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Temas fiscais: reflexões sobre o que se fala e se faz no início de 2023

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

25 de janeiro de 2023, 11h21

A primeira semana do ano de 2023 foi rica em surpresas, do ponto de vista tributário, movimentando a sociedade, de forma geral e isso se aplica, também, às últimas semanas do governo que se encerrou em 31 de dezembro e que terão, é certo, larga repercussão. Explicando estas últimas: há mudanças no cenário fiscal, introduzidas pelo governo anterior ao apagar das luzes, que representam entraves para o bom desempenho fiscal do País e outras que necessitam ser implementadas, tarefa  que, sem necessidade de autorização, delegou-se ao novo governo gerenciar. Com tais surpresas, o desafio inicial das autoridades foi decidir quais os primeiros passos a serem dados na área tributária, no alvorecer de 2023.  

Spacca
Além dessas ações imediatas o novo governo, em curto/médio prazos, deve dar cumprimento à promessa de reforma tributária feita ao longo da campanha eleitoral. Esta promessa apareceu em todos os governos eleitos nos últimos 35 anos, sempre como prioritária, a despeito de nem sempre estados, municípios e Poder Legislativo acompanharem tais intenções ou a elas se alinharem, razão pela qual nunca foram integralmente aprovadas. O presidente eleito, em sua primeira gestão, nos idos de 2003, também, a seu tempo, propôs reforma tributária sendo apenas parcialmente exitoso nessa tarefa como consta da Emenda Constitucional (EC nº 42).

 Há um aspecto essencial quando se fala de reforma tributária, ou seja, a definição de qual é a reforma pretendida: reforma do capítulo constitucional sobre a tributação ou reforma das leis ordinárias que regem os tributos, buscando-se uma racionalização do sistema e da arrecadação. O projeto do novo ministro trata das duas abordagens, como se verá.

 Hoje, em sucessivas manifestações do atual ministro da Fazenda (novo nome da pasta), busca-se trazer de volta as Propostas de ECs nºs 45/19 e 110/19, respectivamente da Câmara e do Senado, sob alegação de que já estão maduras para serem votadas, embora não tenham logrado ser exitosas no governo anterior, estando os especialistas claramente divididos sobre elas e sua efetivação a longo prazo. O objetivo dessas duas Propostas é unificar os tributos sobre o consumo (Contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e Impostos sobre a Circulação de Bens e Serviços (ICMS), sobre Serviços de qualquer Natureza (ISS) e sobre Produtos Industrializados (IPI)).

Sobre o IPI, em especial, há intenção declarada de suprimi-lo, de imediato, o que não é novidade e já vem sendo observado ao longo dos últimos 30 anos, com sucessivas supressões de incidência e reduções de alíquotas.

No que tange à reforma tributária no nível da lei ordinária, que nos parece a mais importante, ela não busca eficiência e racionalização do sistema, pois seu principal objetivo é resgatar, em matéria de Imposto sobre a Renda, a tributação de lucros e dividendos, ambição manifestada a cada legislatura em projetos de lei dos últimos 30 anos, os quais nunca foram exitosos. Os especialistas apontam, nessa proposição,  uma quebra importante nas diretrizes que orientaram a instituição da isenção de lucros e dividendos que deve ser melhor examinada e discutida, parecendo prematura a sua aprovação. A tributação de lucros e dividendos sempre atrai a odiosa distribuição disfarçada de lucros, instrumento dúbio na mão da fiscalização, visto que é uma presunção que pode ser afastada, mas cujo afastamento exige, muitas vezes, que o contribuinte vá buscar seus direitos junto ao Poder Judiciário.    

Por outro lado, há uma justificativa generalizada das autoridades de que não se pretende atualizar a faixa mínima de isenção da tabela de tributação na fonte pelo Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas, sob o argumento de que afetaria as contas públicas, embora o presidente da República faça acenos diversos. Essa atualização é anseio dos contribuintes desde 2015, decorrendo de princípio constitucional voltado à garantia do mínimo essencial que deve ser observado, logo, estamos diante de uma obrigação e não de uma opção, o que poderia ser consignado em lei, para que nunca mais se cometa tal injustiça. É tema que deve integrar a reforma tributária.

Em resumo, considerando-se as divergências apontadas naquilo que se fala quanto à reforma dos impostos de consumo quanto do imposto sobre a renda, esses temas devem ser melhor discutidos, inclusive com a visão dos novos integrantes do Congresso.

