Opinião

Lawfare, Foreign Corrupt Practices Act e o Inimigo

Autores

  • Claudio José Langroiva Pereira

    é advogado e professor doutor de Direito Processual Penal.

  • Marcelo Carita Correra

    é doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) mestre em Direito Penal pela PUC-SP especialista em Direto Penal e Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e em Direito Tributário pela PUC-SP professor Convidado da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e procurador Federal em São Paulo.

15 de janeiro de 2023, 16h14

Corrupção é tema antigo na história. Há menção ao instituto no Império Romano [1]. Sérgio Habib [2] menciona casos ainda no Brasil-Colônia. Renato de Mello Jorge Silveira [3] afirma que o conceito de corrupção, no Brasil, conduz, fundamentalmente, aos crimes contra a administração pública. Atinge bens jurídicos transindividuais e afeta as bases da sociedade [4]. Os valores obtidos por meio da corrupção retiram recursos destinados ao custeio do Estado e, especialmente, para investimentos públicos [5].

Recentemente, as publicações do ISO 19.600 (Compliance management systems) e ISO 37.001 (Anti-Bribery Management System[6], bem como da Lei 12.846/2013 [7], regulamentada, atualmente, pelo Decreto 11.129/2022 [8], modificaram o panorama de combate à corrupção, especialmente em face da administração, trazendo o compliance e a due diligence como elementos fundamentais para prevenção de atos ilícitos.

No âmbito internacional, o Instituto Transparência Internacional [9] informa que o Brasil está na posição 96, de um total de 180 países, do índice de percepção da corrupção [10]; uma classificação que nos coloca no grupo de países com elevado índice. O mesmo estudo aponta a correlação entre corrupção e violação aos direitos humanos, destacando que países com histórico de corrupção geram maiores violações às liberdades civis.

Ocorre que, enquanto a sociedade brasileira ainda busca entender os efeitos das modificações legislativas no combate à corrupção (especialmente a Lei nº 12.846/2013), os resultados da notória operação "lava jato" e a estratégia defendida por Sergio Fernando Moro [11], declaradamente inspirada na operação "Mãos Limpas" da Itália, de trazer a repressão à corrupção para fora do processo penal, com utilização da opinião pública, é apresentado o Projeto de Lei n° 1.419, de 2022 do Senado [12] que busca alterar a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 [13] e a "Lei Anticorrupção", a fim de prever medidas de combate à prática do lawfare no âmbito societário.

Note-se que, sob a alegação de evitar uma suposta prática lesiva aos interesses nacionais (especialmente a livre concorrência), a proposta promove significativas mudanças na repressão e prevenção à corrupção.

O termo lawfare, principal justificativa invocada pelo projeto, surgiu, pela primeira vez em 1975 [14]. Referia-se a uma preocupação em relação ao sistema legal ocidental, que teria se tornado excessivamente adversarial. Atualmente, pode ser descrito como uso da lei como uma arma de guerra, de forma que, ao invés de realizar uma operação militar, utiliza-se a lei para obter o resultado que a referia intervenção teria [15]. Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim [16] afirmam que o instituto é "o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo".

A análise do artigo 1º, parágrafo único, da proposta de mudança legislativa, que veicula a definição do conceito de lawfare, demonstra que a proposta acolheu o conceito defendido por Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim [17].

O legislador, especialmente para o artigo 21-B (dispositivo que condiciona a colaboração com autoridades estrangeiras a limites impostos pelo Poder Executivo), busca fundamentação em pesquisa empírica [18] que aponta efeitos negativos da operação "lava jato" sobre a economia, com redução do emprego e do Produto Interno Bruto (PIB). Correlaciona a referida operação com uma forma de lawfare, na medida em que a lei teria sido utilizada de forma ilegítima, como combate a um inimigo político e econômico dos responsáveis pela condução das investigações e dos processos.

Torna, por meio do artigo 2ª do referido projeto, crime contra a ordem econômica enviar, para agência ou órgão de Estado estrangeiro, informações ou documentos sensíveis, cujo conhecimento possa conduzir a prejuízo estratégico ou concorrencial a pessoa jurídica brasileira, sem observância do procedimento previsto no artigo 21-B.

A proposta também faz referência a um estudo [19] em que um ex-diretor da empresa francesa Alsthom (atual GEC-Alstom) relata episódio em que, supostamente, o Departamento de Justiça de Nova York adotou o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA — Estados Unidos) [20], que estabelece normas de repressão e prevenção ao pagamento de vantagens indevidas a funcionários públicos estrangeiros, como lawfare, de forma a realizar uma "guerra financeira" com o objetivo de enfraquecer a citada empresa francesa, especialmente pela ameaça de elevadas multas, para facilitar a aquisição da companhia pela empresa norte-americana General Electric.

