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TST x Uber: motoristas terão direitos trabalhistas para 2023?

26 de janeiro de 2023, 8h00

Por Ricardo Calcini, Leandro Bocchi de Moraes

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No final do ano de 2022, um assunto extremamente sensível foi novamente enfrentado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), qual seja, a questão envolvendo o reconhecimento do vínculo de emprego entre os motoristas de aplicativos e a plataforma Uber.

A temática é polêmica notadamente pelo novo formato de negócio introduzido pelas atuais formas de trabalho advindas com as inovações tecnológicas. Somado a isso, tem-se ausência de regulamentação específica sobre a matéria, pois hoje não há direitos garantidos para os trabalhadores de aplicativos. E a importância da problemática é medida por números, afinal, segundo os dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil aproximadamente 1,5 milhões de pessoas trabalham com transporte de passageiros e entrega de mercadorias [1].

Com efeito, impende relembrar que os primeiros julgamentos realizados pelo TST envolvendo o assunto se iniciaram no início do ano de 2020. E, de lá para cá, após o dissenso instaurado entre as Turmas da Corte Superior Trabalhista, o tema já se encontra em debate na Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1) [2], órgão responsável pela uniformização interna da jurisprudência do TST, cuja futura decisão irradiará efeitos para os demais 24 Tribunais Regionais Trabalhistas em todo o país.

Dito isso, recentemente a 4ª Turma do TST se pronunciou, uma vez mais, no sentido de rejeitar o vínculo de emprego entre um motorista e a Uber [3]. Para o ministro relator, ao analisar a subordinação jurídica, a conclusão foi a de que esse requisito não se encontrava presente na relação. Em seu voto, ponderou:

Spacca
"Ora, é latente a ampla autonomia do motorista em escolher os dias, horários e forma de labor, podendo desligar o aplicativo a qualquer momento e pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação a metas determinadas pela 'Uber Brasil Tecnologia Ltda'" ou sanções decorrentes de suas escolhas.

Nesse aspecto, é impertinente a comparação com o labor desenvolvido pelo trabalhador externo (art. 62, I, da CLT), uma vez que, diferentemente desse empregado, o motorista de aplicativo não fica subordinado a cumprimento de metas e ordens definidas pela empresa" [4].

Nesse desiderato, para os ministros da 4ª Turma do TST se torna imprescindível a observância das cláusulas contratuais, não havendo que se falar em vínculo de emprego. Aliás, esse mesmo órgão turmário já havia afastado o liame empregatício em outro caso no ano de 2020 [5].

Na mesma linha de raciocínio, a 5ª Turma do TST — aliás, órgão este responsável pela primeira decisão de mérito proferida pela Corte Superior Trabalhista acerca do assunto — afastou na ocasião o reconhecimento do vínculo de emprego entre um motorista e a empresa Uber [6], restabelecendo a sentença que julgou improcedente os pedidos formulados na petição inicial. Para os ministros da Turma, o motorista para além de possuir flexibilidade e autonomia para a realização de suas atividades, certo é que a maior parte do seu pagamento é feita pelo usuário da plataforma, o que não condiz com os requisitos da relação de emprego, estabelecidos nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho.

Em seu voto, o ministro relator asseverou:

"Com efeito, o reclamante admite expressamente a possibilidade de ficar 'off line', sem delimitação de tempo, circunstância que indica a ausência completa e voluntária da prestação dos serviços em exame, que só ocorre em ambiente virtual.

Tal fato traduz, na prática, a ampla flexibilidade do autor em determinar sua rotina, seus horários de trabalho, locais que deseja atuar e quantidade de clientes que pretende atender por dia. Tal autodeterminação é incompatível com o reconhecimento da relação de emprego, que tem como pressuposto básico a subordinação, elemento no qual se funda a distinção com o trabalho autônomo.

Não bastasse a confissão do reclamante quanto à autonomia para o desempenho de suas atividades, é fato incontroverso nos autos que o reclamante aderiu aos serviços de intermediação digital prestados pela reclamada, utilizando-se de aplicativo que oferece interface entre motoristas previamente cadastrados e usuários dos serviços.

Dentre os termos e condições relacionados aos referidos serviços, está a reserva ao motorista do equivalente a 75% a 80% do valor pago pelo usuário, conforme consignado pelo e. TRT".

Em sentido contrário, a 8ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho manteve recentemente o reconhecimento do vínculo de emprego entre outro motorista e a Uber [7]. No leading case, o pedido inicial foi julgado improcedente pelo juízo de primeiro grau, e, após a apresentação do recurso ordinário pelo trabalhador, a empresa teria feito uma proposta de acordo, a título de indenização, para o fim de que houvesse a desistência do apelo.

Acontece que o Tribunal Regional do Trabalho, além de não realizar a homologação do acordo, ainda reconheceu o vínculo de emprego entre as partes, sendo a decisão mantida pela Corte Superior Trabalhista.

