Embargos Culturais

A vida futura, de Sérgio Rodrigues

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

15 de janeiro de 2023, 8h05

Tomei conhecimento do livro A vida futura, de Sérgio Rodrigues, ao ler a belíssima resenha crítica que Ana Cristina Braga Martes publicou na revista Quatro cinco um. O texto de Ana é uma daquelas resenhas críticas que torna a leitura do livro comentado imediatamente obrigatório. Corri até uma livraria perto de casa. O livro de Sérgio Rodrigues (editado pela Companhia das Letras) estava lá. E tenho certeza que o livro estava me esperando. Li as 166 páginas de uma sentada, ardente na mais escaldante febre literária, como teria dito Otto Lara Resende. É um romance histórico invertido, o passado vem para o futuro, e não o futuro volta para o passado.

Spacca
A vida futura é um romance que tem como fio condutor uma volta de Machado de Assis e de José Alencar ao Rio de Janeiro, em 2020. Saem das nuvens e pousam no interior de uma loja da Rua do Ouvidor, o Magazine Elegância. Estão em forma de espírito, isto é, se espíritos tem formas. Não sei se o magazine mencionado no livro de fato existiu. Lembrei-me do Magazine Royal, que ficava no Largo de São Francisco, e que foi destruído por um incêndio em 1943. O dono desse magazine era um português, José Vasco Ramalho Ortigão, e não há nenhum chiste literário na indicação do proprietário.

Machado e Alencar voltam para a vida vivente do Rio de Janeiro, alarmados com a notícia de que uma professora universitária estava adiante de um projeto de reescrita de todos os clássicos, simplificando-os para o leitor contemporâneo. É hilariante a discussão em torno de “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, de Memórias póstumas de Brás Cubas. Os emendadores dos clássicos não entendiam o que significava “legado”. Alguém propôs “herança”, ainda que a troca suscitasse um problema de classe e de exploração. A razão pela qual a professora insistia no aggiornamento da linguagem dos clássicos, revelado no fim do livro, dá um tom quase policial a essa deliciosa narrativa.

Sérgio Rodrigues moteja com a escrita, escreve como Machado (consegue), divide os capítulos como Machado o fazia em sua última fase. Pontua como Machado. Brinca com palavras que Machado desconhecia: cornitude, fofocas, youtubers, influencers, pão de forma. Uma alucinação narrativa: Machado vê (e lê) uma personagem lendo um excerto de Peregrino Júnior, que tratava sobre Machado mesmo, no tema de sua negritude. Sérgio Rodrigues retoma a reação de Joaquim Nabuco (Joca, no livro), que ao ensejo das exéquias de Machado, o marcava como grego, em contraposição ao substantivo/adjetivo “mulato”. É um dos temas centrais do livro.

A empreitada da escrita na forma machadiana é difícil, e há horas que há problemas com a verossimilhança. Machado não usaria com naturalidade a expressão “material sintético”. No entanto, o ápice da leitura dá-se justamente nesses momentos, nos quais o leitor duvida da possiblidade de ser Machado efetivamente o narrador. Há uma permanente colagem de textos, excertos e passagens. O que é real? Propondo o retorno dos escritores ao Rio contemporâneo o autor nos prega a mesma peça que Machado nos pregou em Memórias póstumas de Brás Cubas.

Há uma retomada de temas antigos, sem nenhuma concessão ao anacronismo, a exemplo do escravismo em José de Alencar, ao suposto (e tão falado) triângulo amoroso entre Machado, Alencar e sua esposa, Georgina Augusta Cochrane. Uma ligação explorada por Humberto de Campos, para quem a semelhança entre Machado e Mário de Alencar não deixaria dúvidas da traição. Não tenho provas. E não caio nessa de que evidências bastam. Esse postulado, de que bastam indícios, que é odioso, a meu ver, subverteu nosso processo penal.

Temas atualíssimos também marcam a narrativa. As milícias no Rio de Janeiro, balas perdidas, o politicamente correto, essa confusão todas de pessoas não binárias. Penso que cada leitor apreende da narrativa o que mais lhe impressiona. Como um amante inveterado do Rio antigo, daquele tipo que chora toda vez que perambula no que sobrou (ou não) da Rua do Ouvidor, tenho que a violenta transformação urbana é o ponto mais marcante.

Machado e Alencar ficam horrorizados com o que veem, ainda que obtemperem que a Paris-Cidade-Luz não era mesma da Paris de Jean Valjean dos Miseráveis de Victor Hugo. Há algum otimismo, que, no entanto, cai por terra quando veem uma menina violentada atrás de um latão de lixo à frente da Academia Brasileira de Letras. Nessa cena, penso, a metáfora que registra a tragédia na qual se desdobra a história brasileira, totalmente desmascarada quanto à sua bondade ou cordialidade, dado o que vimos no vandalismo de 8 de janeiro próximo pretérito.

Autores

  • Brave

    é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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