Direito Digital

Plano Estratégico da Anatel: justiça social no setor de telecomunicações

Autor

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

8 de junho de 2023, 8h00

O Plano Estratégico da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) para 2023-2027, cujo slogan é "Conectar o Brasil para melhorar a vida dos cidadãos", apresenta um conjunto de objetivos considerados fundamentais para sua atuação regulatória nesse período.

De acordo com o documento, a pretensão é "criar as condições necessárias para ampliar a conectividade e modernizar as infraestruturas de telecomunicações, de forma a contribuir com o desenvolvimento nacional, a digitalização da sociedade e com a redução das desigualdades sociais e regionais"[2].

Da mesma forma, o Plano Plurianual 2020-2023, aprovado pela Lei nº 13.971/2019, tem como um de seus objetivos, no âmbito do programa Conecta Brasil, a promoção do acesso universal e a ampliação dos serviços de comunicações no país, tendo como públicos-alvo populações em localidades remotas, localidades com prestação inadequada /inexistente e populações em situação de vulnerabilidade[3].

O Decreto nº 9.612/2018, no mesmo sentido, lista como objetivo geral das políticas públicas de telecomunicações a "ampliação do acesso à internet em banda larga em áreas onde a oferta seja inadequada"[4].

A estratégia brasileira — agora fortalecida com a publicação do Decreto nº 11.542/23, que instituiu o grupo de trabalho interministerial para produzir subsídios para a elaboração da proposta do Plano Nacional de Inclusão Digital[5] — encontra-se alinhada às de outros países.

Na União Europeia, por exemplo, o Programa Político da Década Digital 2030 apresenta a superação do "fosso digital" e o estabelecimento do equilíbrio geográfico e de gênero em relação à inclusão digital como um de seus objetivos principais[6].

No âmbito da ONU (Organização das Nações Unidas), a desigualdade no acesso e na fruição de serviços de qualidade, destacada com preocupação, também é tida como objetivo chave para a definição de suas metas para a próxima década. Em outras palavras, em todo o mundo o aspecto social da digitalização tem se revelado central na/para ampliação da conectividade, traduzindo-se em metas de alargamento da cobertura de 5G e fibra óptica, de aumento da velocidade contratada em banda larga, de ampliação da infraestrutura de conectividade em áreas rurais e remotas, dentre outras.

A centralidade desse aspecto relaciona-se à transformação digital vivenciada por todos os setores da sociedade nas últimas décadas, que fez com que a conectividade se tornasse um possibilitador do exercício da cidadania e de acesso a direitos básicos, como saúde, educação, trabalho e lazer. Especialmente com a eclosão da Covid-19 e a consequente remodelação de diversos modelos de negócios e serviços públicos, restou claro que "estar conectado" não é mais algo acessório à vida humana — um luxo ou privilégio, como era há poucas décadas — mas sim uma verdadeira conditio sine qua non para a constituição de uma vida digna em sociedades que se pretendam desenvolvidas e inclusivas do ponto de vista tecnológico.

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Assim, garantir a conectividade para aqueles que ainda não têm acesso à infraestrutura digital torna-se imperioso, bem como melhorar a qualidade de conexão daqueles que já a possuem. Nesse contexto, ganha relevância o conceito de conectividade significativa, que conjuga duas dimensões – qualidade e abrangência — para se referir à conectividade segura, produtiva e satisfatória a todos[7].

O ponto é que, para se alcançar as metas e objetivos estabelecidos pelos governos e organizações, são necessários investimentos maciços, especialmente na infraestrutura física que permite o acesso à rede em primeiro lugar. Isso, porque é sobre essa infraestrutura que repousa todo o ecossistema digital que permite, como indicado, a fruição dos benefícios trazidos pelos serviços digitais. Esse cenário, cada vez mais caracterizado pela combinação da demanda por mais velocidade, estabilidade e cobertura, e potencializado pela nova geração de tecnologias — como os sistemas de inteligência artificial, o 5G, cloud computing etc. — impõe diversos desafios não apenas ao setor de telecomunicações, mas à sociedade como um todo, considerando-se o papel da inclusão digital para o desenvolvimento do país. Diante disso, faz-se imperioso repensar a concentração da dimensão do investimento nas empresas de telecomunicações, como propõem as atuais discussões sobre o fair share.

O fair share, neste contexto, é um termo utilizado para se referir às recentes iniciativas de redistribuição dos custos envolvidos na manutenção, expansão e atualização da infraestrutura de rede que viabiliza o fluxo de dados online, em uma tentativa de cobrar uma justa contribuição daqueles agentes que dela se beneficiam. Em especial, as propostas visam as empresas de tecnologia — as chamadas Caps (content and application providers) — que fornecem conteúdo e serviços através de aplicativos ou plataformas na internet.

Na nova economia digital, essas empresas são responsáveis por grande parte do volume do tráfego de dados gerado e, destarte, transformam a dinâmica da conectividade e os tradicionais mercados de atacado e varejo. Apesar disso, não arcam com os ônus envolvidos em todo o processo de garantia e manutenção do acesso à rede, configurando um nítido cenário de desequilíbrio desse ecossistema digital. É frente a isso que na Europa, nos EUA e na Coreia do Sul, avançados debates já vêm colocando em xeque o modelo atual de distribuição de competências e responsabilidades, que sobrecarrega as empresas de telecomunicações, colocando em risco as metas de desenvolvimento digital estabelecidas em nível global.

Portanto, para além de uma questão meramente privada entre empresas, é necessário voltar nosso olhar para a discussão com atenção aos potenciais benefícios sociais trazidos pelas propostas de fair share, que poderiam garantir os investimentos necessários para que se cumpram as referidas metas de inclusão social, sem incorrer em um injusto repasse de custos aos agentes que já contribuem amplamente para o sistema de telecomunicações eletrônicas: os usuários finais. Uma conectividade significativa, com uma infraestrutura cada vez mais resiliente, segura e inclusiva se construirá, principalmente, por meio dos esforços conjuntos de todos agentes que disfrutam das infraestruturas de telecomunicações, em prol de toda a sociedade.

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