Opinião

Povos indígenas, genocídio e a sequência de omissões do governo Bolsonaro

Autor

  • Paulo de Bessa Antunes

    é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

23 de janeiro de 2023, 19h16

O termo genocídio é controverso, pois pode ser utilizado em sentido político ou em sentido jurídico. Do ponto de vista jurídico, o genocídio é definido pela Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, promulgada pelo Decreto nº 30.822/1952. A Convenção estabelece em seu artigo 1º que o crime de genocídio compreende atos, cometidos em tempo de guerra ou de paz, com objetivo de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, por meio da (a) morte dos membros do grupo, (b) atentado à integridade física ou mental dos membros do grupo, (c) submissão do membros do grupo a condições de existência que acarretem a sua destruição física total ou parcial, (d) medidas que levem a diminuir os nascimentos no seio do grupo e (e) transferência forçada de crianças de um grupo a outro grupo. O artigo III estabelece como puníveis o (1) genocídio, (2) os entendimentos para o cometimento de genocídio, (3) a incitação direta e pública para o cometimento de genocídio, (4) a tentativa de genocídio e a (5) cumplicidade com o genocídio. A Lei nº 2.889/1956 mantém a concepção e tipologia da Convenção.

No século XX vários foram os massacres cometidos contra diversos povos indígenas, pelo simples fato de serem indígenas e com objetivo de domínio de suas terras. O povo xokleng, juntamente com os guarani e kaigang [1], é o protagonista de ação que tramita perante o STF discutindo o marco temporal [2]. O massacre sofrido pelos xokleng está amplamente documentado.

"A luz da manhã ainda rompia aquela madrugada em abril de 1904, quando cerca de dez bugreiros, como eram chamados os matadores de indígenas no Vale do Itajaí, avançaram sobre um acampamento do povo Laklãnõ-Xokleng perto de Aquidaban, atual município de Apiúna, em Santa Catarina. De acordo com o 'Jornal Novidades', que narrou o episódio em sua edição de 4 de junho daquele ano, "havia perto de 230 almas, a maior parte mulheres e crianças" no assentamento. Os pistoleiros surpreenderam os indígenas enquanto eles dormiam e, depois de inutilizar seus arcos, começaram a disparar sem fazer pausa. Ninguém ficou vivo na comunidade" [3].

Há, lamentavelmente, vários outros casos mais recentes e que aconteceram durante a vigência da Convenção e da Lei nº 2889/1956 [4]. Em 1960 houve o chamado Massacre do paralelo 11, no qual "morreram cerca de 3.500 Cinta Larga, envenenados por Arsênio" [5]. O massacre foi cometido por pistoleiros a mando de empresários, com a cobertura de funcionários do então Serviço de Proteção ao Índio (SPI). O massacre do paralelo 11 é reconhecido como um dos piores atentados contra os povos indígenas até hoje praticados no Brasil. Em 1993, 22 garimpeiros foram acusados de executar 12 índios yanomami da comunidade Haximu, na serra Parima, em Roraima. A chacina, conhecida como Massacre de Haximu, foi confirmada como crime de genocídio pelo STF [6]. Esses são apenas alguns exemplos vergonhosos e infames.

Em relação à atual situação das terras indígenas, o documento Yanomami sob ataque [7] indica que em 2021 a destruição provocada pelo garimpo na terra indígena yanomami cresceu 46% em relação a 2020. O mesmo documento, embora reconhecendo que o garimpo ilegal não é uma novidade, indica que a partir de 2016 até 2020 o garimpo na terra indígena yanomami cresceu nada menos que 3.350%, com as consequências conhecidas por todos.

A ação dos governos é medida não por palavras, mas por orçamentos e as suas execuções. Desde o início de sua desastrosa administração, o ex-presidente Bolsonaro havia se comprometido em não demarcar mais 1 centímetro de terra indígena [8]. O menosprezo pelos povos originários foi bem caracterizado com a afirmação de que "cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós" [9]. Tais declarações infelizes se materializaram em uma política deliberada e dirigida contra os povos indígenas durante os quatro anos de Bolsonaro, com o objetivo de causar danos irreversíveis aos aborígenes.

O orçamento autorizado para a Funai em 2019 foi de R$ 776, 93 milhões e em 2022 foi de R$ 618, 06 milhões , ou seja, o orçamento diminuiu em números absolutos [10]. A proposta de orçamento da União apresentada pelo governo Bolsonaro para 2023, no que se refere à saúde indígena previa corte de 59% dos investimentos destinados à saúde indígena, que de R$ 1,64 bilhão que passaria a R$ 664, 6 milhões [11].

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ajuizou perante o STF a ADPF 709, em coligação com outras entidades e partidos políticos, com o objetivo de que fosse determinado ao governo federal a instalação barreiras sanitárias em mais de 30 territórios onde vivem povos indígenas em isolamento voluntário ou de recente contato, bem como fosse providenciada a retirada de invasores das terras indígenas (1) yanomami, (2) karipuna, (3) uru-eu-wau-wau, (4) kayapó, (5) araribóia, (6) munduruku e (7) Trincheira Bacajá. O ministro Luiz Roberto Barroso determinou a adoção de medidas para a proteção dos indígenas. Fato é que, se as medidas foram tomadas, os seus resultados foram nulos.

