Opinião

Aplicação da LC 190/22 e a decisão do STF no Tema 1.093 (parte 1)

Autor

  • Halley Henares Neto

    é advogado em São Paulo sócio titular da Henares Advogados presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat) especialista em Direito Tributário pela Ceeu-SP e membro do Conselho Superior de Direito da Fecomercio.

5 de junho de 2023, 17h19

No último dia 12 de abril, estivemos presencialmente no STF (Supremo Tribunal Federal) para acompanhar e sustentar oralmente a questão atinente à aplicação da anterioridade relativamente à Lei Complementar nº 190/2022, publicada em 5 de janeiro de 2022, a qual instituiu, formalmente, a cobrança do diferencial de alíquotas de ICMS nas operações interestaduais envolvendo consumidores finais não-contribuintes.

O caso seria apreciado em três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que cuidam do assunto: 7.066, 7.070 e 7.078, todas de relatoria do ministro Alexandre de Moraes. O objeto central da discussão, relevante sobretudo para empresas varejistas e contribuintes que vendem (fisicamente ou via e-commerce) mercadorias para consumidores não-contribuintes situados em outros estados do país, consiste, em síntese, em saber se o ICMS, instituído sobre essas operações, pode ser cobrado no mesmo exercício financeiro em que foi publicada a Lei Complementar nº 190/2022 ou apenas no ano exercício seguinte, a partir de janeiro de 2023.

Referido pleito fora a julgamento presencial no plenário do STF após pedido de destaque da ministra Rosa Weber, realizado em plenário virtual, ocorrido em 12 de dezembro de 2022. Na ocasião, o placar estava 5 a 3 no sentido da validade da cobrança do Difal apenas a partir de 2023, composição essa que garantiria a vitória a favor dos contribuintes.

Segundo noticiado nos meios de comunicação, referido destaque fora motivado em razão do pleito de diversos governadores ao STF, bem como que tal pedido teria sido mormente baseado no argumento político-financeiro de perda de arrecadação da ordem de R$ 10 bilhões para os estados, caso o Difal viesse a ser invalidado para todo o exercício de 2022.

Dito isso, e com o placar zerado em razão do pedido de destaque previsto no artigo 4º da Resolução nº 642/2019 do STF (sistemática cujas análises serão objeto de artigo apartado), os contribuintes tinham relativa esperança de que a questão poderia ser efetivamente delineada no referido dia 12 de abril de 2023, o que, infelizmente, até o momento, não se confirmou, tendo o caso sido retirado de pauta na ocasião, permanecendo em volta do tema candente discussão.

A despeito da falta de julgamento do ICMS Difal e da falta de perspectiva para que o tema volte à pauta, situação essa que, em alguns aspectos, lembra a via crucis do próprio Tema 69, na qual o STF decidiu pela não inclusão do ICMS do PIS e da Cofins.

Tal experiência nos motivou a escrever — em as presentes linhas para colocar ao leitor nossa visão acerca da questão, sem, evidentemente, a pretensão de esgotar o tema.

1. A LC nº 190/2022 instituiu nova relação jurídica tributária
A LC nº 190/2022 instituiu nova relação jurídica tributária, criando, assim, nova obrigação tributária, na medida em que produziu e inovou sobre aspectos do fato gerador do ICMS, dispondo, inauguralmente na ordem jurídica, sobre:

a) novo vínculo obrigacional, que passa a ser entre o contribuinte, remetente da mercadoria, e o Estado de destino, onde reside o consumidor final não-contribuinte do imposto;

b) novo sujeito ativo, que deixa de ser o Estado de origem da mercadoria e passa a ser o seu Estado de destino, para onde a mercadoria está sendo remetida;

c) novo aspecto quantitativo, havendo alteração no montante a recolher de tributo em razão da impossibilidade de abatimento do valor pago à título de DIFAL com créditos de ICMS previamente escriturados, o que, pelo mecanismo de débito e crédito inerente à estrutura impositiva do ICMS, gera aumento de base de cálculo tributável na operação; e

d) novas obrigações acessórias, com emissão de notas distintas e fiscalização das autoridades fazendárias localizadas, também, no Estado de destino.

Quando o destinatário da mercadoria, localizado em outro estado, é contribuinte do ICMS, consumidor final ou não, cabe a ele o recolhimento do diferencial de alíquota, correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual. Na tributação da venda para consumidor final não contribuinte, o imposto passa a ser devido pelo contribuinte vendedor da mercadoria (remetente), situado no estado de origem, ao estado de destino do bem (artigo 155, par. 2º, VIII, "b", CF/88). Neste segundo caso, antes da válida instituição pela LC 190/2022, não havia, de direito, relação jurídica entre o remetente do bem e o estado de destino.

Em suma: exsurge, a partir da edição da LC nº 190/2022, nova relação jurídica tributária, novos ônus fiscais e novas obrigações tributárias, principais e acessórias.