Para o ministro relator no TST, o objetivo da empresa não era a conciliação, "mas um agir deliberado, para impedir a existência, a formação e a consolidação da jurisprudência reconhecedora de direitos trabalhistas aos seus motoristas", e, portanto, em seu sentir, restaria configurado um abuso processual de direito. Além disso, a maioria da Turma, vencido o ministro Alexandre Ramos, que compunha o quórum da 8ª Turma na ocasião, conclui pela existência do controle do meio produtivo, de modo que bastaria a empresa desconectar o motorista do seu sistema para que houvesse também a sua exclusão do mercado de trabalho.

Noutro giro, a 3ª Turma do TST já tinha também reconhecido o vínculo de emprego entre um motorista e a Uber, de forma que, para a maioria dos seus integrantes à época partícipes do julgamento, no caso estariam outrossim presentes todos os elementos da relação de emprego [8]. Ao analisar todos os requisitos do liame empregatício, o ministro relator fez uma análise sobre a subordinação, destacando [9]:

"Agregue-se, se não bastasse, uma quarta dimensão da subordinação, dita algorítmica — própria do novo contexto empresarial, em que o empresário passa a usar uma pletora de mecanismos telemáticos, computadorizados, internáuticos, hiper-minuciosos e sensíveis a quaisquer movimentos dos seres humanos e máquinas envolvidos na dinâmica ou órbita de interesse do empreendimento estruturado. Trata-se da denominada subordinação algorítmica, muito bem lembrada pelo Ministro Alberto Bresciani, componente da Terceira Turma do TST até o dia 22 de dezembro de 2021 — data de sua aposentadoria -, conforme exposto em seu voto vistor harmônico ao voto deste relator. Ao mencionar a subordinação algorítmica no caso concreto, o Ministro Alberto Bresciani enfatiza 'destaque para o fato de que a flexibilidade na escolha do horário de trabalho não significa autonomia, constituindo mera cláusula do contrato de emprego. Tanto que o reclamante foi desligado como punição, com base em avaliações'.

Conforme exposto, no caso dos autos, os fatos retratados no acórdão regional demonstram que o trabalho do Reclamante era efetivamente controlado pela Empresa, que assumia integralmente a direção sobre a atividade econômica e sobre o modo de realização da prestação de serviço, inclusive com a manifestação disciplinar do poder empregatício".

A par de todo o exposto, diante de tal controvérsia em torno do vínculo empregatício instalada no âmbito do Poder Judiciário Laboral, ao que parece se torna primordial a criação de soluções jurídicas a fim de colocar um ponto final em tal debate. E, nessa toada, no último dia 17/1/2023, o governo federal criou um grupo de trabalho que vai estudar o assunto, que deverá ser levado para debate no Congresso Nacional [10]. É dada como certa a oitiva dos próprios motoristas, sindicatos e entidades da classe profissional, de sorte que se espera, ao menos, que as empresas de aplicativos, com a Uber, participem ativamente na construção da futura regulamentação, somados a professores e especialistas no assunto, tudo em respeito a uma visão tripartite e plural.

Nessa perspectiva, oportunos são os ensinamentos de Guilherme Guimarães Feliciano e Olivia de Quintana Figueiredo Pasqualeto [11]:

"O trabalho na era da gig economy apresenta contornos que o distanciam das clássicas formas jurídicas frequentemente utilizadas até a viragem do século XX (e, que, a propósito, estão na base da regulação introduzida pelas legislações brasileiras consolidadas em 1943: trabalho espacialmente concentrado, tecnicamente atomizado e hierarquicamente gerido, seguindo o modelo fordista-taylorista). E a sua novidade é, ao mesmo tempo, o seu perigo e a sua virtude. Cabe à Ciência do Direito do século XXI acompanhar esses novos formatos, a fim de tutelar os direitos fundamentais dos trabalhadores neles inseridos — cada vez mais numerosos (estima-se, que no Brasil, o número de motoristas pelo aplicativo Uber tenha decuplicado entre outubro de 2016 e outubro de 2017, passando de 50 mil a 500 mil) — e de lhes assegurar condições minimamente dignas de trabalho e de vida, reagindo à realidade com a lógica civilizatória do art. 7º da Constituição (onde e para o que couber). É preciso compreender, mais, que esse necessário movimento do Direito – e, no que nos importa, do Direito do Trabalho – não será fácil, sobretudo pela rapidez e fluidez com que essas novas relações ocorrem e ocorrerão (BAUMAN, 2001)".

Em arremate, mostra-se substancial um estudo bastante técnico e jurídico sobre tal temática, despido de visões ideológicas, em particular para se compreender os impactos das mudanças provenientes da "Gig Economy" nas relações de trabalho. E aqui fica uma extraordinária oportunidade de o Brasil se tornar o país pioneiro e precursor de uma legislação específica que, em última análise, será utilizada como parâmetro sobre o assunto para todo o mundo.

 


[2] Processos: E-RR-1000123-89.2017.5.02.0038 e E-RR-100353-02.2017.5.01.0066

[11] Infoproletários e a Uberização do trabalho: direito e justiça em um novo horizonte de possibilidades / Guilherme Guimarães Feliciano, Ana Paula Silva Miskulin. – São Paulo: LTr, 2019. Página 17.