Opinião

Uma indevida forma de burlar a Súmula Vinculante 24 do STF

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2 de junho de 2023, 9h18

A relação de (in)dependência entre as esferas penal e administrativa é tema rotineiro de debate na doutrina e na jurisprudência, sendo os casos concretos que levam a tais discussões cada vez mais frequentes.

Como uma das causas que contribuem à florescente importância que esse assunto vem recebendo, cite-se a expansão do Direito Penal na sua dimensão de reforço às normas administrativas, já que cada vez menos preocupa-se o legislador com a ofensividade de bens jurídicos no processo de criminalização, atribuindo à repressão penal a função de garantia de simples normas de comportamento, outrora limitadas ao âmbito administrativo.

É justamente a partir daí que os ramos do Direito se cruzam: não raro, a mesma conduta pode encontrar sanções correspondentes em ambos os subsistemas do Direito.

Muito inflamado esse debate na atualidade, existem posicionamentos diversos na doutrina, enquanto a jurisprudência majoritária segue insistindo que as esferas seriam absolutamente independentes, aplicando o suposto "princípio da independência das instâncias", extraído da interpretação do artigo 37, § 4º, da CF, para negar ocorrência ao bis in idem.

No entanto, acima de qualquer discussão, existe uma exceção à independência das esferas penal e administrativa, que nem sequer admite questionamento no cotidiano forense: o entendimento pacificado na Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal.

De acordo com seu conteúdo, o crime contra a ordem tributária somente se tipifica com o lançamento definitivo do tributo, incorporando-se assim à ordem jurídica uma situação de vinculação obrigatória entre os âmbitos administrativo e penal, já que a existência do crime depende de decisão irrecorrível do Fisco.

As implicações práticas desse entendimento sumulado, de natureza vinculante, são de importância singular, uma vez que, inexistindo materialidade, ou seja, a existência material do crime, não se pode tolerar sequer a deflagração de uma investigação policial/ministerial.

O contribuinte que vier a sonegar tributo, portanto, não pode ser investigado criminalmente por esse motivo enquanto não se exaurir a instância administrativa, significando dizer que nenhuma medida cautelar penal — seja ela patrimonial ou pessoal, pode ser praticada em seu desfavor.

Ocorre que, infeliz e ilegalmente, os órgãos de persecução penal encontraram uma fórmula para burlar o sistema, valendo-se de uma terceira figura delitiva para iniciar uma investigação velada sobre créditos tributários ainda não inscritos definitivamente em dívida ativa: o crime de associação criminosa, previsto no artigo 288 do CP.

Esse tipo penal faz papel de coringa nas mãos do Ministério Público e da polícia judiciária, sendo indevidamente imputado para permitir a adoção de medidas constritivas antecipadas contra o investigado, antes mesmo do lançamento definitivo dos tributos, em claro contorno à SV 24.

Por si só, o tipo penal de associação criminosa já é bastante criticável, haja vista que não possui um bem jurídico claro a ser tutelado, além de configurar verdadeira antecipação da tutela penal ao punir indivíduos sem que tenham praticado quaisquer outros delitos.

Isso porque, como é sabido, para a consumação da associação criminosa nem sequer é exigido que seja praticado algum crime pela dita associação, bastando a mera reunião de pessoas que planejam, ainda que num futuro incerto, uma atividade aparentemente criminosa.

Nesse ponto que mora a artimanha dos órgãos de investigação: já que o aperfeiçoamento da associação criminosa não necessita que seja praticado qualquer outro delito para que reste configurado, está-se usando a expectativa de inscrição em dívida ativa de um conjunto de créditos fiscais como condição suficiente para a imputação da associação criminosa.

Como se a elementar "crimes", prevista no artigo 288 do CP, fosse verificada a partir dos créditos fiscais que eventualmente venham a ter seus lançamentos definitivos, ainda que no futuro.

Assim sendo, descobriu-se em nome do punitivismo uma combinação explosiva, porquanto empresários podem se ver investigados criminalmente pelo crime de associação criminosa, tendo como justificativa a possível inscrição em dívida ativa de seus créditos fiscais. No discurso, estar-se-ia apurando somente a associação, mas é óbvio que, na prática, está sob investigação o tributo devido, antes de sua inscrição definitiva.

Problema maior ainda é que, a partir daí, podem a autoridade policial e o Ministério Público ir a Juízo buscar — não diretamente com base na sonegação fiscal, mas sim na associação criminosa, medidas como a busca e apreensão e a constrição de valores do investigado, além da própria prisão cautelar.

Infelizmente, portanto, descobriu-se uma maneira de burlar o comando da SV 24, extirpando-se do ordenamento jurídico a única exceção reconhecida que havia à independência das esferas penal e administrativa.

Esse é um problema que deriva da combinação indevida de tipos penais de antecipação da tutela penal, como o que ocorre com a associação criminosa, com crimes contra a ordem tributária, que isoladamente dependeriam da confirmação do efetivo dano ao erário para se consumarem, instaurando-se verdadeiro cenário contraditório que viola a coesão da ordem jurídica pátria, aproveitando-se disso os órgãos de investigação.

É preciso que os tribunais se posicionem firmemente sobre o tema e impeçam que seja imputado o crime de associação criminosa em conjunto com a sonegação fiscal antes do lançamento definitivo dos tributos em tese sonegados pela associação.

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