Opinião

O Direito da Arte e a reparação da memória judaica do pós-guerra

Autor

  • Gustavo Bayum de Paiva

    é pós-graduado em Direito de Empresas pela PUC-Rio bacharel em Direito pela UFRJ sócio do Bayum de Paiva & Andrade Advogados e head de Societário & Investimentos e de Private Clients HNW — Art Law.

31 de janeiro de 2023, 15h22

O Holocausto do século 20 foi mais do que um dos maiores genocídios da história moderna. A barbárie do assassinato de 6 milhões de judeus representa apenas a mais brutal das muitas formas de violência imposta pelo regime nazista alemão e seus aliados. As violações foram, também, patrimoniais, destruindo legados e fazendo com que os herdeiros dos sobreviventes carregassem as consequências da perseguição para o resto da genealogia, o que tornou a reparação histórica (ou sua tentativa) ainda mais difícil.

Muitos casos de violência patrimonial foram direcionados a obras de arte em propriedade judaica. Forças policiais do Reich coagiam, quando não apenas desapropriavam, proeminentes empresários judeus a alienar suas coleções por preços irrisórios para compradores definidos pelo regime. Após a transação, o valor da venda era tipicamente depositado numa conta em nome do vendedor bloqueada pelo governo nazista e, depois de alguns anos, incorporada ao patrimônio estatal. Em outros casos, o governo cobrava uma espécie de taxa para permitir a saída de judeus do país, a qual chegava até 50% do patrimônio.

Segundo a Declaração de Terezín sobre Ativos da Era do Holocausto e questões relacionadas (2009), "propriedades artísticas e culturais de vítimas do Holocausto e outras vítimas da perseguição nazista foram confiscadas, sequestradas e espoliadas, pelos nazistas, fascistas e seus colaboradores através de vários meios, incluindo roubo, coerção e confisco, e por motivos de abandono, bem como vendas forçadas e vendas sob coação" [1]. Estima-se que cerca de 600 mil de obras tenham mudado ilegalmente de mãos durante o período. Muitos oficiais, em posse das pinturas, as trocavam por obras acadêmicas e renascentistas, introduzindo-as numa incerta e nebulosa história de proveniência que hoje aponta a todos os cantos do globo. Estima-se, também, que o destino de 90% destas obras permaneça um mistério.

A pilhagem de arte foi marcante no Reich alemão. Calcula-se hoje que cerca de 30 mil obras permaneçam desaparecidas em locais desconhecidos, escondidas ou perdidas em naufrágios. Quanto as que se encontram atualmente em coleções privadas ou no acervo de grandes museus, muitas carregam uma sombria e imprecisa linha de propriedade, o que se apresenta como pano de fundo para pedidos milionários de restituição de posse movidos por herdeiros dos sobreviventes.

A mais recente delas discute a propriedade da pintura Girassóis de Van Gogh (1888), atualmente disposta no Sompo Museum of Art em Tóquio. A tela foi adquirida pela última vez em 1987 por 25 milhões de libras em leilão da Christie's pela Yasuda Fire & Marine Insurance Company, posteriormente incorporada pela Sompo Holdings, e virou ponto central do litígio iniciado pelos descendentes americanos do proeminente banqueiro judeu-alemão Paul von Mendelssohn-Bartholdy, os quais sustentam que a obra teria sido alienada sob a coação do regime nazista em 1937 [2].

Em caso semelhante, os herdeiros da colecionadora Hedwig Stern reivindicam, perante a corte do Distrito Norte da California, a propriedade do quadro A Colheita das Oliveiras (1889), também de Van Gogh, atualmente no The Basil and Elise Goulandris Museum of Contemporary Art em Atenas. O caso é semelhante ao anterior, com o ingrediente extra de implicar o The Metropolitan Museum of Art em Nova York, uma das mais respeitadas instituições artísticas do mundo. O museu teria comprado e vendido a obra sabendo (ou pelo menos devendo saber) que provavelmente se tratava de uma obra pilhada pelo nazismo, numa série de operações escusas e posteriormente denunciadas pelo The New York Times [3].

