Abuso de autoridade

Silêncio do suspeito não torna verídica a versão do policial, decide STJ

Autor

9 de junho de 2023, 12h17

O fato de um suspeito de um crime exercer o direito se se manter em silêncio diante da autoridade policial não autoriza que o juiz tome automaticamente como verídica a versão dada pelos agentes policiais.

Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a recurso especial para absolver um homem da condenação a 5 anos e 10 meses de reclusão em regime inicial fechado pelo crime de tráfico de drogas.

Nelson Jr./STF
Para ministro Rogerio Schietti, do STJ, condenação ofendeu artigo 186 do CPP
Nelson Jr./STF

O réu foi preso por policiais militares ao ser encontrado agachado atrás de um carro em conhecido ponto de tráfico de drogas. Os PMs apreenderam pequena quantidade de entorpecente junto ao portão da casa. Na delegacia, perante a autoridade policial, ele ficou em silêncio.

Já em juízo, negou ser traficante. Disse que se dirigia ao local para comprar drogas e que tentou se esconder atrás do veículo ao notar a aproximação da viatura. Os policiais, por sua vez, afirmaram que ele confessou o crime no momento da abordagem.

O juiz de primeiro grau absolveu o réu por falta de provas. Ressaltou que existem lacunas nos testemunhos dos policiais, o que torna impossível saber exatamente as circunstâncias da apreensão da droga. Já o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença e impôs a condenação.

Para o TJ-SP, se a alegação de que não é traficante fosse verdadeira, o réu a teria apresentado na delegacia e não apenas em juízo. Para a corte, o direito ao silêncio, “se por um lado não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa é mera tentativa de se livrar da condenação”.

Relator, o ministro Rogerio Schietti entendeu que a interpretação da corte paulista violou o artigo 186 do Código de Processo Penal. A norma autoriza o acusado a ficar em silêncio. O parágrafo único acrescenta que “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. A votação foi unânime.

Presunção de inocência
Para o ministro Schietti, o TJ-SP adotou uma lógica segundo a qual ou o cidadão se manifesta perante a autoridade policial ou abre mão de toda e qualquer credibilidade caso venha a responder em juízo. A ilegalidade é manifesta porque todos têm o direito constitucional a permanecer em silêncio.

Essa postura é insuficiente para superar a norma da presunção de inocência. Cabe à acusação comprovar as alegações que faz perante o juiz. Se o silêncio do acusado não tem tratamento equivalente a uma confissão, não serve para satisfazer essa exigência básica do processo penal.

“Uma ida ao mundo real traz fortes razões para que suspeitos inocentes tenham fundado receio de acabar em maus lençóis ao abrir mão de seu direito ao silêncio”, destacou o ministro. Para ele, o grande interesse em se conseguir confissões produz, a reboque, o problema das falsas confissões.

O voto cita o trabalho da pesquisadora Lívia Moscatelli  no sentido de que a investigação no Brasil é direcionada para privilegiar a prova testemunhal e a confissão, em fenômeno explicado pelo processualista italiano Franco Cordero como o primado da hipótese sobre os fatos.

“É perfeitamente plausível que um inocente prefira silenciar em sede policial e adicionalmente decida contar a verdade em juízo, ao dizer que não traficava drogas”, afirmou o relator. “É igualmente possível que a negativa em juízo quanto à prática do delito seja verdadeira não só quando antecedida por silêncio, mas inclusive nos casos em que haja sido antecedida de confissão”, acrescentou.

Estopim
A análise do caso envolveu também o tema da injustiça epistêmica, que ocorre quando indivíduos de determinados grupos têm a credibilidade de seu relato reduzida porque tratados como menos capazes de conhecimento. Esse é um elemento presente das falsas confissões.

No caso dos autos, trata-se de réu negro e pobre, parte da clientela preferencial do sistema penal brasileiro. A hipótese de confessar aos policiais no local dos fatos por se sentir ameaçado — confissão da qual não há provas, pois os PMs não a gravaram e não usavam câmeras no momento — é tida como plausível pelo ministro Schietti.

Para ele, o TJ-SP praticou injustiças epistêmicas ao dar excesso de credibilidade conferido a policiais e ao reduzir a credibilidade do suspeito que, diante da autoridade policial, escolheu exercer o direito ao silêncio.

“Como se pode ver, a interpretação incorreta do silêncio do réu em sede policial serviu de estopim a uma serie de erros no raciocínio probatório empreendido em segunda instancia. Neste sentido, é preciso reconhecer que, se se pretende aproveitar a palavra do policial, impõe-se a exigência de respaldo probatório que vá além do silêncio do réu. Não, o silêncio não lhe descredibiliza e não autoriza que magistrados presumam verdadeiras, automática e acriticamente, as versões sustentadas por policiais”, concluiu.

REsp 2.037.491

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!