Muito tem se falado sobre a reforma tributária que vem sendo discutida pelo grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que, no último dia 22 de junho, apresentou um texto substitutivo na a fusão das PECs nºs 45/2019 e 110/2019.
A última versão do texto traz o modelo de IVA dual (Imposto sobre Valor Agregado) que reuniria vários impostos do consumo do modelo antigo, substituindo cinco tributos. Assim, teríamos o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), relativo à reunião do ICMS estadual e o ISS municipal, e o CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) federal, relativo à reunião do IPI, PIS e Cofins. Ademais, o texto do substitutivo também cria um Imposto Seletivo (IS) de competência da União.
Com a preocupação de quem atua no sistema tributário, especialmente no do ICMS, há mais de 20 anos, esperamos que o texto possa colaborar para a compreensão da reforma, desconstruindo alguns mitos e alertando sobre inconstitucionalidades e prejuízos.
Mito da redução de carga
É mito a ideia de que a reforma trará uma redução de carga tributária. Na verdade, a reforma proposta abertamente prega a neutralidade de carga para os entes tributantes (União, estados e municípios), ou seja, não haverá perda das receitas atuais, o que obviamente implica em manutenção da carga atual.
Inclusive, entendemos que há indícios claros de que a reforma proposta acabará em um aumento de carga tributária, especialmente para setores como o de serviços e do agronegócio. Explicamos: num primeiro exemplo, trazemos o caso de prestadores de serviços médicos e de educação que estejam fora do Simples Nacional e atualmente pagam a alíquota máxima de 5% no ISS municipal. Eles passarão a pagar 50% da alíquota estimada do IBS de 25%, ou seja, 12,5%.
Em um segundo exemplo, analisamos o caso um produtor rural ou uma empresa agropecuária com faturamento acima de R$ 2 milhões, e que atualmente tem a tributação de ICMS diferida, e assim não paga o imposto estadual na saída. Ele passará a pagar 50% da alíquota estimada de 25% do IBS, ou seja, 12,5%.
Mito da simplificação
Também é um mito a questão da tão desejada simplificação. A reforma não implanta o chamado "imposto único" como muitos estão pensando. O modelo do IVA dual com seus IBS e CBS também não substitui todos os tributos existentes no sistema, sendo que ainda serão mantidos diversos outros impostos, dentre eles IRPF, IRPJ, IOF, ITR, IPVA, ITCMD, ITBI, IE, II, taxas e contribuições. Inclusive, a reforma proposta cria um novo Imposto Seletivo (IS) de competência da União e que tem grande potencial para ser inflado com o passar dos anos.
Ademais, haverá uma regra de transição do sistema antigo para o modelo novo que levará oito anos. Assim, durante todos estes anos o contribuinte terá que manter suas atuais escriturações (federal, estadual e municipal) e mais dois no sistema do IVA dual (um do IBS subnacional e um do CBS federal), bem como uma outra escrituração para o novo imposto seletivo federal. Isso sem contar os casos de empresas que também terão que continuar fazendo a escrituração do Simples Nacional caso dele participarem.
Outrossim, a situação poderá se complicar muito devido à diversidade de alíquotas finais do novo sistema. O texto prevê que a alíquota final/global do IBS será, na verdade, a soma das alíquotas individuais do estado e do município em que ocorrerá a operação (redação do inciso VII, do artigo 156-A). Assim, cada Estado e o Distrito Federal (27 no total) e cada município (5.568 no total) poderá ter uma alíquota diferente do outro, o que resultaria em uma infinidade de possibilidades de alíquotas finais/globais a ser conhecida pelo contribuinte e seu contador.
Igualmente, a questão do creditamento poderá gerar muita judicialização e insegurança jurídica. Explicamos: muitos contribuintes que pagavam pouco imposto no sistema antigo passarão a pagar muito mais no sistema novo apenas com a promessa do "canto da sereia" relativo à possibilidade do uso de créditos das operações anteriores e das operações de compra de insumos e maquinários. No entanto, pela lógica empresarial do lucro e do valor agregado, esse crédito sempre será menor que o débito de imposto.
Também será extremamente complicado comprovar um crédito anterior de IBS na escrituração do contribuinte, pois muitas empresas fornecedoras do país são do Simples e, assim, têm dificuldades e condicionantes para permitir o aproveitamento do crédito de IBS pelo comprador na etapa posterior (redação do §2º e §3º, do artigo 146 no texto do Substitutivo). Portanto, não resta dúvida de que a escrituração dos créditos será extremamente difícil e altamente judicializada (insegurança jurídica).
