Opinião

Consequências de determinar a citação do INSS apenas após a perícia médica

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  • é mestre em Direito pela UFPE especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

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1 de junho de 2023, 7h05

Citação no processo civil e seus efeitos
A citação é o ato pelo qual o réu, o executado ou o interessado são convocados para integrar a relação processual (artigo 238 CPC). Para Cândido Rangel Dinamarco, a citação consiste no primeiro e mais importante ato de comunicação processual, a alma do processo [1].

Trata-se de etapa indispensável para a validade do processo, salvo nos casos de indeferimento da petição inicial e improcedência liminar do pedido (artigo 240 CPC). O sistema processual confere grande importância à citação e ao formalismo que a permeia, a fim de garantir a efetiva ciência do processo e a convocação a integrá-lo. Tanto é assim que eventual nulidade de citação é considerado vício transrescisório, ou seja: pode ser arguida a qualquer tempo no processo, em ação rescisória e ainda por meio de querela nullitatis insanabilis. Neste sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

Por oportuno, relembra-se que o vício de nulidade de citação é o defeito processual de maior gravidade em nosso sistema processual civil, tanto que erigido à categoria de vício transrescisório, podendo ser reconhecido a qualquer tempo, inclusive após o escoamento do prazo para o remédio extremo da ação rescisória, mediante simples alegação da parte interessada [2].

No processo ou fase de conhecimento, por meio da citação, o demandado toma conhecimento da existência do processo, dos termos dos pedidos formulados pelo autor, da possibilidade de reação e do prazo para tanto. Assim, a observância das formalidades do referido ato consiste em garantia da observância do contraditório no processo.

Por ser requisito de validade processual, a citação deve ser determinada logo que o juízo despache a petição inicial. Protocolada a petição inicial, o juízo irá analisar se preenche os requisitos dos artigos 319 e 320 do CPC. Não sendo caso de emenda, indeferimento ou improcedência liminar do pedido, deve ser determinada a citação do réu, por meio do conhecido "cite-se". Tal despacho, mesmo que proferido por juízo incompetente, interrompe a prescrição com efeitos retroativos à data da propositura da ação (artigos 240 §1º CPC e 2020, I, Código Civil).

Dentre os efeitos da citação válida previstos no caput do artigo 240 do CPC, interessa-nos para fins do presente texto a constituição do devedor em mora. Ressalvadas as obrigações a termo e as provenientes de ato ilícito, a mora do devedor se inicia com a citação válida, momento em que ele toma conhecimento da pretensão do credor, incidindo a partir daí os juros moratórios. Tal sistemática, como não poderia deixar de ser, é adotada também nas demandas previdenciárias, nos termos do enunciado de súmula 204 do STJ: "Os juros de mora nas ações relativas a benefícios previdenciários incidem a partir da citação válida".

O objetivo desde pequeno ensaio é analisar o momento da citação do INSS nas ações previdenciárias de concessão ou restabelecimento de benefício por incapacidade e suas consequências. Em tais demandas, é comum que os juízos, ao despacharem a petição inicial, determinem logo a realização da perícia médica judicial antes mesmo da citação da autarquia, a fim de conferir economia processual e favorecer o direito de defesa. Indaga-se, então: a alteração da rota procedimental alcança a racionalização do processo? É apta a causar prejuízos a alguma das partes? Essas são as perguntas que se buscam responder. 

Da citação do INSS apenas após a realização da perícia médica judicial
Conforme pontuado, é prática comum em demandas de concessão ou restabelecimento de benefícios por incapacidade que o juízo, ao despachar a petição inicial, determine logo a realização da perícia médica, de modo a postergar a citação do INSS para depois da produção da prova pericial.

Em outras palavras, ajuizada a ação, verificando-se que a petição inicial está apta, ao invés proferir o despacho do "cite-se" (artigo 240 do CPC), o juízo designa desde logo a perícia médica judicial. Apenas após a juntada do respectivo laudo ao processo, o INSS é chamado para integrar a lide, por meio da citação. O objetivo de tal inversão procedimental é eliminar a necessidade de citação da autarquia e, depois, de intimação sobre o laudo pericial. Busca-se, assim, conferir celeridade, racionalidade e economia processual, diminuindo o trabalho das secretarias ou cartórios das varas: o INSS é citado para integrar a lide já com a intimação do laudo judicial, possibilitando também à autarquia apresentar uma contestação mais fundamentada e formular proposta de acordo.

