Opinião

Gilmar Mendes e o 2º Pacto Republicano

Autores

  • Tarso Genro

    é advogado ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

  • Rogerio Favreto

    é desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ex-procurador-geral do município de Porto Alegre e secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.

24 de janeiro de 2023, 18h02

"No texto da Constituição de 1988 há um núcleo essencial, não cumprido, contendo um conjunto de promessas da modernidade, que deve ser resgatado. O problema é que em países como o Brasil, formou-se um 'silêncio eloquente', acerca do significado da Constituição, naquilo que ela tem de 'norma diretiva fundamental'. Numa palavra, sob o manto de uma 'baixa constitucionalidade', olvidou-se constituir a Constituição; mas muito pior do que o silêncio é não prestarmos atenção nele[1]." A resistência do Poder Judiciário, todavia, à superação da "baixa constitucionalidade" da Constituição Democrática — sempre lembrada pelos juristas de primeira grandeza — é uma das características importantes (negativas) da constitucionalização efetiva do nosso Estado de Direito, para imputar materialidade aos Direitos Fundamentais.

Nelson Jr./SCO/STF
Tarso Genro, então ministro da Justiça, e Gilmar Mendes, presidente do Supremo
Nelson Jr./STF

O ministro Gilmar Mendes, ex-presidente do STF, foi um dos principais responsáveis, com os autores do presente artigo, estes em representação do Poder Executivo, para a formulação e implementação do "2º Pacto Republicano para a Reforma do Sistema de Justiça", na verdade um avanço contra "a baixa constitucionalidade" do nosso sistema geral de normas. Como presidente do Supremo, juntamente com o presidente Lula no seu segundo mandato presidencial, suas atitudes foram decisivas para que o fluxo das relações daquela Corte com o Poder Executivo e o Poder Legislativo avançasse de forma harmônica na busca de que a "vontade de Constituição" se expressasse diretamente na vida comum. Aliás, o estranhamento entre o sistema de normas da Constituição e a realidade objetiva da sua aplicação na vida social, é onde se situa o caminho aberto pela  "vontade" constituinte, para aproximar aquela vontade do pacto político com a vida real.

Na apresentação do seu "Estado de Direito e Jurisdição Constitucional”[2], no qual o ministro Gilmar trabalhou, entre outros temas de relevância, decisões sobre o significado dos Direitos Humanos no ordenamento jurídico e outras questões-chaves, como as atinentes à liberdade de expressão, ficou assente que "é natural que a vontade de constituição, na feliz assertiva de Konrad Hesse" — asseverou o ministro — "busque expressão nas decisões do órgão de cúpula do Judiciário." O "Pacto de Estado" que ora noticiamos foi concebido com uma verdadeira estratégia institucional de gestão compartilhada dos interesses nacionais que, firmado em dezembro de 2008, demonstrou, não só a verdadeira possibilidade de que os poderes independentes podem ser harmônicos e "efetivos", mas também que são aptos para enfrentar as questões do sentido do interesse público nacional, atinentes ao Sistema de Justiça,

Quem estranhou a rápida e recente reação do ministro Gilmar Mendes ao crime de genocídio, provavelmente cometido pelo governo que findou dia 31 de dezembro último, certamente não lembrava do seu empenho — na Corte Suprema da República — para buscar a efetividade da Constituição, sem recusar a necessidade de harmonizar os seus macro princípios para resolver as suas colisões "por dentro" do seu sistema de normas. Resolvê-los assim, não pelo impressionismo do espírito de turba, que caracteriza o que tem de pior hoje no populismo constitucional, que tem por escopo "ajudar" os violadores da ordem jurídica. "Ponderação" e "Proporcionalidade", recebidas como pressupostos metodológicos nos julgamentos concretos, para superar os eventuais conflitos no reconhecimento de dois direitos fundamentais eventualmente colidentes, é um símbolo desta conexão dos valores com fatos. E destes com as normas: "a Constituição confere ao legislador margem discricionária para avaliação, valoração e conformação, quanto às medidas eficazes e suficientes para a proteção do bem jurídico; no entanto a mesma Constituição impõe ao legislador os limites do dever do respeito ao princípio da proporcionalidade", salienta o ministro Gilmar Mendes, na obra referida.[3]

Só juristas e personalidades operadoras do Direito, como é o ministro Gilmar, poderiam "empurrar", para um destino harmônico, um pacto da natureza deste — que ora lembramos — pois como recorda outro constitucionalista de excelência (Siqueira Castro) "a técnica exegética da ponderação dos interesses” é o que dá equilíbrio e sensatez, quando há confronto "entre princípios e normas constitucionais"[4] e a "busca da harmonização, entre os vários direitos em confronto, (vale-se) dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito" (…) de forma a que não se sacrifique o núcleo essencial de cada direito ou liberdade protegidos, para ser o caminho mais justo e equilibrado": agrego — para salvar a essência do Estado de Direito da Democracia Constitucional.[5]

Os elementos do Pacto, ora relembrados, apontam diretamente para a efetividade de direitos fundamentais e para sua instrumentalização legítima pelos cidadãos, que buscam a sua efetividade. O 2º Pacto Republicano de Estado, firmado em 13 de abril de 2009[6], pelos presidentes dos três Poderes da República, constituiu-se como um acordo político de cooperação entre os Poderes, visando a continuidade das reformas do Sistema de Justiça, oportunidade que priorizou a democratização do acesso à Justiça, a concretização dos direitos humanos e fundamentais e a agilização e efetividade da prestação jurisdicional.

