Opinião

Relação de emprego por aplicativos de plataformas digitais (parte 1)

Autor

  • Francisco das C. Lima

    é mestre em Direito pela UnB mestre e doutor em Direito Social pela UCLM (Espanha) desembargador do Trabalho do TRT da 24ª Região e diretor da Ejud 24ª Região.

19 de janeiro de 2023, 15h17

 "El derecho siempre va detrás de la sociedad, debe adaptarse a la realidad en que se vive" (José Manuel Otero Lastres).

 

1. Introdução
O Direito por sua própria natureza conservadora que, em regra disciplina as relações jurídicas e sociais para o futuro, sempre caminha a um ou a alguns passos atrás da realidade que nos rodeia.

De acordo com José Manuel Otero Lastres [1]:

"El derecho siempre va detrás de la sociedad, lo sabemos todos los juristas. La realidad va por delante y el derecho va siempre detrás, pero lo importante es que el derecho se vaya modernizando, en el sentido de que no haya una brecha muy amplia entre lo que se vive en la realidad y lo que está en las leyes. Por ejemplo, el código de comercio que es de 1885 y hace pocos años que estaba vigente en buena parte de sus normas contemplaba todavía la realidad de los pequeños comerciantes y de los buques de vapor… Lo que tenemos que hacer es que las normas contemplen la realidad del tiempo en el que son dictadas. Hay materias en las que el derecho está continuamente modificándose como en el ámbito del derecho administrativo y en otras la transformación va más lenta porque los cambios sociales van más despacio, como con el derecho civil o el mercantil. Pero aun así, por ejemplo, la familia de hoy no tiene nada que ver con la del siglo XIX que es la que se recogía en el código civil que era del siglo XIX. De lo que se trata es de ir modificando las leyes para ir adaptándolas a la realidad en la que se vive" [2].

Entretanto, o Direito, aí incluído especialmente o Direito do Trabalho, não pode ignorar a realidade dos fatos sociais e das conquistas cientificas e tecnológicas e dos novos meios de comunicação surgidos com a internet especialmente a partir da Globalização que impactam de forma direta e imediata no modelo de produção e de trabalho, apenas porque o Direito posto, legislado, como se sabe, é sempre mais lento do que a realidade de vida, especialmente das novas conquistas da ciência e do desenvolvimento da tecnologia, das rápidas alterações de uma sociedade de massa e multifacetada que exige do Estado respostas rápidas e eficazes às muitas demandas da sociedade, inclusive, e especialmente, no campo das relações de trabalho que o direito posto nem sempre ou quase sempre não consegue acompanhar.

Assim entendido, deve o Direito, nomeadamente o Direito do Trabalho, ser pensado e interpretado de forma dialética, pois sempre está em movimento, "em constante modificação, formação e destruição – isto é, como de fato ocorre na realidade concreta, nessa dinâmica que é inerente aos princípios", que são "condicionados historicamente" o que evidencia que que o Direito não é constituído apenas de "interpretações articuladas dentro do direito posto", mas num sistema de intercomunicação com a sociedade, seus valores, que devem ser levados em consideração e com as conquistas sociais, cientificas e tecnológicas de uma sociedade globalizada em que as barreiras geográficas e da soberania estão sempre sendo colocadas em xeque.

É nesse ambiente de mudanças e conquistas tecnológicas que a questão da relação de emprego por aplicativo, essa nova modalidade trabalho surgida com globalização, especialmente potencializada com o advento da pandemia da covid-19, em que o trabalho passou a ser prestado predominantemente à distância por meios tecnológicos e que o intérprete deve tomar em consideração na apreciação de pedidos de reconhecimento do vínculo de emprego entre os trabalhadores por aplicativos e a empresa titular da plataforma.

Este artigo pretende discutir, sem a pretensão de ser definitivo, essa questão, como se tentará demonstrar a seguir.

2. Relação de emprego por aplicativos de plataformas digitais
Para apreciação da tese da existência de vínculo de emprego aqui defendida, partimos da premissa de que não pode ser apreciada com base no antigo modelo de empresa, tampouco do conceito de empregado e de empregador contido no texto dos artigos 2º e 3º da Lei Consolidada — CLT; antes, se deve tomar em consideração as novas formas de prestação de serviços como magistralmente exposto pela Professora de Direito do Trabalho Teresa Coelho Moreira, da Universidade do Minho (Portugal), no o Seminário Direitos Humanos Sociais e Relações de Trabalho, realizado em 29/11/2011 pelo Colendo Tribunal Superior do Trabalho, como o labor prestado de motoristas entregadores e de transporte de pessoas, por meio de aplicativo de plataforma tecnológica — e dos novos arranjos ou modelos empresarias surgidos com a globalização da economia e das comunicações, que permitiram o avanço das tecnologias e do surgimento de um modelo de economia colaborativa e de trabalho, ou seja, aquele que se serve de plataformas na internet, no mundo dos negócios, para por em contato clientes com provedores a fim de realizar transações no mundo real [3], como no caso dos provedores da iFood, Uber [4] e outros, que atuam na entrega de refeições de vários restaurantes e no transporte de passageiros, e por isso mesmo, os trabalhadores que laboram nesse novo tipo de trabalho, devem ser mirados sob e com um novo olhar, especialmente no que diz respeito à presença do elemento subordinação na prestação laborativa, numa releitura do conceito desse elemento tonificador da relação de emprego, para que possam ser albergados e tutelados pelas normas do Direito do Trabalho e pela Previdência Social nessa nova realidade do mundo laboral, como deixou assentado a citada professora e doutrinadora lusitana, tese que vem sendo defendida aqui no Brasil, entre outros, por Rodrigue Carelli [5].

