Opinião

A ADC 49 e as transferências de créditos entre os mesmos estabelecimentos

Autores

  • é graduado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo e do Conselho Seccional da OAB-SP membro do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Atua especialmente nas áreas de consultivo/contencioso tributário empresarial arbitragem e direito desportivo.

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  • é formada pela Unip (Universidade Paulista pós-graduada em Direito Tributário pelo CEU (Centro de Extensão Universitária) sob a coordenação do professor Ives Gandra da Silva Martins e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).

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11 de junho de 2023, 6h11

Na referida ação, o governo do Rio Grande do Norte buscou obter a declaração de constitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar 87/96, que preveem a ocorrência de fato gerador do ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte.

A mencionada Ação Declaratória de Constitucionalidade — ADC 49  foi distribuída sob a relatoria do ministro Edson Fachin.

Segundo consta na inicial da referida ação, há diversos precedentes na Justiça afastando a incidência do ICMS na hipótese, contando inclusive com súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ), segundo a qual "não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte" (Súmula 166).

Porém, conforme a ADC, esse enunciado não declara expressamente a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Kandir sobre o tema. Para o governador, essa circunstância gera instabilidade jurídica e exige o pronunciamento do STF.

O STF (Supremo Tribunal Federal) houve por bem julgar improcedente a ADC declarando a inconstitucionalidade do artigo 11, §3º, II e do artigo 12, I, no trecho "ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular" e do artigo 13 §4º da LC 87/96, reforçando o entendimento anterior exarado, quando do julgamento do Tema 1.009 (ARE 1.255.885-RG), que proferiu a seguinte redação:

"Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia."

Logo, nos autos da ADC 49 restou bem caracterizado que a saída física da mercadoria é o elemento caracterizador do fato gerador do ICMS.

Sendo assim, em transferências de créditos entre os mesmos estabelecimentos não incide ICMS entre transferências entre Estados realizados pelo mesmo contribuinte.

Isso porque, visando a uniformidade da tributação em nosso país, de dimensões continentais, previu, no artigo 146, as matérias que devem ser reguladas por lei nacional, ou seja, lei complementar, cuja aprovação dependente de quórum especial.

Reza, efetivamente, o artigo 146 da CF:

"Artigo 146 – Cabe à lei complementar:
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
(…)
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários (…)."

Por sua vez, o Código Tributário Nacional, no artigo 97, especialmente o seu inciso III, em perfeita sintonia com o inciso III do artigo 146 da CF, prevê que:

"Artigo 97- Somente a lei pode estabelecer:
I a instituição de tributos, ou a sua extinção;
(…)
III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do §3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo; (…)."

A definição de fato gerador da obrigação tributária implica a definição se seus elementos constitutivos, a saber: a materialidade, o sujeito passivo, o sujeito ativo, a base de cálculo e a alíquota, que tirante as hipóteses expressamente excluídas pela Constituição, devem ser instituídas por lei [1].

Em face do regime estabelecido pela Lei Maior, a competência privativa para instituir e cobrar determinados impostos só será validamente exercida pelos entes tributantes, se a legislação ordinária respeitar a materialidade prevista na Constituição e estiver em perfeita sintonia com a lei complementar, que estabelece as normas gerais.

Entre os impostos cuja competência foi atribuída a estados e Distrito Federal, a Constituição, no seu artigo 155, II, estabelece que lhes cabe:

"Artigo 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(…)
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; …".

Embora se trate de imposto que possui vocação nacional, o constituinte, ao mesmo tempo em que optou por mantê-lo na competência de estados e Distrito Federal, procurou estabelecer mecanismos para assegurar que sua instituição e cobrança guardasse uniformidade em todo o território nacional. Assim, além de se submeter às normas gerais do Código Tributário Nacional, a legislação ordinária das várias unidades da federação deve adequar-se à lei complementar específica desse imposto.

Neste sentido, temos a Lei Complementar nº 87/1996, que estabeleceu as normas gerais do imposto de competência estadual previsto no art. 155, II, da CF — sofrendo, posteriormente, alterações pelas LC 92/97, 99/99 e 102/2000, 114/02; 115/02, 120/05 e 122/06.