Além do que se fala, o que de efetivo e concretamente já se fez, é que o novo governo descontinuou medidas fiscais editadas em fins de 2022 as quais afetavam negativamente as contas públicas, como é o caso do Decreto n. 11374/23 que, ao repristinar o texto do Decreto nº 8426/15, revogou as disposições do Decreto nº 11322/22 que havia, no final de 2022, reduzido as alíquotas das contribuições devidas ao PIS  e à Cofins para, respectivamente, 0,33% e 2%, sobre as receitas financeiras auferidas pelas entidades submetidas ao regime não cumulativo dessas contribuições. É certo que o Decreto nº 11374/23 resolveu a questão da arrecadação, entretanto, também é certo que aumentou o número de questões sob disputa nos tribunais, visto que as contribuições sociais estão submetidas, quando ocorre aumento desses tributos, ao princípio da anterioridade nonagesimal. E, com base nessa determinação constitucional, os contribuintes já estão ingressando em juízo para garantir o direito de somente usarem alíquotas majoradas a partir de abril de 2023.

As primeiras manifestações das autoridades são em sentido inverso, fazendo uma construção para evidenciar que a vigência inicial do Decreto nº 11322/22 caiu em feriado nacional, sendo revogado no primeiro dia útil pelo Decreto nº 11374/23. É importante lembrar que à vigência das normas é irrelevante o feriado e, mais, quem aufere receita financeira também aufere em feriado, pois o fluir dos juros só termina quando eles não mais devem incidir. Os maiores efeitos desse movimento serão o aumento das provisões, nas contas públicas, bem como o aumento de trabalho para o Poder Judiciário.

Outro tema que caberá ao novo governo gerir diz respeito à alteração da Lei nº 14.148/21, que criou o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), que dentre outras providências introduziu alíquota zero para o PIS, a Cofins, o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro (CSL) para as empresas do setor de eventos, desde que suas atividades estivessem classificadas em Cnae (Código de Atividade Econômica do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE), relacionado em portaria do então Ministério da Economia. Ocorre que o alcance da lista baixada pela Portaria ME nº 7163/21 tinha uma imensa extensão que até mesmo saia, a nosso ver, fora dos objetivos da Lei nº 14148/21.

 O antigo Governo editou a Medida Provisória nº 1.147/22, alterando algumas regras do Perse e determinando a expedição de nova portaria, no caso a Portaria ME nº 11266/22, com vigência a partir de 1/1/2023, relacionando os Cnaes assim beneficiados. Além disso, o artigo 4°, § 2º, afastou a aplicação do artigo 17, da Lei nº 11.033/04, que autoriza o creditamento dos gastos para atividades e operações tributadas à alíquota zero, pelas contribuições sociais, ao que parece, introduzindo condição em benefício que não exigia qualquer contrapartida, o que merece ser melhor examinado. De toda sorte sua aplicação observará o princípio da anterioridade nonagesimal. A revogação da alíquota zero, para fins de IRPJ, observará a anterioridade anual, aplicável somente em 2024. As duas hipóteses dependem da conversão em lei da medida provisória.

Algumas dessas alterações já são objeto de recurso aos tribunais, a saber: (i) ausência de Cnaes que, nitidamente, se incluem nos benefícios da Lei 14.148/21, à luz de seu artigo 2º, § 1º, que inclui no setor de eventos  as pessoas jurídicas, inclusive entidades sem fins lucrativos, que exercem, direta ou indiretamente, as atividades voltadas a eventos e (ii) inobservância do princípio da anterioridade nonagesimal, quanto às contribuições sociais, e da anterioridade anual, para o IRPJ, para aqueles que perderam o direito ao benefício.

Quando a Lei 14.148/21, entrou em vigor, muitos contribuintes foram a juízo por falta de expressa inclusão dos Cnaes de suas atividades, entendendo que estariam, também, beneficiados. Para aqueles que receberam decisões favoráveis do Poder Judiciário, antes da vigência da Medida Provisória nº 1.147/22, a discussão seguirá e o direito de usufruir de qualquer dedução se manterá até que essa autorização seja cassada ou haja decisão final desfavorável transitada em julgado. Reitera-se, caberá ao novo governo gerir as questões oriundas do dito Perse, suas complexidades e o aumento do contencioso tributário.

Temeroso de maiores perdas nos tribunais administrativos, o novo governo tomou medida extremamente antipática: resgatou, pela Medida Provisória nº 1.160/23, o chamado voto de qualidade para desempatar as discussões no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), cabendo essa tarefa aos presidentes das Turmas de julgamento (Decreto nº 70235/72, artigo 25, § 9º). A derrubada do voto de qualidade decorreu de uma batalha travada pelos contribuintes para alterar o artigo 28, da Lei nº 10522/02, que em seu artigo 19-E, assim dispunha. A alteração a favor do contribuinte foi introduzida pela Lei n. 13998/20, hoje sob exame pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nas ações de declaração de inconstitucionalidade nºs 6.399, 6.403 e 6.415.

