A necessária desjudicialização da relação de consumo
14 de junho de 2023, 8h00
Um debate que se trava na área jurídica do Estado moderno, na sua visão de democrático e de direito, é sobre a forma do próprio Estado garantir os direitos firmados no seu Estatuto Constitucional. Não basta assegurar direitos, sem que se possa ter o efetivo acesso para consolidar os direitos consagrados na Carta Maior. Um sistema jurídico moderno e igualitário deve assegurar, e não apenas proclamar os direitos de todos [1].
No Brasil, o Constituinte de 1988 definiu enormes avanços para a sociedade. A Carta foi montada em uma sociedade que carecia de direitos e de um Estado que justificasse sua existência para todos, e não para alguns, como ocorrera até então.
Dentre os novos direitos assegurados como cláusula pétrea, no artigo 5º, XXXII, em uma Carta de ótica capitalista intervencionista, está a obrigação do Estado promover a defesa do consumidor.
Marco importante de um sistema econômico equilibrado, dentro de uma sociedade de consumo, a garantia-imposição deve ser conjugada com outras clausulas, do próprio artigo 5º, como a facilidade de acesso à justiça, a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos e o andamento célere dos processos, além da elaboração do Código de Defesa do Consumidor (CDC), determinação contida no artigo 48 dos ADCT.
Assim, diante da ordem constitucional e com a consolidação da norma consumerista, a realidade das relações de consumo no Brasil mudou. O novo arcabouço jurídico permitiu um equilíbrio entre consumidores e fornecedores, mas não impediu os conflitos e violações, o que ensejou elevada judicialização de demandas de direito do consumidor. É necessário, então, encontrar formas e caminhos para que o mandamento constitucional possa ser, na plenitude, consolidado além da via judicial, a qual se mostra sobrecarregada e não atual para solução de conflitos de consumo
Esta realidade do elevado volume de processos pode ser verificada na 19ª edição do relatório "Justiça em números" [2]. No ano de 2021, em todo o Poder Judiciário, ingressaram 27,7 milhões de processos, sendo que a Justiça Estadual responde por aproximadamente 71% do total de processos ingressados no Poder Judiciário.
O relatório indica, para a Justiça Estadual, que dentre os assuntos mais demandados no primeiro grau o tema de "direito do consumidor — Responsabilidade do Fornecedor / Indenização por Dano Moral" aparece em segundo lugar com 3.074.985 (2,88%) processos. No segundo grau, nos assuntos mais demandados, "direito do consumidor — responsabilidade do Fornecedor / Indenização por Dano Moral", com 233.716 (1,33%), aparece em quinto lugar. E quando se analisa os assuntos mais demandados nos juizados especiais, direito do consumidor aparece em primeiro lugar com o tema "direito do consumidor — Responsabilidade do Fornecedor / Indenização por Dano Moral" — 1.811.946 (9,77%) e em quarto lugar com o tema "direito do consumidor − Responsabilidade do Fornecedor / Indenização por Dano Material" — 724.702 (3,91%)
Esses números demonstram a sobrecarga que os Magistrados enfrentam na solução das demandas de consumo, o que vem obstando o cumprimento da determinação da Constituição Federal de celeridade processual. Não se concebe mais a busca pelo direito somente no litigio. O que se almeja é uma correspondência de efetividade das decisões para conter as violações sofridas pelo consumidor, dentro de um resultado célere.
A judicialização mostra que o acesso à justiça, por ações, tem sido concedido ao consumidor para a discussão de direitos em juízo. Todavia esse caminho não deve, como dito, por si só, ser a via única para solucionar demandas de relação de consumo. No segundo decênio do século 21 novas formas devem ser valorizadas para equacionar os conflitos de relação de consumo.
O acesso à justiça deve ser realizado dentro de parâmetros atuais, mais modernos e efetivos que a simples postulação de ação litigiosa no Poder Judiciário. Esse acesso há que vir, também, pela estrada da não judicialização, por via administrativa e por via não contenciosa. Acesso à justiça não pode ser visto como somente acesso ao Judiciário, mas sim como acesso a garantia do Estado de oferecer justiça, nas diversas vias.
Desjudicializar é preciso. É imperioso. É caminho sem volta. Não é mais possível deixar que a única porta de acesso à justiça seja pelo processo judicial nas demandas de consumo.
Por isso é preciso avançar nas formas extraprocessuais de solução de litígio entre consumidores e fornecedores. No campo do direito do consumidor, em que inúmeras relações são firmadas diariamente, o esgarçamento dessas relações consumeristas é capaz de gerar dano imenso ao direito e a toda economia.
A desjudicialização se apresentar como o moderno mecanismo de resolução de conflitos. Essa via de equacionar litígios se faz, na realidade do direito do consumidor, quer seja na esfera administrativa, quer seja na esfera judicial. Dentre esses caminhos, três se fazem importantes: os Procons, a plataforma "consumidor.gov.br" e os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs).
A primeira das formas, de resolução fora da esfera do processo, está na atuação dos Procons. Criados antes da própria Lei 8078/90 os Procons estão implantados em inúmeros municípios brasileiros. Desde a criação do Procon São Paulo, na década de 70 do século passado, a atuação desses órgãos de proteção sempre foi de destaque, solucionando demandas de consumidores e sendo palco de diálogos, orientação, acordos e resolução de conflitos. Presentes em inúmeros municípios, tem ganhado força e expansão ao longo dos anos. Em Minas Gerais, por exemplo, existem aproximadamente 198 Procons, atuando em todas as regiões do estado.