A principal delas, ou seja, operações relativas à circulação de mercadorias, têm como pressuposto de fato um ciclo econômico, composto de um conjunto encadeado de operações mercantis, que vão desde a produção do bem até a sua entrega ao consumidor final. Esse aspecto da materialidade do imposto está previsto nos itens I, IV, V, §1º, I e III, aos quais a legislação se refere como fato geradores do imposto, indicando a saída como o momento em que se reputa ocorrida a incidência.

A alínea "a" do artigo 2º, alude à saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular.

Na sua primeira parte, a norma trata da saída que ocorre em virtude de negócio jurídico celebrado entre dois sujeitos, mediante o qual a posse ou a propriedade é transferida de um para outro. Porém, a seguir, acrescenta: "ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular", situação em que não há mudança de titularidade da mercadoria e que, ocorrida no território do mesmo estado, equivale à mera movimentação da mercadoria dentro do estoque da mesma empresa.

Essa previsão, que já existia no regime anterior à Constituição de 1988, gerou intensos debates para saber se a mera saída física da mercadoria seria suficiente para caracterizar o fato gerador do imposto, ou se a incidência só se reputava ocorrida com transferência de sua titularidade.

Importa observar que, embora a mera circulação física da mercadoria não seja suficiente para caracterizar a incidência do imposto, quando a transferência se dá entre estabelecimentos da pessoa jurídica, situados na mesma unidade da federação ou, quando as transferências ocorrerem entre estabelecimentos do mesmo contribuinte situados em Estados diferentes, a circulação física assume relevância para configuração do fato gerador, a fim de que não se verifiquem distorções na arrecadação das diversas entidades da federação.

É que, nessas situações, se não tributada a mercadoria no estado de situação do estabelecimento remetente, toda a arrecadação ocorreria no estado de destino, prejudicando o estado produtor.

Importante destacar, ainda, muito embora nas transferências interestaduais entre estabelecimentos da mesma empresa, haja apenas uma pessoa jurídica, como visto acima, a LC 87/96, o artigo 11, § 3º, II, consagra a autonomia de cada estabelecimento, inclusive, para efeito dos lançamentos de créditos e débitos do imposto, consoante artigo 25 do mesmo diploma com a redação que lhe deu a LC 102/00:

"Artigo 11. (…)
 §3º Para efeito desta Lei Complementar, estabelecimento é o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias, observado, ainda, o seguinte:
I – …
II – é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular;".
"Artigo 24. A legislação tributária estadual disporá sobre o período de apuração do imposto. As obrigações consideram-se vencidas na data em que termina o período de apuração e são liquidadas por compensação ou mediante pagamento em dinheiro como disposto neste artigo:
I – as obrigações consideram-se liquidadas por compensação até o montante dos créditos escriturados no mesmo período mais o saldo credor de período ou períodos anteriores, se for o caso;
II – se o montante dos débitos do período superar o dos créditos, a diferença será liquidada dentro do prazo fixado pelo Estado;
III – se o montante dos créditos superar os dos débitos, a diferença será transportada para o período seguinte".
"Artigo 25. Para efeito de aplicação do disposto no artigo 24, os débitos e créditos devem ser apurados em cada estabelecimento, compensando-se os saldos credores e devedores entre os estabelecimentos do mesmo sujeito passivo localizados no Estado." 

É mediante essa sistemática de débitos e créditos que se realiza o princípio da não cumulatividade.

Se esse conceito de autonomia dos estabelecimentos, é relevante para fins de fiscalização e administração do tributo, ele assume particular relevância nas transferências interestaduais entre os estabelecimentos do contribuinte situados em diferentes unidades da federação, não só para promover a observância do princípio da não cumulatividade, mas também para assegurar a cada um dos Estados partícipes dessas operações a parte que lhe cabe na arrecadação do tributo até o consumo.

Após o referido julgamento, o Consefaz requereu que a inconstitucionalidade dos citados artigos da LC 87/96 passe a ter efeitos apenas a partir do exercício de 2023, em função da necessidade de restruturação das legislações estaduais e das práticas empresariais.