O citado estudo afirma, ainda, que o entendimento das autoridades americanas sobre a abrangência do FCPA, reconhecendo a jurisdição norte-americana diante de conexões muito frágeis como o pagamento de "propina" em dólares americanos mesmo fora do território dos Estados Unidos ou envio de e-mails utilizando servidores localizados no território do país, por exemplo, confirma o lawfare praticado. 

A proposta merece uma revisão crítica. Não se deve relacionar o lawfare às práticas abusivas e ilegítimas utilizadas como "armas" em "guerras" não declaradas a "inimigos" que, ao fim e ao cabo, seriam vítimas de ilegalidades. O lawfare é, em nosso entender, instituto que conta com um viés de legitimidade quando utilizado de forma adequada, como se verifica, por exemplo, nos embargos econômicos impostos pela Europa [21] diante da invasão da Ucrânia pela Rússia.

Procedimentos ilegítimos, como aqueles relatados por Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim [22], devem ser expurgados do ordenamento jurídico e implicam as sanções legais cabíveis. Somente é possível falar em lawfare diante de práticas que não violem direitos fundamentais, especialmente garantias processuais, ou seja, quando se opera no campo da legalidade. A utilização de normas legais de natureza punitiva com finalidades comerciais ilegítimas deve ser objeto de oposição nas vias diplomáticas e de regulação pelo comércio mundial, além da impugnação, na via judicial, por desvio de finalidade.

As pesquisas empíricas mencionadas na proposta também merecem críticas. O estudo sobre o caso Alstom [23] apenas cita dados estatísticos de análises quantitativas de multas aplicadas com fundamento no FCPA, mas não realiza estudo qualitativo capaz de apontar a causa das diferenças entre as multas aplicadas a empresas norte-americanas e estrangeiras.

O relatório do Dieese (mencionada no projeto) sobre os impactos econômicos decorrentes das punições de empresas nacionais envolvidas em atos de corrupção precisa de análise sob a luz da preservação do patrimônio econômico nacional e da necessidade de responsabilização daqueles que, cientes dos riscos, incrementaram suas ações institucionais de forma desviante com, por exemplo, o "vazamento" de informações e a publicidade populista de processos e documentos judiciais, gerando danos à ordem econômica e social. Portanto, em nosso entender, referido relatório não pode ser invocado como fundamento para uma simplificada limitação do tráfego internacional de informações.

Se uma empresa gera recursos por meios ilícitos, como o caso das construtoras brasileiras apenadas nos Estados Unidos e mencionadas na análise em questão, as sanções devem ser aplicadas tanto em âmbito doméstico como internacional; todavia, o tráfego de informações nacionais sobre estes fatos deve ficar restrito a uma cadeia de custódia e ao devido processo legal, de forma a que seja possível avaliar a legalidade e a legitimidade da comunicação, com respeito à ampla defesa, ao contraditório e aos demais direitos e garantias individuais e sociais da legislação brasileira. É possível, inclusive, limitar a utilização destas informações e documentos a determinado procedimento, determinada área jurídica ou a casos envolvendo determinado limite de responsabilidade.

O projeto de lei, não obstante cuidar de alterações e efeitos no âmbito da denominada "Lei Anticorrupção", é negligente sobre temas diretamente conexos às alterações promovidas, como o auxílio-direto e a cooperação internacional em matéria penal e processual penal, que têm proporcionado ações desviantes das autoridades públicas, burlando o devido processo legal brasileiro.

A proposta para o artigo 21-B da Lei nº 12.846 de 2013 não considera os efeitos criminais envolvendo atos de corrupção e os acordos na esfera penal decorrentes, especialmente no âmbito do FCPA, do plea bargain. As mudanças sugeridas expõem pessoas físicas e jurídicas nacionais ao risco de autoridades estrangeiras considerarem as limitações ao fornecimento de informações como descumprimento dos termos do acordo.

Não haveria obrigação de autoridades estrangeiras aceitarem limites na colaboração de pessoas jurídicas brasileiras e pessoas físicas a estas ligadas com fundamento em lei ordinária brasileira. A limitação compulsória somente seria possível por meio de tratados internacionais ou compromissos bilaterais; instrumentos jurídicos que o projeto em questão não contempla; na verdade, a proposta desconsidera a inexistência de qualquer vinculação dos órgãos de outros países à legislação nacional e os limites impostos pelo direito internacional.

