Opinião

Direito regulatório-setorial das telecomunicações

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15 de janeiro de 2023, 6h15

O fenômeno jurídico/político constitucionalizado da regulação (em sua pluralidade de conceituações), ampla ou restrita, de setores da economia interpretados e entendidos como "essenciais", evidencia no momento presente uma modalidade moderna de atuação administrativista, pelos reguladores, na seara das infraestruturas em utência pelos regulados, tendentes a uma "composição de forças" entre o Estado, a iniciativa privada, os consumidores/usuários etc., relativas a "tomadas de decisões".

Por uma das vertentes conceituais, relevante é a menção de que:

"Infraestruturas e utilities são sistemas complexos cujo desenvolvimento deve ser acompanhado de regulação apropriada. A regulação de infraestruturas e utilities é uma função que visa orientar a conduta das entidades que operam tais serviços. A regulação apresenta muitas repercussões para o funcionamento dos sistemas de infraestrutura e utilities, incluindo a determinação de preços […], a realização de investimentos em ativos […], a intensidade da competição entre provedores de serviços de infraestrutura e utilities e as condições de acesso aos serviços para os usuários. Bons sistemas regulatórios resultam em infraestrutura e utilities de qualidade a preços acessíveis, enquanto sistemas regulatórios ruins levam a serviços com preços incorretos, sub ou superinvestimento e distribuição injusta de custos e benefícios por toda a sociedade" [1].

A partir da regulamentação (modalidade de regulação), pode haver o surgimento de regimes jurídicos diversos a enquadrar as atuações conjunturais que se realizam por intermédio da exploração comercial das infraestruturas. Assim, consoante à menção anterior, também a seguinte se realça:

"[…] é importante destacar que a infraestrutura pressupõe uma grande variedade de ações e intervenções humanas que são realizadas com um objetivo primordial: alcançar um benefício social e ambiental para a comunidade, que se baseia na necessidade de satisfazer uma necessidade básica que, posteriormente, transforma-se num capital social fixo que se integra ao patrimônio [al acervo] do Estado ou dos particulares" [2].

É in situ o anseio de estabilidade — e não de uma aniquilação das liberdades [3] e prerrogativas oportunizadas pela "livre iniciativa" mercadológica [4] — na fruição de elementos ditos "essenciais" um dos motes do grande leque de discussões acadêmicas no que se refere a regulação.

A construção de um "estatuto epistemológico" [5] para o fenômeno regulatório perpassa, portanto, por tais discussões e variações discursivas a influir funcionalmente tal debate:

"Regulação, muitas vezes confundida com regulamentação, refere-se aos mecanismos que estabelecem e mantêm equilíbrios de longo prazo em determinados setores entre o princípio da concorrência e outros princípios, como prevenção de riscos, acesso a bens essenciais, incentivo à inovação, a proteção das poupanças [l'épargne] ou das liberdades. Estas preocupações encontram-se em setores tão diversos, como as telecomunicações, energia, finanças, […]. A regulação assume funções que a concorrência não pode assumir, como a prevenção do risco sistêmico. Nisso, é claro, todo o sistema econômico, financeiro e técnico está envolvido ou mesmo regido por regulação, mas acima de tudo todos são diretamente protegidos por ela, na medida em que a regulação equilibra notavelmente o poder da concorrência e a necessidade de preservar as liberdades […]. Assim, é em termos de força, poder e liberdade que as técnicas de regulação são postas em prática. É por isso que a figura do regulador está no centro das três disciplinas, quais sejam economia, direito e ciência política. A regulação deve construir um equilíbrio justo em mercados abertos, preservando a coexistência da eficiência do mercado e dos bens comuns e direitos fundamentais" [6].

Portanto, em suma, "as telecomunicações constituem um conjunto de atividades propícias à análise do fenômeno econômico e jurídico da regulação" [7], justamente porque "mesmo após a renúncia à exploração das redes de telecomunicações [i. e., 'liberalização'], os governos mantêm, em geral, um papel regulador, visando que a prestação dos serviços seja feita de acordo com o interesse público percebido em nível nacional" [8], por intermédio intervencionista de autoridades/agências reguladoras, por exemplo.

O pesquisador congolês Kodjo Ndukuma Adjayi também pontua o impulsionamento da desestatização do setor de telecom (repise-se, da "abertura" para a exploração por agentes econômicos nacionais e, principalmente, multinacionais) junto às perspectivas de reforma administrativa, pari passu ao início da "era" da popularização da internet ao público em geral:

"Na origem da Internet, as telecomunicações passaram estritamente pelo regime de serviços públicos de direito administrativo, antes de integrarem os regimes liberais da economia de mercado. Ao que tudo indica, as medidas de liberalização vão ao encontro da 'moda da modernização administrativa' ou mesmo dos fundamentos da 'reforma administrativa do Estado'. O objetivo imediato e duradouro era regular a abertura dos mercados de telecomunicações anteriormente compartimentados. 'Desregulamentação' ou 'desregulação' refere-se à reforma das normas e instituições tradicionais de direito público, tendo transformado os monopólios regulamentários num sistema de mercado liberalizado, colocado sob a autoridade de um regulador estatal" [9].