Outra orientação do 2º Pacto foi a sua amplitude temática, no sentido de contemplar todos os órgãos integrantes do Sistema de Justiça e não somente o Poder Judiciário. Por isso, o seu enfoque envolveu também o Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia, na compreensão de que todos têm responsabilidades e contribuições para o aperfeiçoamento e qualificação das suas instituições na prestação da Justiça.

Definido o Sistema de Justiça como campo de abrangência, "adotamos a política de priorizar temas para orientar as reformas normativas, a fim de permitir maior flexibilidade na seleção dos projetos de leis e, especialmente aproveitar e prestigiar as inúmeras iniciativas legislativas dos parlamentares, bem como outras propostas pendentes do 1º Pacto (2004). Ao mesmo tempo, essa estratégia permitiu o envio de alguns novos projetos no momento da assinatura do Pacto, como a apresentação futura em temas ainda em discussão e construção".[7]

Destacou-se, na documentação preparatória ao Pacto por parte do Ministério da Justiça, a importância que adquiriu o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) que, exemplificado como trabalho transversal partido do ministério — repassou recursos de vulto  (R$ 14 milhões de reais) por meio da Secretaria de Reforma do Judiciário, para um melhor aparelhamento da Defensoria Pública da União.

O sucesso dessa pactuação republicana, balizada pela co-gestão dos poderes, com respeito a sua autonomia federativa, permitiu a aprovação de mais de duas dezenas de novas leis, cabendo destacar:

i) a interiorização da Justiça Federal, com a criação de 230 novas varas para tornar aproximar a justiça do cidadão (Lei nº 12.011/09);

ii) a criação da Lei Orgânica da Defensoria Pública, para fortalecer a instituição, criação de ouvidorias e priorização de estruturação em regiões com IDH mais baixo para garantia dos direitos dos cidadãos (LC nº 132/09);

iii) Nova Lei do Mandado de Segurança, com a regulamentação do instrumento coletivo para proteção de direitos contra os abusos de autoridade (Lei nº12.016/09);

iv) criação dos Juizados da Fazenda Pública permitindo aos cidadãos  instrumentos mais acessíveis e rápidos nas demandas contra os estados e municípios, por exemplo sobre questões tributárias, multas de trânsito e não atendimento de direitos de saúde, educação e assistência social (Lei nº 12.153/09);

v) no plano de atuação do Supremo Tribunal Federal, cumpre destacar a Lei 12.063/09, que trouxe a disciplina processual para a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), nos casos de omissão total ou parcial do cumprimento constitucional do dever de legislar. Ainda, a Lei 12.562/11, que dispõe sobre o processo e julgamento da representação interventiva perante o Supremo Tribunal Federal;

vi) a lei que disciplina as medidas cautelares no processo penal (prisão processual, fiança, liberdade provisória e outras medidas), conferindo mecanismos a serem usados pelo juiz durante o processo, a fim de garantir a devida condução da investigação criminal e a preservação da ordem pública ( Lei nº 12.403/11);

vii) atualização da Lei de Execução Penal, para prever a remissão da pena pelo tempo de estudo no sistema prisional, dentro das ações políticas do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) ( Lei 12.433/11):

viii) aregulamentação do Teletrabalho, que passa a não fazer distinção entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado ou realizado a distância (Lei nº 12.551/11);

ix) a Lei 12.527/11, que disciplina o acesso à informação, contribuindo para tornar o Estado mais transparente e democrático, por meio da consulta de documentos públicos e informações de ações e políticas dos órgãos de governo aos cidadãos;

x) a Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído (Lei nº 13.869/19).

A memória do êxito dessa pactuação republicana teve singular contribuição do ministro Gilmar Mendes, em especial pela sua visão distinta e inovadora na gestão do Sistema de Justiça, associada a sua capacidade intelectual e de articulação política. Portanto, mais um registro importante ao jurista homenageado.

NOTAS:


[1]STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.127.

[2] MENDES,Gilmar Ferreira. Estado de Direito e Jurisdição Constitucional – 2002-2010. São Paulo: Saraiva, 1ª edição 2011, p. 26.

[3]MENDES,Gilmar Ferreira. Estado de Direito e Jurisdição Constitucional – 2002-2010. São Paulo: Saraiva, 1ª edição 2011, p. 28.

[4]CASTRO, Carlos Roberto Siqueira.  A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: Ensaios sobre o Constitucionalismo Pós-Moderno e Comunitário. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1ª Edição 2003, p.73.

[5] Ibid., p.74.

[6] DOU de 06 de julho de 2009,

[7]Revista do II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo. Secretaria de Reforma do Judiciário – Ministério da Justiça. Brasília/DF, 2009, p. 12.

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