Opinião

Uso de banheiro públicos por transexuais de acordo com a identidade de gênero

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24 de janeiro de 2023, 21h24

Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um marco mundial no qual os Estados reconheceram que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

Neste momento, os Estados, dentre eles o Brasil, observaram que era preciso elaborar alicerces jurídicos e éticos em novo modelo que consagrasse, em favor dos indivíduos, o exercício pleno de suas prerrogativas jurídicas inalienáveis, assegurando-lhes a liberdade, a justiça e a paz universal.

A partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal, passou a vigorar no Brasil o Estado Democrático de Direito. A tutela dos direitos fundamentais dos seres humanos, estampados na Carta Magna, após um longo período de ditadura militar, fez com que essa passasse a ser chamada de Constituição Cidadã.

A República e o Estado Democrático de Direito estão subordinados ao poder que emana do povo. Ciente dessa premissa, o Poder Constituinte estabeleceu no artigo 1º, III da Constituição Federal, o princípio indisponível da Dignidade da Pessoa Humana como fundamento institucional no Estado.

Ainda no escopo da Lei Maior, o artigo 5°, estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Ocorre que, conforme os ensinamentos de Pedra (2020b, p.18) "[…] quando o texto constitucional reconhece a igualdade de todos, ele, na verdade, estabelece a igualdade como um objetivo a ser alcançado, não se trata de uma afirmação, não significa que de fato essa igualdade seja um fato social".

Nota-se assim que, após 33 anos da publicação da Carta Maior, as minorias, de um modo geral, ainda não alcançaram a plenitude das prerrogativas estampadas na Lei Basilar.

Entre essas minorias, encontram-se os cidadãos LGBT [1]. Cidadãos estes com orientações sexuais e identidade de gênero diversas, como lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, entre outros, são vítimas do preconceito e da omissão do Estado, em garantir-lhes o exercício de seus direitos sociais e individuais.

No Brasil, onde vigora o Estado democrático de Direito, e os direitos e garantias fundamentais possuem o status de cláusula pétrea, ainda não se registrou, naquilo que tange ao acesso a banheiros coletivos por transsexuais, compatíveis com sua identidade de gênero, a necessária intervenção Estatal, que se mantém inerte, até o presente momento, de editar uma norma essencial ao desenvolvimento da plena eficácia jurídica dos preceitos constitucionais inscritos no artigo 5º da Carta Política.

A situação afeta não se está regulamentada pelo poder legislativo, de modo que o Supremo Tribunal Federal (STF) foi acionado através do Recurso Extraordinário nº 845.779, decorrente de uma ação de danos morais promovida por uma mulher transexual contra um shopping, que a proibiu de usar o banheiro feminino.

O ministro Barroso, relator do apelo máximo supramencionado, em seu voto, destaca que a injustiça com que a mulher transexual foi tratada, ao lhe ser negado o acesso ao banheiro feminino, possui natureza simbólica e estrutural e decorre de modelos sociais que excluem o diferente, rejeitam os "outros", produzindo a dominação cultural, o não reconhecimento ou mesmo o desprezo.

Nas palavras de Pedra (2020, p. 39), a discriminação que envolve identidade de gênero e orientação sexual anula o valor dessas pessoas. A precariedade das vivências trans torna suas vidas "menos valiosas" e até a luta por direitos transforma-se em fonte de discriminação. A heteronormatividade [2] e a hierarquização fazem com que alguns indivíduos sejam consideráveis perdíveis, como se não fossem dignos de sensibilização.

O ministro pondera ainda que o argumento de que a presença de uma mulher trans no banheiro feminino poderia causar constrangimento às demais mulheres presentes, não tem cabimento, "tendo em vista que as situações mais íntimas ocorrem em cabines privativas, de acesso reservado a uma única pessoa. De todo modo, a mera presença de transexual feminina em áreas comuns de banheiro feminino, ainda que gere algum desconforto, não é comparável àquele suportado pela transexual em um banheiro masculino". (STF  Recurso Extraordinário 845.779. SANTA CATARINA 0057248-27.2013.8.24.0000, relator: ministro ROBERTO BARROSO, p. 09-10).

Neste sentido, ainda de acordo com o relator, o Estado deveria adotar uma postura ativa contra o preconceito e a intolerância, protegendo a existência das pessoas, inclusive, no presente caso, por meio da afirmação do direito de serem tratadas socialmente em consonância à sua identidade de gênero.

Os demais votos publicizados acompanharam o do relator, sendo importante destacar, sobre esse tema, apenas uma observação feita pelo ministro Edson Fachin sobre a possibilidade de um "terceiro banheiro", argumento muitíssimo levantado nessas discussões. A possibilidade de criação de um terceiro banheiro é uma flagrante violação da honra, da isonomia e da dignidade humana, pois enfraquece o próprio senso de inclusão que se pretende proteger. (PEDRA, 2020, p.82-83).

