Opinião

Caso Americanas: o Direito Societário e a elaboração de demonstrações financeiras

Autor

  • Lucas Alves Canha

    é sócio do escritório Passinato & Graebin advogado com atuação estratégica nas áreas de Direto Contratual Societário e arbitragem pós-graduado pela CEU Law School no programa de LL.M. em Direito e Prática Empresarial e com certificação em Direito Societário Avançado.

9 de junho de 2023, 19h23

Em janeiro deste ano, a empresa Americanas S.A, sociedade anônima de capital aberto, divulgou um fato relevante [1] aos seus investidores, a saber, a identificação de inconsistências contábeis que evidenciavam a ausência de reconhecimento de passivos financeiros na ordem de R$ 20 bilhões de reais, os quais — certamente — impactarão as demonstrações financeiras e de resultados da companhia.

Ainda que tenha comunicado que o "efeito caixa" das referidas distorções seria "imaterial", ou seja, que não afetaria o pagamento de seus credores, fato é que a Americanas se viu pressionada a formalizar um pedido de recuperação judicial [2], argumentando estar enfrentando problemas de liquidez a curto prazo, notadamente em razão da decretação de vencimento antecipado de suas dívidas pelos bancos BTG Pactual e Votorantim, que teriam retido indevidamente os valores disponíveis em suas contas, ao menos, de acordo com as afirmações feitas pela Companhia em âmbito judicial [3].

Desde então, notou-se uma significativa e recorrente queda no preço das ações da companhia [4] — em aproximadamente 85% — após a constatação das referidas inconsistências e das acusações de fraude contábil [5] [6], que pressuporia — em tese — uma comprovação da atuação dolosa por parte de conselheiros, diretores e auditores da companhia.

Em razão disso, questiona-se como o direito societário poderia contribuir para a prevenção de fraudes e/ou adulteração das demonstrações financeiras? Sem discorrer sobre a responsabilidade dos acionistas controladores e dos administradores por ele indicados, como os demais acionistas deveriam, em geral, portar-se na fiscalização dos negócios da companhia?

Inicialmente, é preciso dizer que os conselheiros e diretores da companhia são obrigados a prestar contas de seus atos de gestão anualmente, nos termos do artigo 132 e seguintes da Lei de Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76 ou LSA), cujas disposições são refletidas em seu estatuto social. Logo, os acionistas têm o direito de "examinar, discutir e votar" as demonstrações financeiras e de resultado econômico da companhia, assim como de solicitar, previamente e por escrito, os demais documentos que entenderem pertinentes para análise dos números apresentados. A assembleia ordinária, portanto, é uma ferramenta legal prevista para assegurar que os investidores tenham pleno acesso a quaisquer informações sobre os negócios da companhia, a fim de que possam atestar que as referidas demonstrações são fidedignas e refletem o seu atual estado econômico e financeiro.

Em seguida, importante frisar que, de acordo com o artigo 109 da Lei 6.404/76 [7], é direito essencial dos acionistas a fiscalização dos negócios sociais. Nesse ponto, considerando que o estatuto social [8] da Americanas S.A não disciplinou a forma, época e limites para acesso às informações e/ou documentos ligados às suas finanças e contabilidade, poderiam seus acionistas pleiteá-las a qualquer tempo, como, por exemplo, exigir uma cópia dos contratos de realizados perante as referidas instituições financeiras para — justamente — verificar se os juros dos empréstimos estariam corretamente refletidos em seus informes.

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Dessa forma, os acionistas possuem um papel fundamental na fiscalização dos atos praticados pelos órgãos de administração, devendo se tornarem cada vez mais participativos — e ativos — na tomada das decisões do negócio, até para que possam identificar potenciais fraudes e/ou irregularidades e, se for o caso, deliberar sobre a necessidade de correções ou ajustes nas demonstrações financeiras, porquanto são as pessoas mais interessadas na valorização de suas ações. Obviamente que a organização dos investidores em discussões dessa natureza não é tarefa fácil, mas, considerando sua relevante participação societária com direito a voto [9], poderiam ter influído na prevenção do problema narrado.

Ainda, convém observar que a construção de uma adequada estrutura de governança corporativa poderia evitar situações similares àquelas experimentadas pela Americanas, tal como o funcionamento permanente de um conselho fiscal, o qual teria a independência necessária para avaliar os princípios, premissas e rigor técnico aplicado na elaboração dos relatórios da companhia e propor aos acionistas a correção das inconsistências, antes da divulgação das demonstrações contábeis. O poder atribuído aos conselheiros fiscais é maior que àquele conferido ao comitê de auditoria, cujo órgão tem uma finalidade precípua de assessorar o conselho de administração [10] e que está subordinado às suas orientações.

Em resumo, apesar do direito societário apresentar mecanismos preventivos e auxiliares para mitigar riscos e/ou fraudes na elaboração das demonstrações financeiras, o caso Americanas é extremamente útil para demonstrar que os acionistas, gestores, auditores e consultores externos devem participar, refletir e construir processos de fiscalização e controle mais efetivos e que estejam alinhados com o interesse da companhia, corrigindo defeitos organizacionais que podem colocar em xeque a continuidade dos negócios.

 


[1] Acessado o documento intitulado Fato Relevante – Questões Contábeis e Alterações na Administração no sítio eletrônico da Companhia em 5/3/2023: https://ri.americanas.io/informacoes-aos-investidores/comunicados-e-fatos-relevantes/

[3] Acessado o documento intitulado Comunicado ao Mercado – Petição inicial de recuperação judicial no sítio eletrônico da Companhia em 05.03.2023: https://ri.americanas.io/recuperacao-judicial/principais-decisoes/

[4] De acordo com o pedido de recuperação judicial da Americanas S.A, cada ação negociada pela Companhia estava avaliada em R$ 12,00, tendo como data base 11.01.2023. Após a divulgação de Fato Relevante e a propositura do , cada ação da Companhia está avaliada em R$ 1,02, considerando a data base 05.03.2023, conforme as informações obtidas em seu sítio eletrônico: https://ri.americanas.io/

[7] Art. 109. Nem o estatuto social nem a assembleia-geral poderão privar o acionista dos direitos de: (…) III – fiscalizar, na forma prevista nesta Lei, a gestão dos negócios sociais;

[9] De acordo com as informações oficiais consultadas no sítio eletrônico da Americanas S.A. em 05.03.2023, os demais acionistas – que não compõe o grupo de referência – representam significativos 69,88% das ações ordinárias com direito a voto. Consultar em https://ri.americanas.io/governanca-corporativa/composicao-acionaria/

[10] Ver artigos 17 e seguintes do Estatuto Social da Companhia.

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    é sócio do escritório Passinato & Graebin, advogado com atuação estratégica nas áreas de Direto Contratual, Societário e arbitragem, pós-graduado pela CEU Law School no programa de LL.M. em Direito e Prática Empresarial e com certificação em Direito Societário Avançado.

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