Câmara de Resolução de Lítigios em Saúde: solução para conter a judicialização?
28 de janeiro de 2023, 7h09
O direito à saúde, como sabido, é fundamental e social, inerente à segunda geração/dimensão de direitos, deveres e garantias fundamentais, ou seja, primordial para o florescimento humano. Essa perspectiva não é diferente no Brasil, quando analisados os artigos 5º, 23, II e 195, da Constituição, bem como os dispositivos legais 1º, 2º, §§1º e 2º, e 3º, caput e parágrafo único, da Lei 8.080/90.
Há, por certo, na Lex Major nacional, a imprescindibilidade de preservação holística de políticas públicas, de maneira a vedar o retrocesso social ou "efeito cliquet" na área sanitária, com vistas ao cumprimento dos objetivos fundamentais da República, estampados no artigo 3º, I, II, III e IV, da CRFB/88.
Nesse contexto, o federalismo brasileiro entra em cena, no que tange a reparticipação de competências, elaborada pela Constituição, para implementação efetiva do Sistema Único de Saúde (SUS), de maneira a garantir o atendimento integral, dentro de parâmetros fático-materiais viáveis, de demandas sanitárias. Com efeito, União, estados, municípios e Distrito Federal, sob a égide da Lei 8.080/90, e do princípio da solidariedade, com base nos artigos 3º, I, 23, II, e 198, da CRFB/88, buscam efetivar mecanismos que dialoguem, observando a alteridade normativa, com o cidadão e com os recursos financeiros, pessoais e instrumentais, acessíveis e atinentes a vicissitudes que envolvem a administração pública e, por específico, a gerência do SUS.
A problemática em torno do atendimento de inúmeras demandas sanitárias e da escassez de recursos financeiros é antiga, sobretudo, quando visualizada a "judicialização da saúde" e, por efeito, a influência do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, atuando como verdadeiro gestor — competência que pertence, por excelência, ao Poder Executivo. Daí a crítica com base no ativismo judicial.
É válido ressaltar que o Supremo Tribunal Federal (STF), no Tema 793, decidiu que os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Em respeito à Lei 8.080/90, nenhum ente federativo deve arcar, solitariamente e, de maneira desmedida, com as responsabilidades sanitárias de outros entes, em respeito aos artigos 7º, caput, IX, alíneas "a" e "b", 8º, caput, 9º, I, II e III, e 15, da Lei 8.080/90. Caso isso ocorra, será possível ajuizar, por parte da pessoa jurídica de direito público que assumiu o encargo relacionado ao direito à saúde, ação de ressarcimento em face do ente faltante em sua obrigação constitucional-legal.
Nesse cenário, a teoria da reserva do possível [1] apresenta-se, de plano, como limitadora da realização integral e, a todo custo, de Direitos Fundamentais, expondo, quando de forma concreta e objetiva, a limitação de recursos financeiros por parte do poder público. Isso porque, a administração estatal necessita atender a outros direitos fundamentais, como educação e segurança, sem pestanejar e desconsiderar a essencialidade do direito à saúde.
O gestor público adentra em um dilema ético-moral: investir, para além da determinação constitucional, vide artigo 198, §2º, I, II e III, da CRFB/88, recursos financeiros e instrumentais para realização do direito saúde (consultas, internações, medicamentos, próteses, órteses), sem planejamento prévio ou accountability (não raro, por força de decisão judicial [2]) ou atender, limitadamente, a esse direito, e ser criticado socialmente?
Para solucionar, ainda que minimamente, essa questão, é necessário atingir alguns objetivos, para fluidez da política pública na área sanitária: atendimento efetivo e ágil na esfera administrativa, diálogo institucional e redução de demandas judiciais.
Existem players jurídicos e políticos, em destaque, que movimentam a administração pública em demandas de massa, como no caso do direito à saúde, alguns deles: gestores do Poder Executivo, magistrados, defensores públicos, membros do Ministério Público, advogados públicos e privados, e cidadãos. Cada componente possui papel fundamental, haja vista a necessidade de comunicação harmoniosa, pacífica e solidária entre eles, para eventual cessação de violações ao direito fundamental à saúde.