No âmbito do Direito Laboral espanhol Eduardo Rojo Torrecilla [6] lembra que se deve fazer "una relectura de la caracterización clásica de las relaciones laborales para evitar así una huida del Derecho del Trabajo que debilite la función estructural que históricamente ha desempeñado" sob "una perspectiva de progreso, es conveniente plantearse una serie de preguntas a las que tratar de responder, tras debates, discusiones y reflexiones, sobre los cambios en las relaciones de trabajo en el próximo (inmediato) futuro, en gran medida como consecuencia del cambio tecnológico".

E mais recentemente, com chamada Reforma Trabalhista Espanhola — Real Decreto-Ley 9/2021 — passou a se referir "às atividades das pessoas que prestam serviços remunerados consistentes em distribuição de qualquer produto de consumo ou mercadoria, através de empregadores que exerçam suas faculdades empresariais de organização, direção e controle de forma direta, indireta ou implícita, mediante a gestão algorítmica do serviço ou das condições de trabalho, por meio de uma plataforma digital".

O aludido Real Decreto-ley que modificou a Ley del Estatuto de los Trabajadores, na Disposición Adicional 23 estabelece:

"Disposición adicional vigesimotercera. Presunción de laboralidad en el ámbito de las plataformas digitales de reparto
Por aplicación de lo establecido en el artículo 8.1, se presume incluida en el ámbito de esta ley la actividad de las personas que presten servicios retribuidos consistentes en el reparto o distribución de cualquier producto de consumo o mercancía, por parte de empleadoras que ejercen las facultades empresariales de organización, dirección y control de forma directa, indirecta o implícita, mediante la gestión algorítmica del servicio o de las condiciones de trabajo, a través de una plataforma digital. Esta presunción no afecta a lo previsto en el artículo 1.3 de la presente norma."

Na justificação da aludida norma, se ponderou ser "manifiesto la urgencia de garantizar condiciones de trabajo justas en la economía de las plataformas digitales de reparto, a través de una presunción de laboralidad de las personas que prestan servicios en dicho ámbito, que asegura la igualdad de trato de las empresas, ya operen con formas de trabajo estándar o no estándar; así como procurar, por último, la efectividad de la modificación legislativa operada, mediante la incorporación de mecanismos para conseguir su cumplimiento y aplicación efectivos".

Desse modo, existe, no ordenamento laboral espanhol, uma presunção da existência de vinculo de emprego e, portanto, incluídos esses trabalhador no contido no artigo 8.1 do Decreto-Ley 9/2021 Estatuto de los Trabajadores [7], presunção essa, que certa doutrina [8] considera relativa, invertendo-se o encargo da prova, de modo que, como averba Rodrigo Caralli [9], em caso de alegação de falso trabalho autônomo, incumbirá ao trabalhador apenas demonstrar prestação de serviços pessoais remunerados, e à empresa que o labor foi prestado de forma autônoma ou independente e por conta própria do prestador.

Nos parece que essas considerações dos aludidos juristas, permitem entender que quando se trata de labor prestado por meio de aplicativos de plataformas, nos encontramos ante uma nova forma de empresa ou empreendimento e de trabalho, cuja natureza jurídica e dimensão, o contido nos artigos 2º e 3º da velha CLT não conseguem albergar, a não ser que, como lembra Lorena Porto Vasconcelos [10], deles façamos uma releitura, de modo a adequá-los à nova realidade do mundo do trabalho e partir da interpretação dos fatos vivenciados pela partes, dos fatos sociais e não necessária e meramente do texto legal, como infelizmente se tem feito [11], à medida que o artigo 3º, consolidado, foi pensado e editado nos de 40 do século XX quando o mundo saía da 1ª Guerra Mundial com uma economia debilitada e que, no Brasil, apenas começava um acanhado processo de industrialização, em que o trabalho era praticamente físico ou braçal e o empregador — patrão — dava ordem direta ao trabalhador, com a prevalência do labor no espaço físico da fábrica ou empresa. Daí a ideia da subordinação vertical, direta, jurídica, portanto.