Segundo o estado do Rio Grande do Norte, haveria grande perda de arrecadação dos Estados e isso provocaria um grave desequilíbrio na distribuição federativa da arrecadação do ICMS. E, também, estaria vedado o aproveitamento dos créditos dos contribuintes. Além do mais, os estados de origem estariam autorizados a exigir o estorno de tais créditos e os estados de destino também estariam autorizados a exigir o ICMS integrado nas operações de saída interna.

A seu ver, tal decisão impactaria nos incentivos fiscais, na modalidade de créditos presumidos, pois os estados de origem não conseguem aplicar os créditos presumidos e os estados de destino não aceitariam tais benefícios concedidos por outro Estado federado também, no tocante à compatibilização das obrigações acessórias haverá modificação na sua sistemática.

Para o relator ministro Edson Fachin, a transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos da mesma titularidade é irrelevante para fins de ICMS, vez que não explicaria a seu ver, qualquer efeito em relação aos créditos, não havendo que se falar em estorno e que não há repercussão nos deveres instrumentais.

O Cosit [2] já se manifestou no sentido de que enquanto não ocorrer o trânsito em julgado da referida ação, permanecem válidas as disposições legais no estado de São Paulo.

A nosso ver, muito embora mereça aplausos o entendimento manifestado a favor dos contribuintes, é de se ressalvar que tal julgado não aclarou definitivamente a questão e não abordou algumas questões importantes, como a manutenção do crédito decorrente dessa operação.

Diante de tal julgado, cabe as seguintes indagações: estaria o referido crédito anulado? As referidas operações seriam hipótese de isenção ou se trata de regra de não incidência?

Para nós, o direito ao crédito de ICMS, decorrente de operações entre estabelecimentos da mesma titularidade e situados em diferentes Estados, permanece íntegro no Estado de origem e não deve ser anulado, pois haverá sua tributação no Estado de destino. Portanto, o direito ao crédito tributário permanece íntegro, não havendo que se falar em isenção.

Cumpre, destacar, ainda, que tramitam no Congresso dois projetos de lei complementar versando sobre a matéria. O primeiro encontra-se em tramitação no Senado (PLS 3321/2018) e, o outro, na Câmara dos Deputados (PP 148/2021).

No PLS 2.231/2018, temos, ainda, a previsão de inclusão de um novo parágrafo ao artigo 12 da LC 87/96, a fim de garantir a manutenção do crédito tributário, já aprovado pelo plenário, com 62 votos a favor e nenhum contrário. Já no PP 148/2021 se propõe a inclusão de um novo parágrafo ao artigo 12, prevendo a faculdade do contribuinte em promover o destaque do ICMS nas operações, de forma a garantir a operacionalidade do tributo.

O Confaz, no âmbito de sua delimitação, como forma de dar uma solução a tal impasse, também poderia instituir um convênio, autorizando os Estados a instituírem um benefício fiscal em que se outorgaria o crédito no destino, destacando o débito na nota fiscal de origem, ou, ainda, um convenio que institua uma sistemática de estorno do crédito no estado de origem e o crédito no destino.

Dada a matéria de grande relevância no país, temos esperança que o Projeto do Senado avance rapidamente, a fim de dar uniformidade ao entendimento manifestado pela Suprema Corte, nos autos da ADC 49, restando-nos, agora, aguardar os próximos passos junto ao Poder Legislativo.


[1] Segundo Yonne Dolácio de Oliveira, "o princípio da reserva absoluta, adotado no sistema tributário brasileiro, implica reservar exclusivamente à lei a definição dos elementos ou notas características do tipo legal tributário". E conclui, "obviamente esse tipo é cerrado, exige a subsunção do fato à norma legal, vez que a decisão do legislador é exaustiva e definitiva, vedando que o aplicador do Direito substitua o legislador , inclusive pelo emprego da analogia". Princípio da legalidade e da tipicidade, in Curso de direito Tributário, Cejup, 1993, p.155.

[2] Resposta à Consulta Tributária 24.375/2021, Sefaz, disponibilizada em 28/09/2021.

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  • é graduado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo e do Conselho Seccional da OAB-SP, membro do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Atua especialmente nas áreas de consultivo/contencioso tributário, empresarial, arbitragem e direito desportivo.

  • é advogada pós-graduada em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária (CEU), sob a coordenação do professor Ives Gandra da Silva Martins e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).

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