À vista dessas considerações, é que desponta a Câmara de Resolução de Litígios em Saúde (CRLS), com a finalidade de otimizar o atendimento do cidadão em eventual lesão a direito à saúde, promovendo o diálogo democrático e institucional entre os atores listados acima, sem restringir o artigo 5º, XXXV, da CRFB/88, que trata da inafastabilidade da jurisdição. Tal lógica expande o conceito de acesso à Justiça, interligado, classicamente, à potencialidade de conhecer (cognitiva) o direito e recorrer ao Judiciário, para resolução de um conflito (CAPPELLETTI; GARTH, 1988)[3]. Exemplo de implementação dessa estratégia é a CRLS [4] do Rio de Janeiro (RJ) e a Câmara de Conciliação em Saúde (CCS) da Bahia (BA).
É importante afirmar que as resoluções administrativas interligadas à Saúde não desconstituem, absolutamente, o caráter indisponível desse direito, já que elas visam facilitar e otimizar a satisfação do cidadão e a cooperação entre este e os órgãos públicos, em uma via de mão dupla. Com isso, reduz-se atritos institucionais e sociais no âmbito da administração pública dialógica, isto é, aquela que convida o sujeito de direitos para participar do direcionamento de políticas públicas e da defesa de direitos personalíssimo e metaindividuais, em observância aos objetivos fundamentais da República e aos princípios da confiança legítima e da segurança jurídica.
Criada em setembro de 2013, a CRLS/RJ é um projeto de cooperação que reúne as Procuradorias Gerais do estado e do município do Rio de Janeiro, bem como as secretarias estadual e municipal de Saúde, as Defensorias Públicas estadual e da União, e o Tribunal de Justiça do estado.
De acordo com Procuradoria-Geral do Rio de Janeiro (PGE-RJ), entre setembro de 2013 e janeiro de 2020, foram realizados mais de 80 mil atendimentos a pessoas que optaram por não ir à Justiça para tutelar seus direitos em face de demandas que não foram atendidas na rede pública de saúde do Rio de Janeiro.
Ao invés da peleja judicial, os cidadãos vislumbraram o centro de conciliação e de mediação para marcar cirurgias, para receber medicamentos ou para obter transferências entre unidades hospitalares. O índice de resolução administrativa extrajudicial dos casos passou de 35% (trinta e cinco), no inauguração da CRLS, em setembro de 2013, para 68% (sessenta e oito), em dezembro de 2019
A estratégia é buscar soluções administrativas para o atendimento de cidadãos que precisam de medicamentos, exames, internações, tratamentos e transferências do Sistema Único de Saúde (SUS), evitando e prevenindo o ajuizamento de ações.
O procedimento é célere, os assistidos passam por uma triagem para conferir se o caso, de fato, é relacionado à saúde. Em seguida, são recebidos por assistentes sociais que fazem o cadastro e definem se o atendimento será feito pela Defensoria Pública do Estado ou da União. É necessário apresentar os seguintes documentos: identidade, Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), comprovantes de renda e residência, laudo ou receita médica atualizada, até 60 dias, e exames médicos pertinentes, se houver.
A Câmara recebe os pedidos por prestações sanitárias que são levados às Defensorias, para que as secretarias de Saúde possam avaliar a disponibilidade no SUS, ou ainda outra alternativa para a oferta do tratamento. Em caso positivo, o paciente recebe, no mesmo dia, guia de encaminhamento para a unidade de saúde onde receberá o atendimento. O órgão conta com equipe multidisciplinar composta de enfermeiros, farmacêuticos, nutricionistas, assistentes sociais e médicos para elaborar pareceres técnicos, de acordo com o quadro clínico apresentado e os tratamentos solicitados.
Outro exemplo, é a Câmara de Conciliação em Saúde (CCS) [5], do estado da Bahia. Essa iniciativa visa, segundo a Secretaria de Saúde, cooperação entre órgãos públicos baianos para promover o atendimento de usuários do SUS no município de Salvador. Além disso, a CCS objetiva encontrar soluções que minimizem a necessidade de pacientes acionarem a Justiça para resolver alguns tipos de questões relacionadas à Saúde, como a oferta de medicamentos e o fornecimento de fórmulas alimentares especiais, a exemplo da CRLS do Rio de Janeiro.
