Registro de patentes e proteção de direitos autorais no contexto da IA generativa
31 de julho de 2023, 10h19
Com o avanço das tecnologias emergentes, o cenário global vem vivenciando uma onda de debates éticos e jurídicos, com a finalidade de regular e de conter as externalidades negativas geradas pelo uso indiscriminado desses avanços vislumbrados, especialmente, nas últimas décadas. Tais impactos estão sendo responsáveis por alavancar um vertiginoso processo de alteração no âmbito social, devido à hiperconectividade no contexto denominado Internet das Coisas e em decorrência do grande fluxo de captura, de troca e de venda dos dados gerados que são submetidos aos interesses do mercado.
Nos dias atuais, é possível observar que a inteligência artificial (IA), por ser uma tecnologia que pode ser empregada em diversos setores e atender às múltiplas finalidades de cunho patrimonial — além de estar passando por um constante aprimoramento dos seus sistemas de algoritmos inteligentes e dos seus softwares — já consegue desempenhar funções que antes eram inerentes à racionalidade humana. Isso quer dizer que o potencial inventivo e generativo humano se estendeu hoje, em certa medida, às máquinas que são capazes de criar conteúdos artísticos, audiovisuais e literários, como as atuais plataformas "ChatGPT", "Bard" e "BingAI" [2].
Ademais, o debate acerca dos limites éticos e jurídicos no controle dessas tecnologias deflagrou-se, em especial no âmbito nacional, após a propaganda da empresa Volkswagen recriar digitalmente a cantora Elis Regina, no ano de celebração dos 70 anos da empresa no Brasil. A empresa fez uso de IA generativa para lograr reconstruir a imagem da saudosa cantora que aparece ao lado de sua filha cantando uma de suas performances mais festejadas. Nesta toada, o professor Carlos Affonso entende que essa propaganda:
"[…] desperta muitas questões sobre o futuro das criações digitais de pessoas mortas, desde a possibilidade de os herdeiros contratarem esse uso comercial da imagem e da voz alheia até uma reflexão sobre o impacto que essas montagens geram no público" [3].
Destarte, pensando justamente nessas questões, indaga-se: quais os limites para o uso da inteligência artificial, em especial no que diz respeito aos fins comerciais que estes bens gerados podem ter? E, ao nos referimos aos direitos da propriedade industrial, no momento do registro de uma patente [4], quando uma invenção tenha sido criada por uma tecnologia baseada em IA, poderia o requerente, o detentor ou criador dessas tecnologias indicar a IA como uma inventora?
Embora o tema tenha ganhado destaque, quando pensamos na questão dos direitos autorais, na garantia do direito de patente dessas criações e no contexto do uso da IA que avança e altera a noção de criador e de criação, observa-se que no âmbito nacional existem poucas regulações aplicáveis para traçar uma solução capaz de compatibilizar o avanço e as garantias de proteção aos direitos de personalidade. Sobre o tema, o caso Dabus, que será avaliado adiante, ilustrou esse contexto desafiador, visto que um possível titular dos direitos autorais tentou registrar esse sistema de IA como a inventora em processo de patentes em diversos países.
Nessa seara, diante da complexidade dos questionamentos, esse caso concreto foi levado ao Tribunal Superior dos Estados Unidos e em diversos escritórios de propriedade intelectual no mundo, inclusive no Brasil. De acordo com os canais de notícias, o cientista Sthephen Thaler, ao reconhecer que a sua invenção baseada em IA conhecida como Dabus (Device for the Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience) havia criado de forma autônoma certos protótipos, o cientista buscou indicar essa tecnologia como a inventora no momento do registro de patentes. Contudo, o tribunal de apelações estadunidense considerou que as patentes só poderiam ser emitidas quando o produto levado ao registro fosse decorrente de uma invenção humana [5] — um dos argumentos levantados por Thaler contrário ao entendimento foi que, em nenhum momento, a lei restringiu o termo "inventor", associando-o, exclusivamente, às pessoas físicas. Além disso, o cientista enfatizou a importância de haver uma compatibilização hermenêutica com o desenvolvimento tecnológico, para que não haja um desestímulo à inovação.
No Brasil, esse pedido foi negado pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), autarquia responsável pela concessão de patentes a nível nacional. Mediante um parecer da procuradoria responsável por analisar o caso, optou-se por seguir o posicionamento de alguns países como os EUA e a Inglaterra, de modo a considerar desfavorável a atribuição de uma característica "inventora", "criativa" para a máquina dotada de inteligência artificial [6].
Nessa decisão específica, a Procuradoria do INPI prolatou o parecer aludindo o parágrafo 4º inserido no artigo 6º da Lei de Propriedade Industrial (LPI), que confere os direitos de ser nomeado e identificado ao inventor (indivíduo dotado de capacidade civil), juntamente com o artigo 1º do Código Civil de 2002, que estabelece que "toda pessoa é capaz de exercer direitos e deveres". Dessa maneira, ao se considerar que a tecnologia utilizada pela IA generativa não é dotada de personalidade, não é possível que figure nesta posição, em favor ao rigor da proteção e impossível equiparação à pessoa natural e jurídica que desempenham as prerrogativas de terem reconhecidas as suas capacidades inventivas, tal como fica discriminado no artigo 11, da Lei 9.610/98 que retoma a compreensão de que o "autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica. Parágrafo único. A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta Lei" [7].