Aparentemente, esta prática está consubstanciada na Recomendação Conjunta n. 01/2015, assinada pelo presidente do Conselho Nacional de Justiça, Advogado Geral da União e ministro de Estado do Trabalho e Previdência Social [3]. Eis o disposto no artigo 1º:

"Artigo 1º Recomendar aos Juízes Federais e aos Juízes de Direito com competência previdenciária ou acidentária, nas ações judiciais que visem à concessão de benefícios de aposentadoria por invalidez, auxílio-doença e auxílio-acidente e dependam de prova pericial médica, que:
I – ao despacharem a inicial, considerem a possibilidade de, desde logo, determinarem a realização de prova pericial médica, com nomeação de perito do Juízo e ciência à parte Autora dos quesitos a ele dirigidos, facultando-se às partes a apresentação de outros quesitos e indicação de assistentes técnicos, e, se possível, designando data, horário e local para o ato;
II – a citação do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) seja realizada acompanhada de laudo da perícia judicial, possibilitando a apresentação de proposta de acordo ou resposta pela Procuradoria-Geral Federal;" [4].

Acontece que, entre o ajuizamento da ação de concessão ou restabelecimento de benefício por incapacidade e a efetiva realização da perícia médica, apresentação do laudo e posterior citação do INSS, pode ocorrer um intervalo de meses.

Percebe-se, desde logo, que a alteração do iter procedimental  que posterga a citação do INSS para depois da realização da perícia médica  traz prejuízos aos segurados, no mínimo, quanto ao recebimento dos juros de mora. Isto porque, a súmula 204 do STJ corrobora o previsto no artigo 240 do CPC e estabelece que "Os juros de mora nas ações relativas a benefícios previdenciários incidem a partir da citação válida".

Entretanto, para além dos prejuízos relacionados aos juros de mora, a postergação da citação da autarquia pode implicar ainda mais prejuízos quando a Data do Início da Incapacidade (DII) é fixada pela perícia judicial após a Data da Entrada do Requerimento administrativo (DER) formulado pelo segurado perante o INSS ou da Data da Cessação do Benefício (DCB) anterior. Explico.

Quando a perícia médico-judicial reconhece que na data do requerimento administrativo ou cessão do benefício anterior havia incapacidade, há o reconhecimento judicial do equívoco do INSS. Por esta razão, fixa-se judicialmente a Data do Início do Benefício (DIB) na DER ou na DCB, com o pagamento dos valores atrasados desde então.

Por exemplo: um segurado requereu o benefício por incapacidade em 1 de abril de 2022 e o INSS indeferiu o benefício por considerar que não havia incapacidade. Foi ajuizada ação previdenciária em 1 de julho de 2022, determinando-se desde já a realização de perícia médica, realizada em 01 de dezembro de 2022, e o INSS citado em 24 fevereiro de 2023. Caso a perícia médica judicial entenda que em 01/04/2022 (DER) havia a incapacidade, uma vez julgado procedente o pedido de concessão de benefício, a DIB será fixada na DER, sendo devidas as prestações atrasadas desde então. 

Este entendimento é consolidado na jurisprudência e deu origem ao enunciado de Súmula nº 22 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), aplicável aos benefícios por incapacidade de maneira geral: "Se a prova pericial realizada em juízo dá conta de que a incapacidade já existia na data do requerimento administrativo, esta é o termo inicial do benefício assistencial".

Entretanto, considerando o mesmo requerimento administrativo formulado em 01/04/2022, caso a perícia judicial fixe o início da incapacidade  em 01/06/2022, entende-se que o indeferimento administrativo do INSS foi acertado, e por isso não é devido o benefício desde a DER. Perceba-se que, nessa hipótese, não foi reconhecida a incapacidade na DER, mas na data do ajuizamento da ação (01/07/2022) o segurado já estava incapaz. Entretanto, nesses casos, de acordo com a jurisprudência pacificada do STJ e da TNU, a DIB deve ser fixada na data da citação (24/02/2023), e não na data do ajuizamento da ação. Veja-se:

"PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA. TERMO INICIAL DO BENEFÍCIO. DATA DO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO OU, CASO INEXISTENTE, NA DATA DA CITAÇÃO. I – Na origem, cuida-se de ação ajuizada em desfavor do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), objetivando a concessão de aposentadoria por invalidez ou de auxílio-doença. II – De acordo com a jurisprudência pacífica do STJ, o termo inicial para a concessão de benefício previdenciário é a data do requerimento administrativo e, na sua ausência deste, a partir da citação. Entende-se, ainda, que o laudo pericial não serve como parâmetro para fixar termo inicial de aquisição de direitos, mas apenas norteia o livre convencimento do juiz quanto aos fatos alegados pelas partes. Precedente: REsp nº 1.475.373/SP, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 19/4/2018, DJe 8/5/2018; REsp n. 1.714.218/RJ, relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 27/2/2018, DJe 2/8/2018; AgInt no REsp nº 1.601.268/SP, relator ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 23/6/2016, DJe 30/6/2016; e AgRg no REsp nº 1.221.517/SP, relator ministro Jorge Mussi, DJe 26.9.2011.  III – Recurso especial provido para fixar o termo inicial do benefício na data do requerimento administrativo". (STJ – REsp: 1714507 SC 2017/0313076-2, relator: ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 13/11/2018, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/11/2018).

"DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PEDIDO DE RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE. DATA DE INÍCIO DO BENEFÍCIO (DIB) CORRESPONDE À DATA DO INÍCIO DA INCAPACIDADE (DII) QUANDO ELA É FIXADA DEPOIS DA CITAÇÃO E ANTES DO LAUDO PERICIAL. PRECEDENTES DA TNU. INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO PARCIALMENTE CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Quando a Data do Início da Incapacidade (DII) for posterior à Data de Entrada do Requerimento (DER) ou Data de Cancelamento do Benefício (DCB) e anterior ao ajuizamento da demanda, a Data do Início do Benefício (DIB) deve ser fixada na data da citação. Procedentes do STJ e da TNU. […]". (TNU – Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei (Turma): 00022934420164036310, relator: FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES, Data de Julgamento: 10/02/2022, TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO, Data de Publicação: 15/02/2022).

Sobre o assunto, importante fazer referência ainda ao verbete 576 do STJ, utilizado também como fundamento para fixação da DIB na citação do INSS: "Ausente requerimento administrativo no INSS, o termo inicial para a implantação da aposentadoria por invalidez concedida judicialmente será a data da citação válida".

Mostra-se necessário, então, diferenciar as hipóteses do resultado da perícia médico-judicial, consequências na DIB dos benefícios por incapacidade e citação:

1) quando a DII é fixada antes ou na DER, a DIB será fixada na DER. Nessa hipótese, vislumbra-se exclusivamente o prejuízo financeiro relativo aos juros de mora, fixados na citação; 2) quando a DII é fixada após a DER, mas antes do ajuizamento ou da citação do réu, a DIB será fixada na citação. Vislumbra-se aqui maior extensão do prejuízo financeiro e também a possibilidade de perda da proteção social. Vejamos.

Tomando o segundo caso hipotético apresentado, como a DII foi fixada em 01/06/2022, ou seja, após a DER (01/04/2022), o início do benefício será fixado apenas na citação do INSS  24/02/2023 — apesar de a ação ter sido ajuizada desde 01/07/2022, e haver incapacidade reconhecida desde junho de 2022. Perceba-se que o "delta t" entre o ajuizamento e a fixação da DIB é superior a sete meses, com evidente perda dos valores atrasados e, ainda, real possibilidade de escoamento do período de graça (artigo 15 Lei 8.213/91), se o segurado incapaz e já estava fora do mercado de trabalho.

Assim, nos casos em que a DII é fixada após a DER ou DCB, a postergação da citação do INSS  que ocorreria logo no despacho inicial e acontecerá apenas após a realização de diversos atos processuais de designação, realização da perícia e apresentação do laudo – ocasionará, inevitavelmente, prejuízos aos segurados na fixação da DIB. Além dos prejuízos financeiros no recebimento das prestações em atraso e juros de mora, haverá também potencialmente a possibilidade da perda da qualidade de segurado neste intervalo de tempo (artigo 15, Lei nº 8.213/91), com consequências irreparáveis para quem precisa e tem direito à proteção social.

Conclusão
A título de conclusão, pode-se afirmar que a prática de determinar a citação do INSS apenas após a perícia médica subverte o formalismo processual, posterga a fixação da DIB e causa prejuízos aos segurados. Além dos danos relacionados aos juros de mora, tal prática mostra-se ainda mais nociva aos segurados quando a DII for fixada após a DER ou DCB, por atrasar a DIB, com evidente diminuição no recebimento das parcelas vencidas. Ademais  e ainda mais grave , a postergação da DIB poderá, potencialmente, ocasionar a perda da qualidade de segurado (artigo 15 da Lei 8213/91), fulminando a proteção social.

Assim, a fim de resguardar o direito ao recebimento da verba alimentar oriunda dos benefícios por incapacidade aos segurados, deve-se observar o procedimento de determinar a citação do INSS no despacho da petição inicial, e não apenas após a realização da perícia médica judicial.

 


[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 127.

[2] Trecho do voto proferido no julgamento do REsp nº 1.995.883/MT, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18/10/2022, DJe de 21/10/2022.

[3] A referida Recomendação não contou com a presença da Defensoria Pública da União ou da OAB, entidades que no processo judicial previdenciário defendem os segurados.

Autores

  • é mestre em Direito pela UFPE, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil, professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos, defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

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