Já em 2021 estimava-se em 20 mil o número de garimpeiros no interior da terra indígena yanomami [12]. Várias foram as denuncias apresentadas às autoridades responsáveis pela tutela dos indígenas; com efeito foram feitas 21 denuncias que foram totalmente ignoradas pelo governo federal [13]. A responsabilidade política é evidente.

A responsabilidade penal, diante destes e de outros fatos, deve ser apurada com base na Convenção e na Lei nº 2.889/1956. De fato, o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos (16 dispositivos) a Lei nº 14.021/2020[14] que previa medidas de proteção aos indígenas durante a pandemia de Covid-19. Vetou-se inclusive o acesso das aldeias à água potável, à distribuição de materiais de higiene, à colocação de leitos hospitalares e respiradores mecânicos acessíveis aos indígenas. Houve relato de mortes de crianças yanomami que ficaram sem resposta por parte do Ministério da Saúde [15].

A sequência de omissões forma um conjunto de indícios muito relevante que indicam prática dos crimes previstos na Lei 2.889/1956, haja vista que denotam intenção de "de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal", em especial a alínea (c) do artigo 1º:  "submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial". Essa intenção foi verbalizada pelo próprio ex-presidente em diversas ocasiões e no exercício do cargo. Em agosto de 2019: "O pessoal está comprando à prestação o Brasil. A compra no passado era também demarcando terras, o Brasil só fazia acordos lá fora em troca de abrir mão de sua soberania, demarcando terras indígenas, ampliando parques". Em outubro de 2021: "Nosso governo demarcou uma só terra de reserva indígena? Demarcou um só quilombola? Ampliou algum parque nacional? Criou uma área de proteção ambiental". Dezembro de 2021: "Não existe mais demarcação de terra indígena. O homem no campo acordava, por vezes, apavorado com uma notícia de que sua propriedade, via portaria do Ministério da Justiça, foi incluída em uma nova reserva indígena. Nós botamos um ponto final nisso". Relembre-se que a demarcação de terras indígenas é uma obrigação constitucional e que as terras indígenas são bens de propriedade da União.

As declarações são consistentes com as medidas de desconstrução do sistema de proteção aos indígenas e são indícios suficientes para a instauração de uma investigação sobre a prática de crime de genocídio, seja pelo ex-presidente, seja pelos seus auxiliares diretos.

 


[1] Xokleng: povo indígena quase dizimado protagoniza caso histórico no STF. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57656687. acesso em 23/1/2023

[2] Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365

[3] Laklãnõ-Xokleng: O povo dizimado por pistoleiros que está no centro de julgamento histórico no STF. Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/laklano-xokleng-saga-de-um-povo-dizimado-por-mercenarios-e-que-esta-no-centro-de-julgamento-historico-no-stf.html. Acesso em 23/1/2023

[4] VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas. São Paulo: Companhia das Letras. 2017

[5] Massacre do Paralelo 11 extermina 3.500 índios. Disponível em https://terrasindigenas.org.br/noticia/17879. acesso em 23/1/2023

[6] E 351487 / RR – RORAIMA Julgamento: 03/08/2006. Publicação: 10/11/2006. Tribunal Pleno

[7] Yanomami sob ataque. Disponível em https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/yanomami-sob-ataque-garimpo-ilegal-na-terra-indigena-yanomami-e-propostas-para. Acesso em 23/1/2023

[8] "Não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra indígena", diz Bolsonaro. Disponível em https://oglobo.globo.com/epoca/expresso/nao-demarcarei-um-centimetro-quadrado-mais-de-terra-indigena-diz-bolsonaro-23300890#ixzz7rEd8z0UI. Acesso em 23/1/2023

[9] "Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós", diz Bolsonaro em transmissão nas redes sociais. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/24/cada-vez-mais-o-indio-e-um-ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro-em-transmissao-nas-redes-sociais.ghtml. Acesso em 23/1/2023

[11] Disponível em https://outraspalavras.net/outrasaude/como-se-desmonta-a-saude-indigena/. Acesso em 23/1/2023

[12] Terra yanomami e o retrato do abandono: desnutrição, surto de malária e frascos de dipirona. Disponível em https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/11/14/terra-yanomami-e-o-retrato-do-abandono-desnutricao-surto-de-malaria-e-frascos-de-dipirona.ghtml. Acesso em 23/1/2023

[13] Yanomami tiveram 21 pedidos de socorro ignorados pelo governo Bolsonaro. Disponível em https://revistaforum.com.br/meio-ambiente/2022/8/29/yanommi-tiveram-21-pedidos-de-socorro-ignorados-pelo-governo-bolsonaro-122396.html. Acesso em 23/1/2023

[14] Bolsonaro sanciona com vetos lei para proteger indígenas durante pandemia. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/08/bolsonaro-sanciona-com-vetos-lei-para-proteger-indigenas-durante-pandemia. Acesso em 23/1/2023

[15] Conselho de saúde indígena relata em ofício mortes de crianças Yanomami com sintomas de Covid em Roraima. Disponível em https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/01/28/conselho-de-saude-indigena-relata-em-oficio-mortes-de-criancas-yanomami-com-sintomas-de-covid-em-roraima.ghtml. Acesso em 23/1/2023

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  • é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros.

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