma busca pessoal realizada com base na cor de pele do suspeito, um homem negro, durante a qual foram encontrados 1,53 gramas de cocaína.

De acordo com os depoimentos dos policiais que efetuaram a prisão em flagrante, o que chamou a atenção deles, a partir de uma certa distância, foi a cor da pessoa: "avistaram um indivíduo de cor negra que aparentava estar envolvido em atividades típicas de tráfico de drogas" e "observaram um homem negro que estava fornecendo drogas a um usuário em um veículo".

A legislação estabelece que a busca pessoal é permitida somente quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja portando algo ilícito (um aspecto frequentemente negligenciado pelas autoridades, sobretudo pelo judiciário), ou seja, um corpo de delito (artigo 244 do Código de Processo Penal). A lei, devidamente interpretada pela Constituição (artigo 5º, X) — que protege a privacidade das pessoas  exige que existam elementos concretos que indiquem que a pessoa esteja de fato carregando consigo algum objeto que constitua um corpo de delito. Portanto, não é — nem deveria ser  permitido que policiais realizem buscas pessoais com base apenas em "atitudes suspeitas", que, em grande parte, são baseados em juízos subjetivos (tal como a cor de pele da pessoa) que não podem ser devidamente averiguados pelas partes em um processo judicial.

No RHC nº 158.580, o ministro Schietti Cruz, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), acompanhado de forma unânime por seus colegas da 6ª Turma, ressaltou a necessidade de se examinar a legalidade da busca pessoal de forma mais rigorosa e passível de revisão:

Há três razões principais para que se exijam elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal, além da intuição baseada no tirocínio policial:

a) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (artigo 5º, caput, e X, da Constituição), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora  mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre , também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes. Não por outra razão, a medida é chamada no direito norte-americano de stop (parada) and frisk (revista);

b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;

c) evitar a repetição  ainda que nem sempre consciente  de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial (racial profiling), reflexo direto do racismo estrutural, sobre os quais convém tecer considerações mais aprofundadas.

A busca pessoal, quando realizada com base em critérios subjetivos por parte dos policiais, viabiliza a consolidação do perfilamento racial como uma prática comum no Brasil.

Preocupada com a discriminação racial, a ONU divulgou o manual intitulado Prevenindo e combatendo o perfilamento racial de pessoas afrodescendentes: boas práticas e desafios. De acordo com o manual, o perfilamento racial ocorre quando as forças policiais baseiam suas ações em generalizações raciais, em vez de evidências objetivas ou comportamento individual. Isso resulta em abordagens policiais invasivas, verificações de identidade excessivas e tomadas de decisões discriminatórias relacionadas a atividades criminosas.

A ONU destaca o Brasil como um exemplo de perfilamento racial: "Por exemplo, durante sua visita ao Brasil, o Grupo de Trabalho constatou que há uma representação desproporcional de brasileiros afrodescendentes no sistema prisional e uma cultura de perfilamento e discriminação racial em todos os níveis do sistema de justiça" (p. 03).

A violação de direitos também foi uma preocupação expressada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, em que se constatou:

"com especial preocupação, processos sistêmicos de violência perpetrados por agentes do Estado, especialmente por aqueles vinculados às instituições policiais e sistemas de justiça baseados em padrões de perfilamento racial com um objetivo de criminalizar e punir a população afrodescendente" (2021, CIDH).

Apesar do perfilamento racial ser condenado pelos sistemas de proteção aos direitos humanos, sua prática tem sido validada pelo Poder Judiciário brasileiro. Isso fica evidente nos votos proferidos, até o momento, no habeas corpus em julgamento no STF.

Até a presente data, a votação está em quatro a um pela negação da ordem, pois, embora os ministros que votaram contra reconheçam a existência de perfilamento racial no Brasil, eles argumentam que o caso em questão não se enquadra nessa categoria, sendo considerado um "caso ruim". Essa afirmação foi prontamente refutada pelo ministro Fachin, que complementou seu voto e destacou que "este não é um 'caso ruim'. Pelo contrário, é um caso típico em que o policiamento baseado em estereótipos raciais e por acaso […] acaba por fundir o perfil do criminoso com a mera descrição de um local do crime".