Ademais, não poderíamos deixar de registrar que no quesito burocracia é muito ruim o exemplo atual que o Brasil já tem de tributação unificada (federal, estadual e municipal) e Conselho Gestor do conhecido sistema do Simples Nacional atualmente em vigor e que, na verdade, é o terror dos contabilistas, advogados e dos próprios agentes dos Fiscos. Iniciado em 2007, o Simples Nacional já conta (em 2023) com o incrível número de "193" resoluções regulamentadoras do seu Conselho Gestor. Em resumo, com perdão do trocadilho, o exemplo atual de arrecadação unificada federalizada poderia ser tranquilamente chamado de "Complicado Nacional".
Encerrando este item, apesar de ser um desalento para todos os operadores do sistema tributário nacional e até mesmo um reconhecimento de impotência, é fato que existem muitas vozes alertando para o brocardo pessimista de que, infelizmente, "imposto bom é imposto velho". Esse provérbio encontra lastro na cultura de judicialização brasileira e, principalmente, na experiência de demora dos tribunais superior no julgamento definitivo de diversas questões passadas de ICMS, ISS, IPI, PIS, Cofins, etc.
Inconstitucionalidade do IBS e seu Conselho Federativo por ofensa à autonomia de estados e municípios
Em que pese ser bastante lógica a tentativa de simplificação do Sistema Tributário Nacional com a ideia de reunião de diversos tributos federais, estaduais e municipais, fato é que vivemos em uma República Federativa em que a competência tributária e a autonomia dos estados e municípios tem previsão e proteção na Constituição de 1988 (artigo 1º e artigo 18), sendo este denominado Sistema Federativo (Pacto Federativo) uma cláusula pétrea constitucional (artigo 60, §4º, I, da CF). Ou seja, a Constituição originária de 1988 não permite nem mesmo a aprovação de uma Emenda Constitucional nova que implique em ofensa à autonomia dos respectivos estados e municípios.
Portanto, não é possível juridicamente uma reforma vertical no sistema tributário nacional que proponha o fim do ICMS estadual e do ISS municipal, considerando suas severas implicações na autonomia de estados e municípios. No texto do substitutivo do GT da Câmara (redação do artigo 16, II, do substitutivo) é prevista a revogação dos dispositivos constitucionais do ICMS (artigo 155, II, da CF) e do ISS (artigo 156, III, da CF) ao final do período de transição da Reforma.
Logo, em resumo, a reforma atinge em cheio a autonomia dos estados e municípios, pois extingue o ICMS, que é a maior receita de 100% dos estados federados, e faz o mesmo com o ISS que também é a maior fonte de receita tributária de milhares de municípios.
Na prática, as autonomias (financeira, administração tributária, política fiscal, orçamentária, contencioso tributário, prerrogativas legislativas e regulamentares e até representação judicial) decorrentes das competências tributárias constitucionais do ICMS e do ISS, bem como seus antigos fatos geradores e suas receitas tributárias passam a compor a base do novo IBS que, por sua vez, será gerido por um super Conselho Federativo que é quem terá a real legitimidade ativa da exigência tributária e de toda a administração tributária do novo imposto.
O sistema constitucional de 1988 e o Pacto Federativo não permitem a extinção destes impostos (ICMS e ISS) com a delegação das autonomias decorrentes deles a um outro ente ou organismo. Portanto, a inconstitucionalidade da reforma tributária é estrutural.
Com a devida vênia, na prática, o que está se propondo com o novo IBS é refundar o Estado brasileiro, agora sem o sistema federativo protegido pelo Constituinte originário.
Seguindo este mesmo raciocínio, o STF é muito claro quanto à necessidade de respeito à competência tributária e autonomia tributária do ente federado. Vejamos:
"A repartição de competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes políticos". (RE 591.033, relator: Ellen Gracie, de 17/11/2010.
"Destarte, para que a autonomia política concedida pelo constituinte aos entes federados seja real, efetiva, e não apenas virtual, cumpre que se preserve com rigor a sua autonomia financeira". (RE 572.762, relator: Ricardo Lewandoski, de 18/06/2008)
"A desejada autonomia política não poderia existir sem que estivesse aliada à autonomia financeira, e esta, no contexto de um Estado fiscal, depende, fundamentalmente, da divisão de competências tributárias e da partilha do produto da arrecadação tributária". (ADO 25, relator: Gilmar Mendes, de 30/11/2016)
Prosseguindo, o cenário visualizado com a reforma é tão caótico que entes passarão a ser estados e municípios "dependentes de fundos" e "sem gestão tributária própria". Na prática, estes entes se tornarão dependentes da conhecida “política do pires na mão”, seja perante a União, seja perante o próprio super Conselho gestor.
