Opinião

A desinformação de Glenn Greenwald

Autor

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

15 de janeiro de 2023, 16h01

A liberdade de expressão é um dos pilares da democracia constitucional, aqui, ali e em todo lugar. Essa é uma frase adorável para propor um debate sobre a manifestação do pensamento, mas também é a crítica escondida contra seus inversos — censura e ditadura — que seriam irmãs siamesas.

Dizendo denunciar o que chamou de “escalada extrema de um regime de censura no Brasil”, Glenn Greenwald, um excelente jornalista norte-americano, aponta um suposto risco contra a democracia no Brasil por causa das recentes decisões do ministro Alexandre de Moraes, da Suprema Corte e do Tribunal Superior Eleitoral brasileiros.

E isto porque foram adotadas diversas medidas judiciais contra muitas pessoas por causa do abuso do exercício de direito quanto à liberdade de expressão e pela prática de graves crimes contra do Estado Democrático de Direito. Não só.

Durante manifestação com mais de uma hora, apresentada em seu canal na plataforma Rumble, além de diversas postagens em sua conta no Twitter, Greenwald se esforçou para tentar caracterizar o ministro Alexandre de Moraes e a Suprema Corte como autoritários, e suas decisões como ditatoriais.

Greenwald mencionou que “o regime de censura no Brasil tornou-se tão repressivo — um único juiz ordena que pessoas sejam banidas e até presas sem o devido processo ou justificativa, tudo sob sigilo — que até o New York Times alertou duas vezes o quão grave isso se tornou”.

O jornalista ainda complementou, dizendo: “Como nos Estados Unidos, a esquerda brasileira está unida à mídia corporativa em apoio a esse sistema. É um clima de 11 de setembro: se você questionar esse juiz, será considerado "pró-terrorista", e, ainda, “que este seria “o ponto-chave: os sistemas de censura não estão confinados a apenas um país, então você pode ignorá-lo ou rejeitá-lo se não morar lá. Como aconteceu com a França e a UE ordenando ao mundo que abandonasse a mídia russa, cada escalada em um país se infiltra em todos os outros”.

Mencionou, ainda, que “como disse o NYT, a esquerda e a mídia corporativa se uniram para fazer dele seu novo Moro: o juiz-herói que salva a nação e, portanto, não pode ser criticado.”

Infelizmente são inverdades fáticas e jurídicas que podemos chamar de meias verdades e desinformação.

Comecemos pela comparação entre o ministro Alexandre de Moraes e ex-juiz Sergio Moro, considerando que somente é possível comparar de forma razoável coisas que sejam similares, por analogia, e é necessário que encontremos pontos de semelhança entre as ideias comparadas.

Quanto ao ex-juiz Sérgio Moro, observo que ele foi o responsável pela operação “lava jato”, tendo influenciado decisivamente em ao menos dois momentos cruciais da política brasileira.

Primeiro, manipulou o áudio das interceptações telefônicas entre o então ex-presidente Lula e a então presidente Dilma Rousseff, em março de 2016, fazendo parecer que havia algo errado num diálogo entre autoridades públicas, sendo peça decisiva para o desfecho do impeachment de Dilma.

Posteriormente, constatou-se que o ex-juiz Sergio Moro não apenas havia agido de maneira ilícita, de modo a manipular a opinião pública, pois não possuía competência legal para o ato, mas também separou trechos manipulados dos diálogos que levaram a Suprema Corte brasileira a decidir em erro, mediante decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, para impedir que o ex-presidente Lula fosse indicado como ministro da casa civil de Dilma.

O segundo momento decisivo de atuação política do ex-juiz Sergio Moro foi quando o então ex-presidente Lula se encontrava liderando as pesquisas para as eleições presidenciais, inclusive com indicações de que venceria no primeiro turno, quando Moro determinou sua prisão em abril de 2018, retirando Lula da corrida presidencial, abrindo caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Meses depois, o ex-juiz Sergio Moro abandona a magistratura e se torna político subordinado ao candidato que ele ajudou a eleger, como ministro da Justiça e Segurança Pública.

Surpreendente, também poucos após, contando com uma dose improvável de sorte e reconhecimento público de que o processo judicial contra Lula foi nada mais que uma fraude, Greenwald ajudou a desmascarar a farsa ao divulgar através da “vaza jato” os documentos secretos obtidos por um hacker, que davam conta de que o ex-juiz Sergio Moro fingiu provas, combinou versões falsas apenas para prender Lula e tirá-lo das eleições presidenciais.