É raro que os policiais admitam explicitamente que a abordagem inicial ocorreu devido à cor da pessoa (como observou o ministro Fachin, "se a referência à cor da pele fosse irrelevante, ela não estaria presente"), como consta no habeas corpus em julgamento no STF. O defensor público, em sua argumentação, ressaltou que seria ingênuo pensar que os policiais admitiriam abertamente que a abordagem ocorreu exclusivamente com base na cor da pessoa:

"não podemos cair na ingenuidade de que isso vai cair em uma situação explícita, porque nós estamos diante de práticas sutis, mas que são práticas de desvalor construídas historicamente em desfavor da população negra. Não foi inocente a menção do policial do paciente como negro, mas sim uma expressão inconsciente, mas arraigada no seu comportamento, latente e enraizada na entranha das atuações estatais, internalizada e verbalizada sob o manto de uma suposta imunidade".

O voto dos ministros que, por enquanto, denegam a ordem remete à expressão utilizada por Lilia Schwarcz de que vivemos em uma ilha de democracia racial. Embora os brasileiros (incluam-se os ministros) tenham consciência da existência do preconceito, eles tendem a deslocá-lo para outras esferas, contextos ou pessoas distantes. O preconceito é frequentemente atribuído a outros, em vez de ser reconhecido como uma realidade própria.

O voto de quatro ministros (todos homens brancos) pela negação da ordem reforça o argumento apresentado pelo professor Adilson José Moreira de que é necessário compreender e interpretar o direito a partir da perspectiva de uma pessoa negra. Os juristas brancos falham em compreender o direito do ponto de vista dos subordinados e demonstram indiferença em relação ao problema da exclusão racial, acreditando que o sistema jurídico deve apenas neutralizar ações irracionais que violem o princípio de tratamento igualitário (Moreira, 2019, p. 92).

Moreira mostra como o direito desempenha um papel central na manutenção das diferenças simbólicas e culturais entre os grupos raciais, permitindo que as pessoas brancas utilizem as instituições estatais para promover seus próprios interesses, o que justifica a existência de um estado racial (Moreira, 2019, p. 77). Ele relata como, ao ler um texto que explora como o direito funciona como um sistema de microagressão, pôde compreender que as normas jurídicas possuem significados distintos para juristas brancos e negros, sendo a raça um fator determinante na forma como as leis são interpretadas com base na posição social de cada indivíduo.

Moreira também menciona um incidente ocorrido quando era criança, no qual ele foi vítima de agressão física e uma amiga foi vítima de agressão sexual cometida por policiais. Ele questionou seu professor na faculdade se poderia utilizar o conceito de discriminação institucional para contestar a presunção de legalidade, mas recebeu a resposta de que, independentemente do significado desse conceito, as regras processuais seriam suficientes para lidar com questões desse tipo, caso elas existam (Moreira, 2019, p. 53).

Ele questiona como "a polícia que discrimina negros cotidianamente sempre tem crédito, pessoas que relatam violência cotidiana de agentes policiais não possuem qualquer idoneidade" (2019, p. 106) e como a norma legal, escrita em termos genéricos, afeta desproporcionalmente pessoas negras.

As lições de Moreira demostram que a medida de busca pessoal precisa ser interpretada de maneira diferente da forma como é feita atualmente pelo Poder Judiciário. Isso é importante para evitar a reprodução da discriminação.

Conforme leciona Silvio Luiz de Almeida, as instituições (o STF também) são reflexos de uma estrutura social e de um processo de socialização que incorporam o racismo como parte de seu funcionamento. O racismo não é algo originado pelas instituições, mas sim reproduzido por elas.

Ao constatarmos que apenas um ministro dentre os 88 dos tribunais superiores (STF, STJ, TST, TSE, STM) é uma pessoa negra e nos calarmos diante da indicação de um advogado branco ao Supremo, estamos implicitamente aceitando o pacto de branquitude? Será que estamos naturalizando a suposta neutralidade na aplicação do direito, que parece ser resultado da necessidade de interpretá-la de acordo com a experiência social das pessoas brancas, consideradas como a referência a partir da qual as normas culturais são estabelecidas e operam?

É fundamental reconhecermos que o verdadeiro desafio está em admitir a presença da discriminação, e não apenas o ato de discriminar, mesmo que a existência do racismo no Brasil seja algo incontestável.

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Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC nº 158.580/BA, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 19/4/2022, DJe de 25/4/2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 208.240/SP. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=503355&ori=1. Acesso em 09.jun.2023.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Situação dos direitos humanos no Brasil: Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021 / Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

MOREIRA, Adilson José. Pensando como um homem negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019.

NAÇÕES UNIDAS. Prevenindo e Combatendo o Perfilamento Racial de Pessoas Afrodescendentes: Boas Práticas e Desafios. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/105298-perfilamento-racial-debates-realizados-pela-onu-discutem-recorr%C3%AAncia-de-casos-e-desafios. Acesso em 09.jun.2023.

SCHWARCZ. Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

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