Sucesso da reforma tributária depende do respeito ao pacto social
16 de julho de 2023, 6h08
A Câmara dos Deputados aprovou, em dois turnos, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 45/2019, que reforma o sistema tributário brasileiro. O texto será agora analisado pelo Senado, onde espera-se que ajustes importantes sejam realizados. Mas a sensação é de que a batalha mais difícil foi vencida. A concordância de centenas de deputados sobre melhorias fundamentais para a tributação do consumo no Brasil é um fato inédito e, por sua repercussão, histórico. Há motivos para comemorar.
O texto aprovado pela Câmara não é perfeito. Os debates sobre os impactos do novo sistema para os próximos anos não foram ideais. Apesar disso, é verdade que a proposta já estava suficiente madura com relação aos seus aspectos fundamentais. Afinal, estão bem compreendidas as mudanças e melhorias que podem ser experimentadas com a instituição de um tributo sobre o consumo com a base de incidência ampla, não cumulatividade plena e menor quantidade possível de alíquotas e regimes especiais. Mas questões relacionadas às compensações financeiras de estados mais pobres da federação e empresas beneficiadas por incentivos fiscais, em razão do deslocamento do recolhimento do tributo para o destino, exigiam maior aprofundamento.
O mesmo pode ser dito sobre a repartição de poder e representação dos estados e municípios no Conselho Federativo, que administrará o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). São temas menos óbvios, não diretamente relacionados à materialidade dos novos tributos, mas não menos importantes.
O fato é que a sociedade, mesmo com essas imperfeições, aceitou o novo modelo. A aceitação decorre da confiança de que este é o caminho certo a ser percorrido, pois já não suporta carregar o peso um sistema tributário complexo, disfuncional, fabricante de desigualdades, a perda de competitividade e discussões caras e inúteis. Parece que, ao menos em matéria tributária, finalmente a vaidade foi deixada de lado, sempre refratária às melhores práticas internacionais [1], inclusive em matéria de impostos, e foi reconhecido o exemplo da ampla maioria dos países industrializados na tributação do consumo. Agora, ainda que após tantos anos, o Brasil alinha-se ao que fazem as economias mais desenvolvidas.
A sociedade assinou um pacto social pela mudança, com concessões realizadas por diversos setores e contribuintes. Trata-se de um voto de confiança valioso, que deve ser respeitado. E isto dependerá da forma como o novo sistema será implementado, além da preservação dos seus fundamentos.
Não se deve esquecer que o ICMS e o PIS e Cofins, como hoje estão estruturados, não foram criados de um dia para o outro. Foram anos de deformações legislativas que transformaram esses tributos em colchas de retalho, sem qualquer racionalidade e difíceis de serem compreendidos, mesmo por especialistas. As restrições ao direito ao crédito na apuração do PIS e Cofins, que gerou um famoso contencioso acerca do conceito de "insumo", não estavam previstas na Constituição. Foi um Frankenstein criado no laboratório da legislação infraconstitucional e, pior, infralegal. A história não pode se repetir.
São diversas as matérias que a PEC n° 45/2019 delega à Lei Complementar. A este veículo normativo competirá regulamentar a não cumulatividade, inclusive com relação à definição do que são operações de "uso ou consumo", hipótese em que não existirá direito ao crédito. A vagueza do termo é terreno fértil para interpretações criativas (restritivas) que poderão ser positivadas na Lei Complementar. Essa lei também definirá as operações com bens e serviços sobre as quais as alíquotas serão reduzidas em 60% para determinadas atividades, como educação e saúde.
Note-se que a autorização para a redução não é para o setor, mas para algumas operações do referido segmento, a serem definidas. Aqui, todo cuidado é pouco para não serem criadas diferenciações injustificadas. Não é do interesse da sociedade, após reforma de tal magnitude, retornar ao status quo em que todos os contribuintes são iguais, mas alguns contribuintes são mais iguais do que outros. A concessão das alíquotas reduzidas deve ser feita com parcimônia e acompanhada de justificativas.
Justificativas ainda maiores serão necessárias para a inclusão bens e serviços no âmbito de incidência do Imposto Seletivo (IS). A redação proposta do inciso VIII do artigo 153 é de que seja onerado por esse tributo o consumo prejudicial à saúde ou ao meio ambiente. Muita coisa cabe aí. E tudo será definido pela lei, que nesse caso sequer precisará ser complementar.
Muitas das bebidas açucaradas e comidas hiper palatáveis, sabidamente prejudiciais à saúde, são largamente consumidas pela população menos favorecida economicamente, por serem mais baratas e práticas. A cobrança do IS nesse caso poderá potencializar a regressividade tributária, o que certamente não é positivo. São cautelas e debates que precisarão ser enfrentados na implementação do novo sistema.
Essas curtas e iniciais observações estão relacionadas à implementação do novo sistema constitucional tributário. Mas a nossa experiência mostra que não temos nenhum pudor de reformar a própria Constituição, quantas vezes sejam necessárias. Emendas à constituição são aprovadas frequentemente, o que leva a crer, com fundamento na história, não ser descabido o receio de que as bases da nova tributação sobre o consumo sejam alteradas a partir de uma deformação constitucional.
Impedir que isto ocorra deverá ser uma missão permanente de todos. Uma luta para a preservação de uma tributação do consumo mais simples, isonômica e eficiente. Trata-se, enfim, de respeitar o pacto social celebrado, sem o qual a reforma não terá sucesso.
[1] Sobre a ideologia de autossuficiência do Brasil e sua resistência em acatar recomendações consolidadas em matéria de economia e desenvolvimento, conferir FRANCO, Gustavo. Lições amargas – uma história provisória da atualidade. História Real, 2021.
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