"Com isso, em arenas discursivas subalternas se estabelecem debates a respeito de questões como, por exemplo, a possibilidade de uso dos 'banheiros neutros', do ponto de vista de gênero, destinados, apenas, a transexuais. Essa estratégia tem se revelado como prática estigmatizante, que viola o princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, constitui mecanismo aparentemente neutro, porém, que inspira discriminação inconstitucional e afetiva subordinação de status". (BUNCHAFT, 2016, P. 230).

Após um pedido de vistas formulado pelo ministro Luiz Fux, o julgamento do Recurso Extraordinário nº 845.779 foi suspenso, que ao se manifestar sobre o seu pedido de vista na sessão plenária de 19 de novembro de 2015, aduziu preocupações como: "Imagina como ficaria um pai conservador que tem uma filha, sabendo que ela está na escola e qualquer pessoa que alegue que possui o gênero idêntico ao dela vai poder frequentar o mesmo banheiro que a sua filha?".

O argumento utilizado pelo ministro é completamente equivocado e divorciado da realidade, não tendo qualquer base empírica para ser utilizado. O que se observa é que este argumento tem apenas um grande poder retórico, porque faz com que todos passem a avaliar a situação sob o prisma do medo. Não há nenhuma evidência de que a utilização de banheiros por transexuais conforme a sua identidade aumenta o risco de mulheres sofrerem assédio, por outro lado, há comprovação de que transgêneros sofrem assédio e agressão ao utilizarem banheiros. (MESQUITA, 2016, p. 40-42).

Conclusão
Quando se trata de questões de gênero e sexualidade, a inércia e a omissão do Congresso Nacional delimitam um silêncio eloquente. Mesmo diante do clamor público em busca de respostas efetivas, os anseios de pessoas LGBT, quando trazidos ao centro do debate, assemelham-se um diálogo de surdos.

A luta por direitos pela comunidade LGBT vem sendo travada a anos, e ao que parece, os avanços não têm sido a passos largos. As demandas LGBT são muito básicas e fundamentais, podemos citar, a busca pelo direito de mulheres trans utilizarem o banheiro feminino, direito ao uso do nome social, a possibilidade de alteração dos registros em conformidade a sua identidade de gênero. A exclusão e a violência vivenciada por essas pessoas desde muito cedo, lhes prejudicam a construção de uma autoimagem positiva e da autoestima.

É insofismável que o voto proferido pelo relator Barroso, no julgamento do RE 845.779/SC, objeto deste artigo, representa um ponto de inflexão na prática jurisdicional brasileira. Seja pela sapiência do voto proferido, seja pelo relevante recado de tolerância enquanto ímpar aceitação do outro que traz e pela inovação da concretização normativa operada em matéria de direito.

Como todo paradigma, porém, é natural que o voto desperte debates quanto a determinados aspectos decisórios. Lidar com parte das complexidades ensejadas pela decisão será ofício da Academia. O que se espera dos paradigmas não é apenas um ganho de justiça, mas um acréscimo de racionalidade na cultura jurídica, que depende da possibilidade do conhecimento transparente de seus fundamentos.

 


Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2020.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n° 845.779/SC – Santa Catarina. Relator: ministro Roberto Barroso. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em:  https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4657292. Acesso em: 04 de janeiro de 2023.

BUNCHAFT, Maria Eugênia. Transexualidade e o direito dos banheiros no STF: uma reflexão à luz de Post, Siegel e Fraser. Ver. Bras. Polít. Públicas (online), Brasília, n. 3, p. 222-243, 2016.

BRITZMAN, Deborah P. O que é esta coisa chamada amor: Identidade homossexual, educação e currículo. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 21, nº 1, p. 71-96, jan./jun. 1996.

MESQUITA, Caio Cipriano. O acesso ao banheiro por transexuais como condição básica para o apoderamento do espaço público: a utilização da teoria do desacordo moral razoável no RE 845.779/SC. 2016. 70 f. Monografia (Graduação em Direito)  Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016.

PEDRA, Caio Benevides. Cidadania Trans: o acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil. Curitiba: Appris, 2020.

______. Direitos LGBT: a lgbtfobia estrutural e a diversidade sexual e de gênero no direito brasileiro. Curitiba: Appris, 2020.

 


[1] A sigla "LGBT" refere-se a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Por ser atualmente reconhecida pelo Estado em seus documentos oficiais, será a utilizada nesta obra. (PEDRA, 2020, p.19).

[2] De acordo com Britzman (1996, p. 79) heteronormatividade "é a obsessão com a sexualidade normalizante, através de discursos que descrevem a situação homossexual como desviante".

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