O moderno (por assim dizer) panorama brasileiro [10] na seara foi consolidado a partir da estatuição da "Lei Geral de Telecomunicações" (com fortíssima ênfase nas questões atinentes à infraestrutura [11]), precedida de uma mudança substancial de paradigma no Direito Administrativo brasileiro, derivada justamente da evolução do debate das teorias regulatórias.

 


[1] Alberto Asquer. Regulation of Infrastructure and Utilities: Public Policy and Management Issues. Londres: Springer Palgrave Macmillan, 2017. [ebook] [tradução livre]

[2] Alfonso Buteler. Bases para el derecho a las infraestructuras. In: Jaime Rodríguez-Arana Muñoz et. al. (coords.). El derecho administrativo de las infraestructuras. Cidade do México: Tirant lo Blanch, 2022. p. 62 [tradução livre]

[3] "Definir liberdade não é tarefa simples e os debates a respeito são milenares". (Virgílio Afonso da Silva. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Edusp, 2021. p. 165).

[4] "O sistema de produção capitalista é baseado na formação da economia de mercado. Portanto, a economia de mercado também é um sistema em si que funciona como um coordenador de pessoas, atividades e empresas por meio de um sistema de preços". (José Miguel de la Calle. Tratado General de Libre Competencia: análisis jurídico y econômico. Bogotá: Tirant lo Blanch, 2022. p. 173 [tradução livre]).

[5] Expressão "statut épistémologique" utilizada por Romain Rambaud. L'institution juridique de régulation: recherches sur les rapports entre droit administratif et théorie économique. Paris: L’Harmattan, 2012. p. 21.

[6] Marie-Anne Frison-Roche. Les 100 mots de la régulation. Paris: Presses Universitaires de France, 2011. [ebook] [tradução livre]. Vide, também, Marcio Iorio Aranha (Manual de direito regulatório: fundamentos de direito regulatório. Brasil: edição independente — Laccademia, 2019. p. v, 9): "A ideia de igualdade de condições concorrenciais permeia o âmago de atuação subsidiária do Estado Regulador na economia e, portanto, revela que o pressuposto do Estado Regulador não é propriamente a defesa do mercado, mas de algo mais subjacente de formato jurídico, repita-se, o direito à igualdade de condições concorrenciais. Esta característica distintiva do Estado regulador não esgota, todavia, todo o significado da regulação. Não é incomum tomar a parte pelo todo e chegar à conclusão de que os pressupostos do Estado Regulador, como identidade político-jurídica do fenômeno multifacetado da regulação moderna, esgotariam o significado da regulação em si mesma. […]. Atente-se, todavia, desde já para o fato de que a centralidade do direito à igualdade de condições concorrenciais para o Estado regulador não significa que o fundamento da regulação se resuma a isso. Para além do direito à igualdade, o conjunto dos direitos fundamentais apresenta-se como a razão de ser da regulação".

[7] Mwayila Tshiyembe. Droit international des espaces et des télécommunications. Paris: L'Harmattan, 2014. [ebook] [tradução livre]

[8] Mwayila Tshiyembe. op. cit. [tradução livre]

[9] Droits des télécoms et du numérique: profil africain et congolais, prospective comparée d'Europe et de France. Paris: L'Harmattan, 2019. p. 23 [tradução livre]

[10] Doutrinariamente, Cfr., dentre muitos outros excelentes, 1) Marcio Iorio Aranha. Direito das telecomunicações e da radiodifusão: histórico normativo e conceitos fundamentais. Brasil: edição independente – Laccademia, 2021; 2) Marcio Iorio Aranha. Telecomunicações. In: Juliano Heinen (org.). Direito da Regulação. Salvador: Juspodivm, 2021; 3) Floriano de Azevedo Marques Neto/Milene Louise Renée Coscione. Coleção Direito Econômico: telecomunicações. São Paulo, Saraiva, 2011; 4) Cibelle Mortari Kilmar/Irene Patrícia Diom Nohara. Coleção Soluções de Direito Administrativo: Agência Nacional De Telecomunicações (Anatel). São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2020; 5) Exposição de Diogo Rosenthal Coutinho e Matheus Piva Adami no webinar "Regulação de Telecomunicações" (ESA OAB-RJ, Youtube, 2020)

[11] "[…] a prestação de serviços de telecomunicações exige a utilização de determinados recursos. Alguns são comuns a todas as atividades de rede, pois se referem a terrenos públicos ou privados que devem necessariamente ser ocupados para a implantação física de redes de telecomunicações, como seriam para redes de eletricidade ou gás, ou para construir suas próprias redes rodoviárias ou ferroviárias. Além disso, as atividades de telecomunicações exigem o uso de recursos específicos: recursos alfanuméricos que permitem identificar os diferentes usuários e as diferentes operadoras e suas redes, independentemente da tecnologia utilizada e, de forma muito peculiar para o caso específico de uma tecnologia específica —radiocomunicações —, o chamado espectro radioelétrico [eletromagnético], o puro éter através do qual as ondas de rádio são transmitidas". (Matilde Carlón Ruiz. Bienes públicos y telecomunicaciones. In: Julio González García (dir.). Derecho de los Bienes Públicos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2015. p. 1739 [tradução livre])

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