Ressaltamos que, com sua "independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira" prevista na redação do §1º, do artigo 156-B do texto do substitutivo, o Conselho do IBS nasce como uma pessoa jurídica nova que nunca foi prevista pelo Constituinte originário mas já usurpa toda a autonomia tributária e financeira e controla o destino de 27 estados e 5.568 municípios. O quadro é tão grave que nem a poderosa União detém tais poderes e atribuições no sistema atual, o que causa espanto.
De modo pragmático, o Conselho Federativo do IBS será em curtíssimo espaço de tempo o "ente" mais poderoso da República. Mais importante até que a própria União, e mais relevante que a própria Presidência da República, Presidência do Senado, Presidência da Câmara e governadores.
Ademais, os cargos de governador, prefeito, de deputado estadual e vereador possuem previsão constitucional (artigos 27, 28 e 29, da CF) e, obviamente, possuem as suas competências protegidas pelo Pacto Federativo, sendo que a soberania popular exercida pelo voto nestes cargos também não admite uma delegação desta magnitude ao Conselho Gestor.
Da mesma forma, na seara da administração tributária, fiscalização, contencioso tributário e representação judicial, as competências e prerrogativas das carreiras fiscais (artigos 37, XXII e XVIII, da CF) e advocacia pública (artigo 132, da CF) também não podem ser substituídas ou mitigadas pelo super Conselho gestor.
Dos prejuízos da reforma aos estados menores e aos estados do agronegócio
Sobre a questão dos impactos, são grandes os prejuízos que a reforma traz para os estados pequenos e do agronegócio. A simples alteração da cobrança do ICMS pelo sistema misto atual para o sistema único do destino já acarretará enormes perdas tributárias para estados com pequeno mercado consumidor. Nem as promessas de ressarcimento de perdas de arrecadação via fundos são suficientes, pois é ruim a lembrança do antigo fundo para compensação da Lei Kandir.
Igualmente, a produção dos estados do agronegócio é eminentemente voltada para a exportação que, por sua vez, é totalmente desonerada também no modelo novo, o que aumenta as perdas. Com a reforma, a arrecadação desses estados acabará limitada a um descompensado incide de crescimento estanque. Atualmente estes estados possuem altas taxas de crescimento econômico que, obviamente, refletiam no ICMS. Outro efeito prejudicial é o de que estes estados agroexportadores serão obrigados a quitar um volume bilionário de dívida de créditos do ICMS antigos decorrentes das exportações da Lei Kandir implementada pela União.
Por fim, a reforma no modelo proposto também causará severos prejuízos sociais como fechamento de empresas e vagas de trabalho nos Estados menores e que ainda estão se desenvolvendo através da competição fiscal de ICMS e de suas políticas de incentivos fiscais. A reforma veda a concessão de qualquer tipo de benefício fiscal, com exceção de alguns muito específicos. Logo, haverá um sério retrocesso na única política efetiva de atração de investimos já experimentada por estes estados menores ao longo da história.
Conclusão
Diante do exposto, de início pontuamos nossa posição no sentido de que uma reforma tributária nacional é tema urgente, considerando que uma reforma equilibrada teria potencial para melhorar o ambiente de negócios e alavancar a economia. Não temos dúvidas sobre a necessidade de uma reforma que traga redução na carga de impostos, simplificação e segurança jurídica. Tudo isso com uma calibragem social (carga menor para famílias menos favorecidas) coexistente com um ponto ótimo de carga na Curva de Laffer que não inviabilize o ambiente de negócios, mas sim o impulsione. Também não deixamos de defender uma reforma que de fato discuta a tributação sobre as grandes fortunas (já prevista no texto da constituição, mas nunca implementada) e tributação do setor financeiro tanto favorecido no sistema atual.
Neste espírito, com o devido respeito, temos sérias dúvidas sobre o modelo de reforma tributária vertical proposto no Substitutivo da Câmara dos Deputados. Na verdade, temos receio de que "a dosagem do remédio acabe agravando a doença do paciente", com riscos evidentes de que Reforma complique ainda mais o Sistema Tributário atual, sendo que a redução de carga e a simplificação são mitos e há evidente inconstitucionalidade do IBS e seu Conselho por ofensa à autonomia de estados de municípios. Da mesma forma, são certos os prejuízos aos estados menores e aos estados do agronegócio.
Finalizando, concluímos pela necessidade de o Congresso se debruçar sobre outros modelos de propostas de reforma tributária horizontal menos ambiciosas e traumáticas, que preservem as competências de ICMS e ISS dos estados e municípios e, ao mesmo modo, avancem na simplificação destes impostos. Tudo isso através da padronização de legislações e de alíquotas, bem como mediante a redução de obrigações acessórias e um foco na liberação de créditos da não cumulatividade.