Senso Incomum

A legitima defesa da honra é incompatível com a íntima convicção?

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13 de julho de 2023, 8h00

Antes de qualquer coisa, aqui vai o spoiler acerca de minha posição: ao menos a partir da tese dos ministros que acompanharam o voto do ministro Roberto Barroso na admissão da prisão imediata em qualquer decisão condenatória do Tribunal do Júri, posição baseada na soberania dos veredictos, torna-se contraditório, na ADPF 779, proibir o uso da tese da legitima defesa da honra.

Portanto, a resposta é "havendo íntima convicção, não é incompatível o júri absolver por legitima defesa da honra"!

Explicarei.

1. O ponto central da posição do ministro Barroso (vejam o voto) é a de que a soberania dos veredictos do júri é superior, em termos ponderativos, à presunção da inocência;

2. Consequentemente, a soberania dos veredictos é o ponto central do júri, a ponto de passar por cima do precedente vinculante exsurgente das ADCs 43, 44 e 54;

3. Sendo isso correto, não há razão para colocar em segundo plano a mesma soberania dos veredictos no mesmo momento em que se examina o uso de qualquer tese no plenário do respectivo tribunal popular;

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4. Isto é, se a soberania dos veredictos vale mais do que a presunção da inocência, por qual razão a íntima convicção, que está na mesma hierarquia da soberania, ficaria em segundo plano em relação ao uso da tese da clemência, legitima defesa da honra ou qualquer outra?

5. Ou a convicção é íntima ou não é. Tertius non datur.

6. Sou contrário à intima convicção por razões (e também da tese da legitima defesa da honra) que já declinei em dezenas de textos e livros (ler aqui entrevista minha e de Aury). Todavia, em se mantendo a íntima convicção (e não vi qualquer contestação do ministro Barroso a essa previsão constitucional), torna-se inconstitucional impedir que o advogado esgrima qualquer tese e os jurados absolverem por qualquer tese, inclusive a legítima defesa da honra;

7. Se a íntima convicção vale, então… vale;

8. Consequentemente, proibir o uso da tese da legítima defesa da honra no júri é contrariar a Constituição e isso decorre da coerência e da integridade da posição adotada pelo ministro Barroso no seu voto no Recurso Extraordinário no qual entendeu ser a soberania dos veredictos cláusula máxima do júri, a ponto de superar a presunção da inocência;

9. Se as decisões devem ser coerentes e íntegras (artigo 926 do CPC), parece contraditório entender que a soberania dos veredictos permite prisão imediata e, ao mesmo tempo, imiscuir-se na íntima convicção dos jurados. Aliás, é impossível, filosoficamente, sustentar essa intromissão. Como cercear o que está no íntimo? Quem poderá dizer o que se passa no íntimo de cada jurado? Simplesmente ninguém.

10. Afinal, se o júri é soberano nos seus veredictos — e para chegar ao veredicto ele tem a garantia de julgar por íntima convicção — como se poderia compatibilizar essas teses contraditórias entre si?

Explico e insisto de forma direta. A "íntima convicção" é um modelo já superado por séculos de filosofia. Surgiu do otimismo romântico dos revolucionários em 1790. No seu tempo, fazia sentido. Não melhoramos em nada filosoficamente?

Mas isso é assunto para outro texto (spoiler: estou escrevendo novo livro em que contemplo o assunto). Por agora, meu ponto é:

(1) não se pode ter o melhor dos dois mundos. Sob pena de ficarmos com o pior deles.

(2) Se admitirmos que a soberania dos veredictos vale mais que a presunção de inocência, somos obrigados a admitir que é possível, num paradigma constitucional (e de intersubjetividade, em que uma decisão fundamentada é garantia mínima de um direito íntegro e coerente), que se julgue e se decida por íntima convicção.

Outra pergunta (e que também vou contemplar no livro). Que "sistema de precedentes" é esse que não consegue extrair de uma decisão paradigmática como a da presunção de inocência nas ADCs mais do que um textualismo superficial, que não dá conta dos princípios que fundamentam a decisão (que, afinal, é o que vincula num precedente)?

Estamos preparados para levar nossas teses às últimas consequências? Esse é o busílis.

Simples assim. E complexo. Eram estas reflexões que queria trazer. Para dialogar. Afinal, como disseram dias atrás os advogados e professores que participaram do Congresso em Lisboa, "não devemos temer o diálogo". Correto. Diálogo sempre.

Essa é a ideia. Assim como já propus o diálogo nos textos "O STF, a prisão no júri e a interpretação equivocada do ministro Barroso" e "O juiz das garantias e a interpretação desconforme com a Constituição" dias atrás, reitero a intenção do debate com estas reflexões sobre a soberania dos veredictos e o papel da intima convicção. E sobre o futuro do júri. Que, aliás, é cláusula pétrea. Só podemos extinguir o júri se extinguirmos, antes, esta Constituição.

Será esse um caminho que queremos seguir? De novo: não podemos ter o melhor dos dois mundos. Insistir nisso pode ser perigoso. Afinal, como já disse o ministro Luís Roberto Barroso quando do julgamento da AP 565 (caso Cassol), "o dia em que a Constituição for o que os intérpretes quiserem independentemente do texto, nós vamos cair numa situação muito perigosa".

Tem toda a razão. Os textos podem revidar, como avisa de há muito o nosso querido Friedrich Müller (Die Texten können zurück schlagen).

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