Com efeito, a LC nº 190/22 instituiu novo liame obrigacional, novos formatos para os aspectos do fato gerador e novo modelo de tributação, visando, assim, dar eficácia plena ao modelo previsto desde a EC nº 87/2015, que alterou o art. 155, § 2º, VII, da CF/88, cumprindo o papel determinado pelo STF na decisão do Tema 1.093 de Repercussão Geral, que reconheceu a impossibilidade formal de o Convênio nº 93/2015 desempenhar esse papel, ex verbis: "1. A EC nº 87/15 criou nova relação jurídico-tributária entre o remetente do bem ou serviço (contribuinte) e o estado de destino nas operações com bens e serviços destinados a consumidor final não contribuinte do ICMS; (…) 2. Convênio interestadual não pode suprir a ausência de lei complementar dispondo sobre obrigação tributária, contribuintes, bases de cálculo/alíquotas e créditos de ICMS nas operações ou prestações interestaduais com consumidor final não contribuinte do imposto, como fizeram as cláusulas primeira, segunda, terceira e sexta do Convênio" (Recurso Extraordinário 1.287.019 Distrito Federal, DJE 25/5/2021). Nos termos do artigo 146, III, da Constituição, cabe tão somente à lei complementar estabelecer as diretrizes desta sistemática, uma vez que é a norma competente para disciplinar as normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre tributos, fato gerador, base de cálculo, contribuintes, obrigação, lançamento, crédito, prescrição, decadência etc.

Não há falar, portanto, de mera mudança de repartição tributária de receitas do ICMS entre os entes federativos, como se depreende do voto anteriormente exarado em plenário virtual pelo ministro Alexandre de Moraes, no sentido de que haveria apenas mudança na destinação das receitas tributárias arrecadadas (norma de Direito Financeiro). Há, de fato, questão de nova imposição tributária, de realinhamentos de aspectos impositivos da regra matriz de incidência do ICMS (norma de Direito Tributário).

Além disso, não sobeja observar que a LC nº 190/22 também pode ser interpretada, no mínimo, como norma jurídica que majorou o ICMS incidente na operação versada. Como bem apontou o ministro Fachin, em seu voto exarado na ocasião do referenciado plenário virtual, "a Lei Complementar nº 190/2022 ao dispor sobre a aplicação do Difal nas operações interestaduais praticadas com não-contribuintes veda o amplo creditamento!".

Tal como percebeu o ministro Fachin, também nos parece que, em razão da impossibilidade do amplo creditamento — o que por si só ofende o princípio da não cumulatividade plena do ICMS —, há o aumento do ônus tributário.

Nesse sentido, o artigo 20-A, inserido na LC nº 87/96 (Lei Kandir) pela LC nº 190/22, expressamente proíbe o creditamento relativo às operações anteriores na apuração e pagamento do ICMS Difal para o estado de destino. Vejamos:

Art. 20-A. Nas hipóteses dos incisos XIV e XVI do caput do art. 12 desta Lei Complementar, o crédito relativo às operações e prestações anteriores deve ser deduzido apenas do débito correspondente ao imposto devido à unidade federada de origem. (grifamos)

Isso significa que o Difal é recolhido para o estado de destino sem a possibilidade de utilização do crédito da entrada pelo vendedor nesta operação, reservando-se esse crédito para ser abatido apenas do débito gerado na parcela da operação que corresponder ao imposto devido ao estado de origem. Em outras palavras, o remetente consegue utilizar seus créditos na apuração fiscal somente dentro do estado de origem. Para o estado de destino, entretanto, deverá recolher integralmente o Difal sem prévio encontro de créditos versus débitos, típico das operações internas ou interestaduais entre contribuintes.

Essa situação leva à modificação da carga tributária da operação, na medida em que o remetente de mercadoria para consumidor final não-contribuinte para outro Estado de Federação estará sujeito ao impacto efetivo no seu fluxo de caixa em razão da impossibilidade de utilizar crédito em operação anterior para pagar o ICMS Difal em guia própria, levando a um maior desembolso de caixa (pagamento) nas operações do ICMS Difal quando em comparação com ICMS nas operações anteriores à edição da LC nº 190/2022.

Vale lembrar, neste aspecto, a dicção do artigo 97, § 1º, do Código Tributário Nacional (CTN): "equipara-se à majoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso".

De tal sorte, e por todo o que aqui se expõe, se a LC nº 190/2022 instituiu ou majorou tributo, e somente foi publicada em 5 de janeiro de 2022, ela apenas poderia produzir efeitos e legitimar a cobrança do ICMS Difal a partir de janeiro de 2023, respeitando, por conseguinte, tanto a anterioridade nonagesimal quanto a anterioridade do exercício.

Continua na parte 2

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  • é advogado, sócio de Henares Advogados e presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat) e membro do Conselho Superior de Direito da Fecomercio.

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