Como órgão administrativo, o Procon exerce papel importante na composição de consumidores e fornecedores, equacionando inúmeras demandas existentes sem que seja necessário o ajuizamento de processo judicial. Com o necessário avanço legislativo pode obter maiores instrumentos de solução de conflito, mas, mesmo na realidade atual, é campo amplo de aplicação de normas consumeristas e de composição de litigio.
A segunda via extraprocessual, que merece toda atenção e aprimoramento de uso e participação de consumidores e fornecedores foi a desenvolvida pela Secretaria Nacional do Consumidor: a plataforma eletrônica www.consumidor.gov.br.
Trata-se de serviço público que oferece diálogo direto entre consumidores e fornecedores, via internet, para solução de conflitos. De fácil acesso, por computador ou celular, com a utilização de aplicativo desenvolvido para facilitar o uso, tem sido um instrumento para resolver demandas, equacionando inúmeras reclamações que aportariam ao Judiciário.
O uso da plataforma é método moderno de resolução de conflitos de relação de consumo e deve ser estimulado, com a maior participação, até obrigatória de fornecedores, para que possa corresponder aos anseios de uso fácil e eficiente.
A terceira forma, é a presente na atuação dentro do Poder Judiciário nas vias não contenciosa de solução de litígios. Decorre da ação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), desde a Resolução nº 125/2010 e do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, ao se contemplar a conciliação e mediação na ação jurisdicional (artigo 3º), bem como determinar a criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos (artigo 166) e a designação de audiência de conciliação ou de mediação (artigo 334) no início do processo.
Essa realidade normativa indica uma valorização da via não litigiosa para a solução de conflitos, o que na ótica da defesa do consumidor abre uma perspectiva salutar. Nessa seara, a implantação dos Cejuscs, permite uma mediação/conciliação, viável nas relações de consumo, com mediadores/conciliadores capacitados e com conhecimento das normas e princípios consumeristas, abrindo novos paradigmas para a solução dos litígios. Ao invés da decisão categórica do Magistrado, a conciliação/mediação impõe que as partes possam compor.
Essa forma de solução de conflitos é de tamanha importância que a Lei do consumidor superendividado — Lei 14.181/2021, desenvolveu todo um processo de repactuação de dívida (conciliação do consumidor superendividado), com busca de fortalecer a solução pré-processual, quer ocorra nos órgãos de proteção ou no próprio judiciário, com imposição de sanção aos fornecedores que não lograrem a composição.
A utilização da composição na estrutura dos Cejusc, demonstra a atualização do Poder Judiciário a uma nova realidade extraprocessual, amplia a capacidade de litígios a custo barato, permite que o diálogo entre as partes venha concretizar a solução de conflitos e abre uma nova frente de atuação para os operadores do direito. Sua importância é tão destacada que o Poder Judiciário Mineiro o tem instalado em todas as 298 Comarcas, como porta de acesso ao cidadão para solução extrajudicial de demandas.
Na atualidade, a desjudicialização dos conflitos tornou um tema recorrente na pauta do Poder Judiciário e deve ser também na sociedade. As formas alternativas de resolução de litígio foram elevadas à condição de política pública e devem ser perseguidas para que o cidadão seja o grande beneficiário da aplicação concreta das normas.
Os exemplos citados indicam permanentes caminhos e instrumentos de consolidação da proteção do consumidor, cumprindo a função fixada para o Estado na Constituição Federal e permitindo a reparação de qualquer violação a direitos.
Nas relações de consumo, desjudicializar visa aprimorar o acesso à justiça, assegurar a efetiva promoção pelo Estado da defesa do consumidor e encontrar soluções rápidas e estáveis, garantindo a estabilidade de contratos e da própria economia. É um caminho sem volta, o qual, necessita, todavia, de atuação constante dos organismos de proteção do consumidor e de aperfeiçoamento da Justiça.
Para tanto, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e o Conselho Nacional de Justiça devem desenvolver atuação conjunta e harmônica, pois têm um papel importante na reunião de interesses para um aprimoramento do sistema jurídico de solução de conflitos de relação de consumo, permitindo que as vias extrajudiciais sejam valorizadas e implantadas em todo território nacional, bem como haja um empenho em qualificar constantemente os Magistrados.
Não há mais tempo, diante da imensidão de processos, para postergar ações. O consumidor e o fornecedor necessitam de agilidade no equacionamento dos conflitos. Mais do que compilar números, é necessária conduta, que importe em redução de acervo de processos de direito do consumidor e que a solução dos conflitos seja mais célere.
Nessa nova realidade, magistrados, membros do Ministério Público, advogados, defensores públicos, consumidores e fornecedores devem estar preparados para reconhecerem na esfera extrajudicial a forma adequada de resolução de conflitos de consumo. Diante da realidade brasileira de elevada utilização de ação, desjudicializar é o verbo a ser conjugado, em prol de uma sociedade de consumo mais equilibrada, justa e efetiva.
[1] CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p, 11-13.
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