Ainda que seja uma conclusão pertinente com base na legislação atual, é evidente que, com o crescimento constante da utilização de IAs no processo criativo de inovações tecnológicas, as demandas concernentes à tutela de tais invenções e sobre as formas de proteção à propriedade intelectual hão de ser frequentes, e certamente configurará um desafio para as novas discussões jurídicas do tema. A título de exemplo, cabe destacar o artigo 42 do Projeto de Lei 2.338/2023 que, salvo melhor juízo, evidencia que uma das atuais pautas referentes à regulação da IA no país está relacionada aos mecanismos de proteção aos direitos autorais e sobre os dados utilizados por essas tecnologias durantes os seus processos generativos:
"Art. 42. Não constitui ofensa a direitos autorais a utilização automatizada de obras, como extração, reprodução, armazenamento e transformação, em processos de mineração de dados e textos em sistemas de inteligência artificial, nas atividades feitas por organizações e instituições de pesquisa, de jornalismo e por museus, arquivos e bibliotecas, desde que:
I – não tenha como objetivo a simples reprodução, exibição ou disseminação da obra original em si; II – o uso ocorra na medida necessária para o objetivo a ser alcançado; III – não prejudique de forma injustificada os interesses econômicos dos titulares; e IV – não concorra com a exploração normal das obras" [8] (grifo nosso).
Assim, conforme os apontamentos supracitados, vislumbra-se que a temática se esbarra em questões complexas envolvendo a tentativa de compatibilização entre o desenvolvimento e a proteção dessas tecnologias, o reconhecimento e uma possível equiparação entre a pessoa natural e um artefato tecnológico artificial, o que poderia gerar, por conseguinte, toda uma reformulação do sistema para lidar com questões envolvendo o uso indevido dessas construções intelectuais patenteáveis e uma possível responsabilização por tais práticas desempenhadas por pessoas físicas, jurídicas e, agora, por "pessoas artificiais", dentre outras questões.
Desse modo, à luz da legalidade constitucional que coloca a pessoa humana como a categoria central de proteção no ordenamento, defende-se que, a priori, as tecnologias já introduzidas no mercado não devem ter o condão de substituir ou mesmo de serem equiparadas à pessoa humana, pelas atuais propostas regulatórias. Posto que, uma possível equiparação, poderia ensejar um esvaziamento dos atuais mecanismos proteção ao indivíduo (autor e criador do conteúdo a ser patenteado) e reproduzir efeitos jurídicos compatíveis com uma lógica reducionista que mantém a predominância da patrimonialização das relações sociais, responsável pela instrumentalização do indivíduo e, desse modo, de suas aptidões criativas que são, potencialmente, mercantilizadas a níveis imensuráveis no contexto internacional, digital e de datificação da vida [9].
[1] DONEDA, Danilo. (et.al). Considerações iniciais sobre a inteligência artificial, ética e autonomia pessoal. Pensar, Fortaleza, v. 23, n. 4, p. 1-17, 2018.
[2] FERREIRA, Tamires. Openai e outras terão selo para identificar conteúdo gerado por IA. Olhar Digital. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/2023/07/21/internet-e-redes-sociais/openai-e-outras-terao-selo-para-identificar-conteudo-gerado-por-ia/> Acesso em: 23 jul. 2023.
[3] AFFONSO SOUZA, Carlos. Elis Regina mostra como recriação digital de pessoas mortas veio para ficar. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/colunas/carlos-affonso-de-souza/2023/07/05/elis-regina-mostra-como-recriacao-digital-de-pessoas-mortas-veio-para-ficar.htm>. Acesso em: 12 jul. 2023.
[4] Em linhas gerais, a patente é um título de propriedade outorgado pelo Estado de caráter temporário concedido às pessoas jurídicas ou físicas, para suas criações, visando evitar que terceiros possam produzir, reproduzir, vender ou importar essa invenção sem autorização prévia.
[5] FORBES. Suprema Corte dos EUA é provocada a decidir se inteligência artificial pode gerar patentes. Disponível em: em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/03/suprema-corte-dos-eua-e-provocada-a-decidir-se-inteligencia-artificial-pode-gerar-patentes/. Acesso em: 12 jun. 2023
[6] INPI. Inteligência Artificial não pode ser indicada como inventora em pedido de patente.
Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias%202022/inteligencia-artificial-nao-pode-ser-indicada-como-inventora-em-pedido-de-patente>. Acesso em: 11 jul. 2023.
[7] BRASIL. Lei 9.610, de 1998. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.610%2C%20DE%2019%20DE%20FEVEREIRO%20DE%201998.&text=Altera%2C%20atualiza%20e%20consolida%20a,autorais%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.&text=Art.%201%C2%BA%20Esta%20Lei%20regula,os%20que%20lhes%20s%C3%A3o%20conexos.>. Acesso em: 14 jul. 2023.
[8] BRASIL. Projeto de Lei nº2338, de 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233?_gl=1*16wxjln*_ga*MTk0NDUwNzM1Ny4xNjg2MzMwMzU4*_ga_CW3ZH25XMK*MTY4OTc4NTk3Ny42LjAuMTY4OTc4NTk4Mi4wLjAuMA..>. Acesso em: 12 jul. 2023.
[9] MELLO, B. C. de S. Patrimonialização da personalidade post mortem por meio da reconstrução digital. Conjur, 05 jan. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-05/souza-mello-patrimonializacao-personalidade-post-mortem. Acesso em: 19 jul. 2023.
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