Opinião

A legalidade da Lei nº 14.046/2020 e a necessidade de manifestação do STJ

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31 de janeiro de 2023, 20h37

Em decorrência da pandemia da Covid-19, surgiram inúmeros efeitos negativos para o setor de turismo e lazer, dentre os quais o cancelamento de voos, a determinação de fechamento de fronteiras por diversos países, bem como o fechamento de todas as atrações ao público, inclusive de parques de diversão e hotéis. 

É irrefutável que, diante das referidas circunstâncias, os consumidores tiveram problemas para usufruir dos produtos e serviços adquiridos. O contexto existente fez surgir diversos diplomas normativos para reger as situações jurídicas excepcionais criadas pela calamidade pública, dentre elas a Medida Provisória (MP) nº 948, publicada em abril de 2020.

Essa norma dispôs sobre medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia da Covid-19 nos setores de turismo e de cultura, e disciplinou as relações jurídicas entre clientes e fornecedores nesses ramos. Posteriormente, a MP foi convertida na Lei nº 14.046/2020, a qual, com a manutenção do estado de calamidade provocado pela pandemia e seus reflexos, teve pequenos acréscimos e alterações de datas pelas Leis nº 14.186/2021 e 14.390/2022.

O que não se alterou desde o início, no texto publicado na MP, foi a previsão de que os fornecedores não seriam obrigados a reembolsar os valores pagos pelos consumidores, caso assegurassem a remarcação ou disponibilização do crédito para utilização futura.

O texto atual ainda prevê a aplicabilidade de tal regra para todos os serviços, reservas e eventos que estavam previstos para acontecer entre 1º de janeiro de 2020 e 31 de dezembro de 2022 e que foram cancelados ou adiados em decorrência da pandemia da Covid-19.

A obrigatoriedade de restituição do valor recebido ao consumidor somente foi estabelecida na hipótese de os fornecedores ficarem impossibilitados de oferecer a remarcação dos serviços ou a disponibilização de crédito para utilização pelos consumidores.

Verifique-se que não se trata de política de remarcação elaborada pelas empresas ou mesmo de disposições contratuais convencionadas entre as partes, trata-se de comando legal. Ocorre que há discussão sobre a possibilidade de prevalência das disposições previstas na Lei nº 14.046/2020 sobre o CDC e demais princípios existentes.

Atualmente urge a necessidade de manifestação sobre o tema pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), pois se observa uma série de decisões conflitantes entre os Tribunais de Justiça Estaduais, além das Turmas Recursais. A ilegalidade da legislação é defendida por parte dos Magistrados sob o fundamento de afronta a princípios e disposições legais existentes no CDC, como da vulnerabilidade do consumidor, onerosidade excessiva e da modificação das cláusulas contratuais de forma que estabeleçam prestações desproporcionais.

Todavia, por se tratar de legislação extraordinária, destinada a regular de forma razoável relações jurídicas temporárias surgidas no âmbito da pandemia da Covid-19, é a Lei referida que se aplica ao caso em tela, de forma que inexiste, para esse caso, qualquer conflito de normas ou afronta a princípios e legislação consumerista. 

Trata-se de norma de cunho protetivo, em consonância com o artigo 180 da Constituição, que determina que a União, estados e municípios devem promover e incentivar o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico. Veja-se trecho da Exposição de Motivos da MP que elucida a importância da sua aplicação:

"Esta proposta de Medida Provisória decorre dos fortes prejuízos que a pandemia do Covid-19 está ocasionando no setor de prestação de serviços turísticos no Brasil. De acordo com a Associação Latino Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta) e dos representantes das Companhias Aéreas Internacionais do Brasil, a disseminação da Covid-19 está impactando o transporte aéreo e tornou-se um grande teste para o turismo e para as economias globais. Vários governos têm reduzido unilateralmente os voos de determinados países e regiões, gerando um impacto maior em toda a indústria. Em conformidade com a referida Associação, o setor está diante da pior crise da história da aviação e do turismo, que sem dúvida gerará uma das maiores crises econômicas globais [1]."

É evidente que o cenário jurídico brasileiro não pode ser mantido em inércia diante da situação atípica mundialmente vivenciada, são necessários novos institutos e instrumentos para reequilibrar as obrigações diante desse novo cenário. Não existem direitos absolutos, nem mesmo os constitucionalmente previstos, todos são passíveis de ponderações e sopesamentos. Tal conclusão também se aplica ao ramo de relações de consumo.

As normativas citadas tão somente impõem novas formas de cumprimento da obrigação, em que se buscaram equilibrar os interesses dos consumidores e dos fornecedores, diante das circunstâncias atípicas  de força maior  trazidas pela pandemia da Covid-19.

O que se pode entender como forma de defender o lado do fornecedor, nesse caso, nada mais é do que considerar que este também é detentor de indiscutível relevância social, conforme ensina Gladston Mamede [2], de que decorre a importância de sua preservação, que não é, portanto, "proteção do empresário, nem da sociedade empresária, mas proteção da comunidade e do Estado que se beneficiam  no mínimo indiretamente  com sua atividade".

A título elucidativo, veja-se que a World Travel and Tourism Council (WTTC) estima que a pandemia tenha impactado 53% do total de empregos gerados pelo setor do Turismo no mundo. Ainda, segundo a Organização Mundial do Turismo (OMT), a recuperação do cenário no segmento deve levar entre cinco e sete anos.

Alinhado a esse entendimento foi o voto proferido pelo desembargador Ruy Coppola do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), ao afirmar que:

as consequências negativas da pandemia da Covid-19 afetam tanto o consumidor quanto o fornecedor. Todavia, no caso do setor do turismo, que inclui agências, hotéis, companhias aéreas e outros agentes econômicos, os fornecedores foram mais afetados do que os consumidores, considerando as restrições de viagem e a perda expressiva do faturamento por longo período. Pensando no setor do turismo, foi editada a Medida Provisória nº 948/20, que é aplicável aos "prestadores de serviços turísticos e sociedades empresárias a que se refere o artigo 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008" (artigo 3º, inciso I). […] Tal medida tem por objetivo impedir a falência das empresas e agentes que atuam no setor de turismo [3].

Diante de todas as ponderações acima, conclui-se que as soluções adotadas pela MP, posteriormente convertida na Lei nº 14.046/2020, não estão em dissonância com o CDC, considerando a situação de calamidade pública vivenciada. Tratou-se de medidas excepcionais necessárias e criadas no momento oportuno, com respeito à razoabilidade e à boa-fé objetiva, elas são plenamente válidas e aplicáveis.

Por fim, carecem então, fornecedores e consumidores, de um posicionamento do STJ acerca da matéria, inclusive pela sistemática de recurso repetitivo, para que se tenha uma aplicação uniforme da Lei n. 14.046/2020 em todo o território nacional.


[1] BRASIL. Medida Provisória nº 948, de 8 de abril de 2020. Dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19). Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 1, 8 abr. 2020. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2020/medidaprovisoria-948-8-abril-2020-789988-exposicaodemotivos-160457-pe.html. Acesso em: 19 jan. 2023.

[2] MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro. Volume 4: Falência e Recuperação de Empresas. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009, p. 164.

[3] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO (TJ-SP). 32ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento nº 2129966-84.2020.8.26.0000. Relator: Ruy Coppola, 22 jul. 2020.udo bem?

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  • Brave

    é especialista em Direito Tributário pelo Ibet, pós-graduando em Processo Civil pelo Cesusc e graduado em Direito pela mesma instituição e auditor do Tribunal de Justiça Desportiva de Santa Catarina.

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