Opinião

Decisão unipessoal na Reclamação 59.836 converteu STF em tribunal ordinário

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10 de junho de 2023, 6h05

Segundo Otto Fenichel, a capacidade de negar partes desagradáveis da realidade é a contrapartida da realidade alucinatória.[1]

Considerações iniciais
Por meio de decisão unipessoal proferida na Reclamação nº 59.836, o ministro Roberto Barroso cassou o acórdão proferido pelo TRT da 14ª Região nos autos nº 0001311-52.2016.5.14.0001, que declarava a existência de relação de emprego entre uma advogada e um escritório de advocacia.

Após a leitura da decisão unipessoal e do acórdão cassado, pareceu-me necessário tecer algumas considerações, evitando que se instalem a escotomização ("olho mas não enxergo, se enxergo não quero ver") e a surdez emocional ("ouço, mas não escuto, se escuto não quero entender).

As diversas formas da relação de trabalho e o contrato real
Após invocar uma série de precedentes, o ministro Barroso afirmou que:
a) "o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho", sendo lícito o trabalho terceirizado, bem como os contratos de "parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização)".

Essa assertiva é irretocável, uma vez que a relação de emprego é gênero do qual a relação de emprego é espécie.

Todos os cursos, manuais e tratados de direito do trabalho (dos mais remotos aos mais atuais) distinguem a relação de emprego de outras modalidades de relação de trabalho, citando, entre outros, o contrato de trabalho autônomo, o contrato de estágio, o contrato de trabalho voluntário, o contrato de empreitada, o contrato de comissão, o contrato de agência, o contrato de corretagem, o contrato de sociedade etc.

Basta citar por todos, então, Maurício Godinho Delgado: "A relação de emprego, do ponto de vista técnico-jurídico, é apenas uma das modalidades específicas de relação de trabalho juridicamente configuradas".[2]

b) é lícito o trabalho terceirizado "ainda que para a execução da atividade-fim da empresa".

Essa assertiva merece pequeno retoque, pois das teses emitidas na ADPF 324, na ADC 48, nas ADIs 3.961 e 5.625 e no Tema nº 725 da Repercussão Geral se estrai a constitucionalidade da terceirização de mão de obra no Brasil.

A licitude, entretanto, depende de a empresa contratada preencher certos requisitos (Lei nº 6.019/1974, 4º-B) e possuir capacidade econômica compatível com a execução do serviço contratado. Trata-se de condição estabelecida pelo artigo 4º-A da Lei n. 6.019/1974. [3]

c) são lícitas todas as outras formas de prestação de serviços, diversas do contrato de trabalho, "desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação".

Nada é mais adequado que a afirmação de que o contrato deve ser real (contrato realidade; princípio da primazia da realidade). Em outras palavras: "em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos".[4]

Haverá a sua descaracterização de outras formas de trabalho, portanto, se no seu cumprimento forem identificados todos os elementos fático-jurídicos que caracterizam a relação de emprego (pessoalidade do trabalhador, não eventualidade, onerosidade e subordinação).

A situação concreta
Fixadas as premissas teóricas, avançou-se para a situação concreta com as seguintes afirmações:

a) "a autora não é hipossuficiente, cuja tutela estatal é justificada para garantir a proteção dos direitos trabalhistas materialmente fundamentais. Trata-se de profissional com elevado grau de escolaridade e remuneração expressiva, capaz, portanto, de fazer uma escolha esclarecida sobre sua contratação. Além disso, inexiste na decisão reclamada qualquer elemento concreto de que tenha havido coação na contratação celebrada".

Tais argumentos são contraditórios com os marcos teóricos eleitos.

Se o contrato deve ser real (contrato realidade), pouco importa a forma eleita, a existência de hipossuficiência ou de autossuficiência e da verificação de manifestação de vontade livre ou viciada por coação. Os enunciados normativos incidem sobre os fatos verificados no mundo empírico.

Além disso, sendo a prestação de serviços uma relação jurídica de trato sucessivo (continuado), nada garante a inalterabilidade das suas condições. Podem ocorrer modificações em seu curso. Um contrato pode iniciar de determinada forma e sofrer alterações pelo comportamento de uma ou de ambas as partes. Um contrato de comodato, por exemplo, perde essa qualidade se no seu curso o comodante passar a exigir do comodatário o pagamento de valores pelo uso e gozo da coisa emprestada. De igual modo, constatado que na execução da prestação de serviços há pessoalidade do trabalhador, não eventualidade, onerosidade e subordinação a figura presente será a da relação de emprego (CLT, 3º). Ou, como afirmou o ministro Barroso: se houver "subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista" se estará "fraudando a contratação".

b) "o reconhecimento da relação de emprego se pautou, eminentemente, no fundamento de que as atividades desempenhadas pela trabalhadora se enquadravam nas atividades-fim da empresa".