Nessa espúria história, o Brasil não é exceção. É sabido que muitos nazistas fugiram da Alemanha após a queda do Reich e seguiram em direção ao país, assumindo novas identidades e carregando consigo diversos bens expropriadas durante a perseguição judaica. No entanto, do lado pouco conhecido dessa memória, fortes evidências, e mais de uma alegação, apontam que algumas dessas obras se encontram hoje no acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), mais importante centro artístico nacional.

Em 2008, uma família judaica de origem alemã fez um pedido formal ao Masp pleiteando a restituição do quadro flamenco O Casamento Desigual, atribuído a um dos discípulos de Quentin Metsys, informando que a tela teria sido leiloada pelas duas filhas do banqueiro Oscar Wassermann em 1936 para pagar as taxas de saída do país impostas a judeus[4]. Anos mais tarde, representantes dos herdeiros do marchand alemão Alfred Flechtheim entraram em contato com o museu, alegando que cinco esculturas em bronze de uma série de 73 de Edgar Degas teriam sido roubadas no Holocausto e hoje estariam no acervo brasileiro mais importante [5].

A preocupação em promover uma resolução reparatória para tais fatos não é nova. Em 1943, o governo norte-americano iniciou o programa The Monuments, Fine Arts, and Archives (MFAA), divisão especial vinculada ao exército e dedicada a localizar e restituir obras de arte confiscadas pelo Reich. No mesmo sentido, a Conferência de Washington de 1998 estabeleceu diretrizes segundo as quais obras confiscadas em decorrência de perseguição nazista deveriam ser devolvidas a seus donos ou sucessores. Mais recentemente, em 2009, a já mencionada Declaração de Terezín, assinada pelo Brasil, ampliou o conceito de obras confiscadas, incluindo nesse rol aquelas vendidas sob coação.

Na mesma toada, tais declaração estabeleceram um pacto multinacional sob o qual as instituições artísticas e museus concordaram em inspecionar seus próprios acervos, restituindo, ou ao menos sinalizando, as obras afetadas pela expropriação nazista. No entanto, a realidade não tem se mostrado tão compreensiva.

Nesse sentido, importantes jurisdições, especialmente da civil law, entendendo a necessidade de reparar injustiças perpetradas por um dos mais sanguinários regimes da história moderna, editaram legislações específicas acerca de pedidos de restituição, positivando as declarações internacionais de princípios e possibilitando que herdeiros nacionais de judeus perseguidos conseguissem reaver o patrimônio perdido gerações antes. Tal preocupação apontou para as particularidades daquele período e dos meios usados pelos nazistas, compreendendo a força de uma cassada institucionalizada que perdurou por uma década e entendendo que provisões ordinárias do direito possessório, abarcadas por institutos como prazos decadenciais e usucapião, não ofereceriam uma solução principiologicamente justa.

O conflito surge uma vez que o regramento possessório tradicional tem o dever de regular questões típicas numa normalidade civilizatória, dedicando alguns pontos à excepcionalidade. Entretanto, certos momentos históricos têm o condão de extrapolar qualquer linha desenhada pela imaginação legislativa e nos apresentar lampejos da barbárie. Nesses casos, a tentativa de resilir tais questões com base em normas existentes pode representar a perpetuação dos danos causados pelo desumano.

Em verdade, a real dimensão da problemática depende de um entendimento profundo acerca do significado do patrimônio cultural e artístico, das raízes, da memória e da própria história. Tratar tais questões sob a ótica limitada pelo absurdo da legislação típica é institucionalizar a exceção e avalizar os desdobramentos de um genocídio. Anos mais tarde, Terezín e Washington ainda se apresentam como discursos num campo dominado pela ação. E a ideia de uma reparação ampla permanece perdida em algum canto do globo.

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