A Exposição de Motivos do Ministério da Fazenda, para a edição da Medida Provisória nº 1160/23 traz justificativas bastante discutíveis. Aponta o fato de que a proclamação do resultado favorável ao contribuinte, no caso de empate de votos, provocou a reversão do entendimento do tribunal em grandes temas tributários sendo  o prejuízo à Fazenda Pública muito grave, pois a decisão administrativa definitiva a favor do contribuinte extingue o crédito tributário, enquanto a decisão administrativa definitiva favorável à Fazenda Pública pode ser impugnada em juízo. Com isso, a Fazenda não pode levar os temas tributários à apreciação dos tribunais superiores, inclusive o STF.

O que de fato parece ocorrer é que se busca aumentar os ingressos a favor do Poder Público, inclusive porque os depósitos em discussão judicial são efetivados à ordem do Tesouro Nacional. A nosso ver, a eliminação do voto de qualidade alterou de forma importante o fruto das decisões nos tribunais administrativos, afastando-se a dúvida sobre eventual parcialidade. Reabrir essa discussão não implica arrecadar, pois enquanto não houver decisão de mérito transitada em julgado, não haverá arrecadação do tributo. Reitera-se, há um incentivo para o contencioso, somando-se mais e mais contingências nas contas públicas. Se a medida era para reduzi-las, o efeito obtido foi inverso.      

 Outro tema relevante que veio pela MP 1.152/22, editada pelo governo anterior, diz respeito à mudança nas regras de preços de transferência que passam a funcionar consoante o modelo da OCDE. A nosso ver essa mudança é importante pois renova as determinações sobre a matéria, acompanhando outros países, e rompe barreiras impostas em outras nações para permitir a compensação de tributos retidos na fonte pelo Brasil. A despeito de acenar com a possibilidade de adoção antecipada pelos contribuintes, ainda em 2022, dificilmente isso será factível pois a MP nº 1.152/22 precisa ser convertida em lei e, depois, devidamente regulamentada em sua aplicação. O aperfeiçoamento das regras de preços de transferência consoante, os moldes da OCDE não fica impedido pela eventual não adesão do Brasil a esse bloco econômico.

Um aspecto positivo pode ser observado na Medida Provisória nº 1.152/22 e diz respeito à eliminação, de forma geral, das limitações à dedutibilidade dos royalties, resquício dos tempos em que os lucros eram tributados e o pagamento de royalties acima de determinados percentuais representava pagamento de lucros sem tributação na fonte. O tema é tratado em capítulo voltado a disposições gerais e não está associado ou integra o capítulo dos preços de transferência.

De fato, o artigo 45 dessa medida provisória somente considera como indedutíveis, na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSL, as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a título de royalties e assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante a (i) entidades residentes ou domiciliadas em país ou dependência com tributação favorecida ou que sejam beneficiárias de regime fiscal privilegiado, ou a (ii) partes relacionadas nos termos do disposto no seu artigo 4º, quando a dedução dos valores resultar em dupla não tributação nas hipóteses de que trata. Assim, foi revogado o vetusto artigo 74, da Lei n. 3470/58, que tratava da matéria por inteiro, cabendo à Receita Federal regular o referido artigo 45.

Este é um importante passo para tirar as amarras que oneravam os royalties, ainda que eles, daqui para a frente, nos moldes internacionais, venham a ser submetidos às regras de preços de transferência.

O que é preocupante nesse cenário é que importantes alterações na legislação ordinária foram feitas por MP, valendo-se de uma suposta urgência na sua edição, falácia  que vem sendo reiteradamente apontada pela doutrina, mas não logrou prosperar junto aos tribunais, razão pela qual o Poder Executivo tanto dela abusa. As alterações legislativas introduzidas por medidas provisórias têm efeito imediato, portanto, no caso do voto de qualidade, os tribunais já começarão o ano se orientando dessa forma, atendendo plenamente às razões contempladas na Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 1.152, revertendo importantes decisões que foram tomadas, tudo em prejuízo dos contribuintes.

É essencial o debate parlamentar prévio, pois caso contrário crescerá mais ainda o contencioso judicial e, por essa razão, seria importante que o Poder Judiciário começasse a olhar o uso dessa faculdade pelo Poder  Executivo com outros olhos.

Autores

  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

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