Não é isso, entretanto, o que se extrai do acórdão cassado. In litteris:

(…) Em que pese o reclamado tenha trazido aos autos um contrato civil de sociedade para afastar o vínculo de emprego, não apresentou quaisquer provas no sentido de que a reclamante, enquanto sócia, tinha participação nos resultados da sociedade, e aí diga-se resultado geral, e não apenas os honorários das causas nas quais ela efetivamente atuava.

Além disso, o documento de fl. 195 prova que apenas 0,01% foi ofertado à Autora a título de cotas da sociedade, o que implica em quantitativo ínfimo, além de a ré não ter trazido aos autos prova de qualquer alteração do contrato social incluindo a reclamante em seu quadro societário, não constando esta do contrato social acostado às fls. 137/157.

Esses fatos, somados à falta de registro do contrato social na OAB, são fortes indícios de fraude à legislação trabalhista, de forma a se ocultar a verdadeira natureza empregatícia da relação jurídica havida entre as partes.

E não é só isso!

A prova documental constante dos autos corrobora com esse entendimento.

A subordinação jurídica, requisito do vínculo de emprego, restou provada pelos emails constantes dos autos, senão vejamos:

Email de fl. 32: prova a necessidade de autorização para a Reclamante não recorrer de sentença.

Email de fl. 40: prova a necessidade de autorização para a Reclamante participar de audiência.

Email de fl. 43: prova que não era a Autora quem elaborava os quesitos a serem respondidos em perícia judicial.

Email de fls. 53/58: prova que a Reclamante tinha que cumprir metas de despesas.

Email de fls. 60/62: prova a necessidade de autorização para locação de fotocopiadoras.

Email de fl. 63: prova que a Autora não tinha autonomia para controlar prazos processuais.

Email de fl. 64: prova que a elaboração de peças processuais importantes, a exemplo de contestação, não era efetuada pela Autora.

Emails de fls. 67/69, 75, 77 e 82/84: provam que o advogado responsável pelos prazos e peças processuais de Porto Velho, na época da prestação de serviços pela Autora, era o Dr. Luiz Antônio Simões, um dos sócios fundadores da sociedade Reclamada, e também a advogada Carla Severo Batista Simões, igualmente sócia fundadora.

Email de fls. 92/93: prova que a Autora tinha que cumprir DETERMINAÇÃO de como devia ser a folha de assinatura de todas e quaisquer petições da sociedade.

Como se vê, a autora não tinha nenhuma autonomia: tudo precisava de autorização de alguém/setor da sociedade.

Analisando a sentença, verifico que o juízo "a quo" utilizou, como fundamento para afastar a subordinação jurídica, os depoimentos de três testemunhas: (…).

Porém, aludidos depoimentos devem ser analisados com reserva, porquanto, tanto a sra. (…) como o sr. (…) são sócios fundadores da Reclamada e, portanto, possuem interesse na causa.

Quanto ao sr. (…), a julgar pelo sobrenome (…), tudo indica ser parente do sócio majoritário do reclamado, sr. (…), o que também leva a se considerar seu depoimento com extrema reserva.

Tanto é consistente a suspeição dessas testemunhas que o sr. (…) afirmou que "a reclamante não seguia orientações de ninguém, sendo autônoma", e que "a reclamante não pedia permissão para fazer uma viagem", o que não condiz com a verdade dos fatos, a julgar pelo emails mencionados acima.

Logo, a prova documental, neste caso, há que prevalecer frente a testemunhal.

Presentes, igualmente, os demais requisitos legais (CLT, artigo 2º e 3º) do vínculo empregatício, senão vejamos:

Onerosidade: a Reclamante alegou na petição inicial salário de R$ 2.100,00, tendo o preposto, em depoimento pessoal, confessado que "a reclamante recebia entre R$ 2.000,00 e R$ 3.000,00" (fl. 610). Portanto, deve prevalecer o salário apontado pela autora.

Pessoalidade: o preposto também confessou que a reclamante era a única associada da empresa em Rondônia, não tendo o reclamado provado que ela poderia delegar, por sua própria vontade, suas atividades na empresa para outra pessoa. E, ainda que assim restasse provado, é típico dessa profissão, mesmo em se tratando de advogado-empregado, a substituição por outro em audiências, nos impedimentos (por motivos diversos) daquele originariamente contratado, de forma a não se prejudicar o cliente.