Essa realidade mudou especialmente a partir dos anos 90 com surgimento de um novo modelo de empresa, de produção e de trabalho, via computador e outros aparatos tecnológicos, em que o empregado passou a ser mais uma espécie de colaborador, e a subordinação a se revestir de uma outra roupagem, vista especialmente pela inserção ou integração do trabalhador no empreendimento, o que faz com a subordinação seja analisada tomando-se em consideração o fato de empregado se inserir e se integrar, inclusive, virtualmente, à atividade fim ou meio de determinada empresa ou organização produtiva, sendo o labor prestado à distância, por meio de computador ou outros equipamentos tecnológicos e, por meio destes, recebe atribuições, orientações, ordens e é fiscalizado, nomeadamente aqueles que laboram por meio de plataformas como os entregadores ou riders.

 


[1] OTERO LASTRES, José Manuel. "El derecho siempre va detrás de la sociedad, debe adaptarse a la realidad en que se vive". Disponível em: https://www.laopinioncoruna.es. Acesso em 31/10/2022.

[2] Esse parece ser também o entendimento de DÄUBER, Wolfgang. Direito do trabalho e sociedade na Alemanha. Trad. Alfred Koller. São Paulo: LTr, 1997, p. 177 e seguintes.

[3] "Plataformas digitais são um modelo de negócio baseado em alta tecnologia, principalmente pela utilização de algoritmos, inteligência artificial e produção e análise de dados, bem típicas da sociedade contemporânea com seu processo de transformação digital. Em outras palavras, são o modelo de empresas, cuja estrutura central é a tecnologia, exemplo de Google, Airbnb, Uber, iFood, entre outros. Quando estas plataformas vendem um serviço por meio de uma mediação ou intermediação do trabalho alheio, são designadas plataformas digitais de trabalho, sendo o modelo da Uber o grande paradigma, ao ponto de colonizar esse fenômeno da economia digital como uberização". CARVALHO OLIVEIRA, Murilo Sampaio. "O Direito do Trabalho (des)conectado nas plataformas digitais". Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/download/24367/17785. Acesso em 31/10/2022; FILGUEIRA, Vitor; CAVALCANTE. "O trabalho no século XXI e o novo adeus à classe trabalhadora: Work in the 21st century and the new goodbye to the working class”. Disponível em: https://revistaprincipios.emnuvens.com.br/principios/article/view/19/12. Acesso em 31/10/2022.

[4] Em 3 de junho de 2022, o Tribunal Superior da Suíça decidiu que "os motoristas da Uber devem ser considerados empregados da companhia, e ratificou a decisão de Genebra, onde é exigido o cumprimento da lei para a continuidade das atividades da empresa na região", e ao examinar a matéria, o Supremo Tribunal de cantão afirma que "não atuou arbitrariamente ao decidir que os motoristas da Uber, que trabalhavam em Genebra, tinham vínculo empregatício com a Uber BV" e, como consequência, negou o recurso.

[5] Vide OITAVEN, Juliana Carreiro Corbal; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CASAGRANDE, Cássio. Empresas de transporte, plataformas digitais e a relação de emprego: um estudo do trabalho subordinado sob aplicativos. Brasília: Ministério Público do Trabalho, 2018.

[6] TORRECILLA, Eduardo Rojo. "Tecnologia y relaciones laborales. La resposta del Derecho del Trabajo y los câmbios econômicos y sociales (especial atención a le economia de las plataformas)". Disponível em www.eduardohojotorrecilla.es. Acesso em: 31/10/2022.

[7] Articulo 8.1. "El contrato de trabajo se podrá celebrar por escrito o de palabra. Se presumirá existente entre todo el que presta un servicio por cuenta y dentro del ámbito de organización y dirección de outro y el que lo recibe a cambio de uma retribción a aquel".

[8] TODOLI SIGNES, A. "Cambios normativos en la Digitalización del Trabajo: Comentario a la 'Ley Rider' y los derechos de información sobre los algoritmos".IUSLabor. Revista d’anàlisi de Dret del Treball, [en línea], 2021, n.º 2, pp. 28-65.

[9] CARELLI, Rodrigo. "NOVA LEI ESPANHOLA PRESSUPÕE RELAÇÃO DE EMPREGO PARA ENTREGADORES DE PLATAFORMAS". Disponível em: https://revisaotrabalhista.net.br/2021/05. Acesso em 31/10/2022.

[10] PORTO VASCONCELOS, Lorena. A Subordinação no Contrato de Trabalho. Uma Releitura Necessária. São Paulo: LTr, 2009, p. 252-253, 267-268.

[11] NAHAS, Tereza Christina. "Qualificação do vínculo de emprego". In: Revista dos Tribunais. Novas Tecnologias, Plataforma Digitais e Direito do Trabalho (coord. Giuseppe Luduvico et al). São Paulo: 2020, p. 307-335.

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