Ademais, se admitirmos um controle dos termos da colaboração, julgamos que o Poder Judiciário, por meio de processo judicial que observe o contraditório e a ampla defesa, deve ser o responsável por esse procedimento, de forma a garantir que as limitações impostas não afetem o direito de defesa das pessoas físicas e jurídicas em outras jurisdições (especialmente na esfera penal), bem como para afastar eventual influência política sobre os termos da limitação.

Não se pode deixar de elogiar a iniciativa em questão, com destaque ao trato de temas sensíveis no combate à corrupção e às relações do Brasil com outros países e organizações internacionais. Todavia as referidas mudanças propostas, que serão objeto de novos estudos pelos autores, antes de qualquer tramitação, exigem debates no âmbito acadêmico e nos demais setores da sociedade, de forma a evitar a promulgação de normas jurídicas que, ao contrário do almejado, podem trazer insegurança jurídica e retrocessos. Esta reflexão se faz indispensável para evitar maiores riscos aos direitos e garantias individuais assegurados na Constituição Federal, bem como para reafirmar a repressão e prevenção à corrupção no Brasil e nas suas relações internacionais.

 


[1] GONZÁLEZ ROMANILLOS, José Antonio. La corrupción política en época de Julio César: un estudio sobre la Lex Iulia de Repetundis. Granada: Comares, 2009. p. 25 e ss.

[2] HABIB, Sérgio. Brasil: Quinhentos anos de corrupção: Enfoque sócio-histórico-jurídico-penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994. p. 5 e ss.

[3] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. O juiz, o Direito Penal racional e a atualidade frente ao chamado combate à corrupção. Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 17, nº 43, p. 81-91, Abril-Junho/2016. p. 83

[4] CORRERA, Marcelo Carita. Crimes de sonegação fiscal e o mandado constitucional de criminalização. Revista do Curso de Direito da UNIFOR-MG, Formiga, v. 11, nº 2, p. 223 – 241, jul/dez 2020. p. 233.

[5] TONIN, Alexandre Baraldi. Compliance: Uma visão do Compliance como forma de mitigação de responsabilidade. Revista dos Tribunais, v. 983. Ano106. p. 265-288. São Paulo, 2017. p. 266.

[6] ANSELMO, Márcio Adriano. Compliance, direito penal e investigação criminal: uma análise à luz da ISO 19600 e 37001. Revista dos Tribunais, v. 979, ano 106. p. 53-67. São Paulo: Ed RT, 2017. p. 59

[9] Disponível em: https://www.transparency.org/en/cpi/2021. Acesso em 29 ago. 2022.

[10] Disponível em: https://www.transparency.org/en/cpi/2020. Acesso em 29 ago. 2022.

[11] MORO, Sérgio Fernando. Considerações sobre a operação Mani Pulite. R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 56-62, jul./set. 2004. passim.

[13] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8137.htm. Acesso em 02 jan. 2023.

[14] CARLSON, John Carlson; YEOMANS, Neville. Whither Goeth the Law – Humanity or Barbarity. Disponível em: http://www.laceweb.org.au/whi.htm. Acesso em 02 jan. 2023.

[15] KITTRIE, Orde F. Lawfare: Law as a weapon of war. Oxford: Oxford Scholarship, 2016. p. 04/05.

[16] ZANIN, Cristiano; MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo, Editora Contracorrente, 2019. p. 24.

[17] ZANIN, Cristiano; MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo, Editora Contracorrente, 2019. p. 24.

[18] Dieese. Implicações Econômicas Intersetoriais da Operação Lava Jato. Disponível em: https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/impactosLavaJatoEconomia.html. Acesso em 02 jan. 2023.

[19] PIERUCCI, Frédéric; ARON, Matthieu. Arapuca Estadunidense. Uma Lava Jato Mundial. Trad. Viviane de Castilho Moreira. Curitiba: Kotter Editorial, 2019. passim.

[20]Disponível em: https://www.justice.gov/criminal-fraud/statutes-regulations. Acesso em 29 ago. 2022

[22] ZANIN, Cristiano; MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo, Editora Contracorrente, 2019. passim.

[23] PIERUCCI, Frédéric; ARON, Matthieu. Arapuca Estadunidense. Uma Lava Jato Mundial. Trad. Viviane de Castilho Moreira. Curitiba: Kotter Editorial, 2019. passim.

Autores

  • é professor de Processo Penal da PUC-SP.

  • é doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em Direito Penal pela PUC-SP, especialista em Direto Penal e Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e em Direito Tributário pela PUC-SP, professor Convidado da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e procurador Federal em São Paulo.

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