Trabalho não eventual: o contrato de associação (aqui considerado fraudulento) foi assinado em 2-4-2014, e o distrato em 30-3-2015, ou seja, houve quase um ano de labor.

A questão da exclusividade ou não, ou o exercício de outras atividades de forma autônoma não são essenciais para a caracterização de vínculo empregatício, como já restou observado em sentença.

Portanto, em que pese a simples falta de registro na OAB, por si só, não invalide um contrato de sociedade de advogados, nos presentes autos o conjunto probatório é conclusivo no sentido de que o contrato firmado com a reclamante realmente visou fraudar a legislação trabalhista.

E não se diga que a reclamante assinou o contrato de sociedade de livre e espontânea vontade e que, portanto, seria aplicável o princípio da proibição do "venire contra factum proprio", na medida em que o trabalhador é a parte hipossuficiente na relação de emprego, por necessitar da contraprestação pecuniária para seu sustento, pelo que o vício de vontade, na hipótese, é presumido.

Tal prática do escritório (…), de firmar contratos de sociedade fraudulentos, buscando encobrir o vínculo de emprego, já foi constatada por esta 1ª Turma em outra ação, nº 0000408-14.2016.5.14.0002, de autoria de (…), cujo acórdão foi disponibilizado no DEJT em 15.8.2017 e restou assim ementado:

RECURSO ORDINÁRIO. SOCIEDADE ADVOCATÍCIA X VÍNCULO EMPREGATÍCIO. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. ÔNUS DA PROVA. A caracterização da relação de emprego deve ser verificada tendo como base o princípio da primazia da realidade. Não só isso, nas hipóteses em que a prestação do serviço é incontroversa, compete ao contratante o ônus da prova, do que a reclamada não se desincumbiu neste caso.

E, na fundamentação respectiva, constou expressamente (grifei):

Por último, quanto a tese de que a reclamante na verdade fazia parte da sociedade de advogados, conforme os documentos apresentados, Id. 2871baf (Termo de ingresso na sociedade) e Id. 7d501ef (Instrumento de Distrato), na verdade, verifica-se pelo seu teor que tais documentos acabam por corroborar a alegação da reclamante de que o vínculo de emprego estava sendo mascarado. Extrai-se do termo de ingresso acima citado, que a reclamante teria sido integrada à sociedade com 0,01% das cotas, percentual que em sã consciência não pode espelhar a realidade de um efetivo sócio de uma sociedade profissional. Diante de todo o exposto, vê-se que os argumentos do reclamado não são suficientes para afastar a caracterização do vínculo de emprego.

Por todo o exposto, dou provimento ao recurso, no particular, para reconhecer a existência de vínculo empregatício entre as partes litigantes, no período de 2-4-2014 a 29-4-2015 (já considerado o período do aviso prévio indenizado), na função de advogada, com salário mensal de R$ 2.100,00. [5]

Mediante valoração analítica das provas produzidas nos autos, o relator afirmou ter sido comprovada a subordinação (em especial pelos e-mails). Destacou, ainda, registrando cada uma das provas que embasaram o convencimento, a presença, também, da onerosidade (salário de R$ 2.100,00), pessoalidade e não eventualidade.

Eis aí, portanto, a verdade fática, definida de modo soberano pelos tribunais ordinários, da qual se parte para o enquadramento jurídico.

Assim, diante da afirmação de que há prova da pessoalidade, da onerosidade, da não eventualidade e da subordinação:

b) está caracterizada a relação de emprego (CLT, 3º). Valho-me, novamente, das palavras do ministro Barroso: se houver "subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista" se estará "fraudando a contratação";

a) não há a violação aos precedentes emitidos na ADPF 324, na ADC 48, nas ADIs 3.961 e 5.625 e no Tema nº 725 da Repercussão Geral. Para que essa violação ocorra é imprescindível a alteração da verdade fática. Ou seja: é necessário dizer que pelo menos um dos requisitos da relação de emprego não foi provado.

Considerações finais
A decisão unipessoal na Reclamação nº 59.836, portanto, indevidamente converteu o STF em tribunal ordinário (dotado da função reexaminadora da prova) e censor da justiça da decisão em matéria fática. Mas a reclamação, em sua conformação constitucional e legal, longe está de ter essas finalidades.

Somente o tempo dirá, então, se o legítimo direto de "errar por último" compreende um "compromisso definitivo com o erro".

[1] Apud. ALMEIDA, W. C. Defesas do ego: leitura didática de seus mecanismos. São Paulo: Ágora, 1996, p. 40.

[2] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 310.

[3] Art. 4º-A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.

[4] PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2015, p. 341.

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