Mas não seria suficiente transformar a realidade na mais bizarra similitude com a ficção, se não tivesse também ocorrido um desentendimento político entre Moro e Jair Bolsonaro, no qual o primeiro acusou o segundo de pedir para que ele cometesse o crime de interferir nas investigações federais contra o filho do presidente, enquanto o segundo acusou o primeiro de deslealdade e tentativa de chantagem em troca de uma vaga de ministro da Suprema Corte brasileira, resultando na demissão de Sergio Moro.

Pois bem, falemos agora do ministro Alexandre de Moraes, que integra a Suprema Corte e atualmente também é o presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Alexandre não fez nada parecido, muito pelo contrário. Não combinou versões, não fingiu provas, não negociou cargo em troca do cometimento de crime para chegar ao posto, não precisou prender alguém para ser recompensando, diferente de Moro.

Por isso, não é possível entender a comparação realizada por Greenwald, a não ser que sua intenção tenha sido reforçar as visíveis e gigantescas diferenças entre ambos, mas que causa patente desinformação.

Além disso, Greenwald afirmou que ao ordenar a limitação das manifestações em redes sociais, os atos do ministro Alexandre equivaleriam a autoritarismo, censura e ditadura judicial. Contudo, o ex-presidente Trump também foi banido do Twitter após os trágicos eventos do Capitólio, em 6 de janeiro se 2020, muito embora tenha sido por decisão privada do próprio aplicativo, e nem por isso pessoas razoáveis chamam os Estados Unidos de uma ditadura.

De igual maneira, Greenwald afirmou ao público de língua inglesa que o poder singular de um só juiz, no caso, o ministro Alexandre, seria algo jamais visto no mundo nas democracias ocidentais. Também não é verdade, e sua manifestação desconhece, em igual medida, tanto a natureza das decisões emanadas da Suprema Corte americana (per curiam), quanto as decisões advindas da Suprema Corte brasileira (seriatim), uma mais colegiada e institucional, outra mais individualizadas e pessoal.

Mas fundamentalmente, registro que Greenwald desconhece a institucionalidade histórica da Suprema Corte brasileira, que passou essencialmente a ter cotidianas manifestações individuais de seus juízes desde 1965, em famoso debate entre os antigos ministros Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, sobre cada juiz ser “um delegado individual da Corte”.

Contudo, Greenwald também erra profundamente quando tenta aplicar ao Brasil sua peculiar visão sobre a liberdade de expressão a partir da Primeira Emenda à Constituição norte-americana, uma das constituições mais difíceis de emendar, com sua essência urdida há mais de 200 anos, quando não existiam redes sociais e nem preocupações mais sofisticadas com o tema.

Greenwald esquece, possivelmente por diversas razões, que o Brasil viveu uma ditadura durante mais de 20 anos (1964-1988), articulada pelos Estados Unidos na “operação Condor”, sem liberdade de expressão e diversas mortes e torturas, e que agora, neste exato momento, o mesmo grupo político apoiador daquela última ditadura, esteve e está, ao que parece, articulando o implemento de um novo golpe de estado, e que a Suprema Corte e seus juízes, inclusive o ministro Alexandre de Moraes, estão apenas defendendo a ordem constitucional e o estado democrático de direito com base em antigas advertências de que não se pode ser tolerante com os intolerantes, e nem permitir que a democracia seja usada para sua destruição, como em Weimar, e, claro, como também aconselhou Karl Loewenstein quando falou sobre a democracia militante.

É importante que as decisões sejam criticadas sob a melhor luz constitucional, claro, mas sem meias verdades e sem distorções tão profundas e desfiguradas por um profundo processo de desinformação, pois a sugestão escondida nas falas de Greenwald não apenas permitiriam gritar fogo num teatro lotado, mas também permitiriam a confissão sob tortura daquele que chamou os bombeiros como manifestação da uma estranha face da liberdade.

As decisões criticadas por Greenwald, contudo, obedecem ao devido processo legal e são chanceladas pelos demais ministros da Corte Suprema, em consonância com a Constituição Federal e com sua jurisprudência, e talvez por isso Greenwald e os demais jornalistas ainda possam gozar da liberdade de imprensa e expressão. Reconstruída após os ataques, será ela mesma um memorial da democracia constitucional. Abençoada Suprema Corte, bendita seja!

Autores

  • faz pós-doutoramento em Direito (Università degli Studi di Perugia, Univali e UnB). É doutor e mestre em Direito. Professor do programa de mestrado em Direito do UDF (Centro Universitário do Distrito Federal). Professor da pós-graduação em "Direito e Poder Judiciário" da Escola Judicial de Goiás do TJ-GO. Membro do CBEC (Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais). Membro da Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal). Membro da ABPC (Associação Brasiliense de Processo Civil). Membro da ABrL (Academia Brasiliense de Letras). Ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Advogado.

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