Ao encontrar dificuldades para realizar o procedimento, o paciente ou um familiar, antes de acionar a Justiça, deve procurar órgãos como as Defensorias Públicas do Estado, da União ou o Ministério Público. A solução da celeuma será feita após o requerimento médico ter sido avaliado pela Câmara de Conciliação. Caso a documentação apresentada esteja em ordem, o cadastro é finalizado no sistema, e o pleito do cidadão será encaminhado à análise da equipe técnica ou, havendo alguma pendência, será emitido "termo de ciência de documento pendente", para que o cidadão, no prazo de 15 dias, retorne e complete o atendimento, sob pena de arquivamento do pedido.
Veja-se que, de fato e de direito, a utilização de instrumentos administrativos é eficaz para reduzir o excesso de demandas judiciais na área da saúde e para fomentar a reciprocidade institucional entre diversos players jurídico-políticos. Nessa toada, ao decorrer do desenvolvimento das conciliações, novas ideias aperfeiçoadoras podem ser integradas para otimizar o atendimento nas Câmaras de Resolução de Litígios em Saúde, como o visual law, em um verdadeiro layout interativo de escolhas, em que se buscar promover a conexão eficaz entre os usuários (cidadãos), conhecimento jurídico, economia comportamental, persuasão e redução de conflitos.
[1] A tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os romanos, está incorporada na tradição ocidental, no sentido de que a obrigação impossível não pode ser exigida (Impossibilium nulla obligatio est — Celso, D. 50, 17, 185). Por tal motivo, a insuficiência de recursos orçamentários não pode ser considerada uma mera falácia. Todavia, observa-se que a dimensão fática da reserva do possível é questão intrinsecamente vinculada ao problema da escassez. Esta pode ser compreendia como "sinônimo" de desigualdade. Bens escassos são bens que não podem ser usufruídos por todos e, justamente, por isso, devem ser distribuídos segundo as regras que pressupõe o direito igual ao bem e a impossibilidade do uso igual e simultâneo (…) Quando não há recursos suficientes para prover todas as necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área implica escassez de recursos para outra que não foi contemplada (…) em um primeiro momento, a reserva do possível não pode ser oposta à efetivação de Direitos Fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador público preteri-los em suas escolhas. Nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso porque, a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não resume àquele (…) Porém, é preciso fazer uma ressalva no sentido de que mesmo com a alocação dos recursos no atendimento do mínimo existencial persista a carência orçamentária para atender a todas as demandas. Nesse caso, a escassez não seria fruto da escolha de atividades não prioritárias, mas sim da real insuficiência orçamentária. (Resp. nº. 1.185.474-SC, rel. min. Humberto Martins).
[2] "O Judiciário pode desempenhar um papel institucional de exigir do administrador, por exemplo, transparência e racionalidade na alocação de recursos para as áreas sociais. Pode, ainda, fiscalizar a efetividade da participação popular nesse processo, garantindo o real funcionamento dos diversos mecanismos de controle social (conselhos de saúde, educação, habitação, criança e adolescente), e, em casos em que não há política pública alguma, pode até esforçar-se mais assertivamente para romper a inércia do legislador. Mas decidir de modo aleatório, sem analisar o impacto distributivo de suas decisões, ainda que dotadas de boa intenção, merece atenção mais cuidadosa". HARRISON, Leite. Manual de Direito Financeiro. Salvador: JusPodivm. 6. ed. 2017. p. 60.
[3] CAPPELETTI, M.; GARTH, B. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor,1988.
[4] PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (PGE-RJ). CÂMARA DE RESOLUÇÃO DE LITÍGIOS EM SAÚDE (CRLS). Disponível em: https://pge.rj.gov.br/mais-consenso/camara-de-resolucao-de-litigios-de-saude-crls. Acesso em 14 jan. 2023.
[5] SECRETARIA DE SAÚDE DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA. CÂMARA DE CONCILIAÇÃO EM SAÚDE (CCS). Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/sobre-a-sesab/ccs/. Acesso em: 14 jan. 2023.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!