Opinião

Constitucionalismo defensivo e ofensivo

Autor

  • Thiago Aguiar de Pádua

    é doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) autor dos livros O Common Law Tropical: o Caso Marbury v. Madison Brasileiro (Ed. D’Plácido 2023 no prelo); Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido 2021); A Balzaquiana Constituição (Trampolim Jur. 2018) ex-assessor de ministro do STF e advogado em Brasília e Santa Catarina.

14 de janeiro de 2023, 11h46

Se há um tema batido e debatido, volvido e revolvido como o maior lugar comum de todo o reino do Direito Constitucional, esse tema certamente é a classificação das constituições, quando os alunos do jardim de infância constitucional se deparam com diversas propostas de classificação das constituições.

Desfilam pelos manuais da literatura jurídica diversas referências sobre classificações quanto à estabilidade (imutáveis, super rígidas, rígidas, semiflexíveis e flexíveis), quanto à origem (outorgadas, promulgadas, cesaristas e pactuadas), quanto à forma (não escritas e escritas), quanto ao modo de elaboração (históricas e dogmáticas), quanto ao conteúdo (materiais e formais), quanto à extensão (analíticas e sintéticas), quanto à finalidade (constituição-garantia, constituição-dirigente e constituição-balanço), dentre tantas outras.

Sem embargo da maior ou menor importância destas e de outras classificações, existe uma proposta classificatória que tem sido negligenciada por ser pouco divulgada ou conhecida, esboçada pelo professor Roberto Gargarella[i], autor que menciona uma classificação quanto à preocupação sobre a defesa ou ataque contra agressões, dividindo-as em dois tipos: 1) constituições ofensivas; e, 2) constituições defensivas.

Gargarella toma por base uma importante constituição, surgida após uma prévia experiência autoritária das mais trágicas. Menciona escrever em torno da “Constituição italiana de 1947 que, como outras, possui enorme poder para nos fazer pensar sobre algumas chaves fundamentais do constitucionalismo”.

A par desta observação, prossegue dizendo que existem muitas maneiras possíveis de “entender e classificar as constituições”, embora nenhuma proposta deva ser concebida como única, nem imaginada como excludente de outras classificações possíveis. Busca, com isso, pensar as “chaves de leitura e compreensão” das constituições dos diversos países.

Menciona inclusive que a classificação pensada “agora é a que propõe distinguir entre constituições defensivas e ofensivas. As constituições ofensivas típicas, pode-se dizer, são aquelas que surgem após uma guerra ou revolução vitoriosa — a França de 1791 poderia ser um exemplo. Tais Constituições chegam para mudar o estado das coisas, estabelecendo as bases da nova sociedade”.

Neste sentido, prossegue observando que “a Constituição italiana de 1947, como a dos Estados Unidos de 1787 ou a Lei Fundamental alemã depois do nazismo, são constituições do medo”, vale dizer, são “constituições que nascem como produto do pânico do passado, ou são o resultado de uma catástrofe ou uma série de acontecimentos trágicos que querem deixar definitivamente para trás. O importante nesses casos, menos do que construir o novo ou imaginar o possível ou desejável, seria evitar que o horror que se reconhece no passado volte a ocorrer”.

Em complemento, pontua: “No caso dos Estados Unidos, o horror teve a ver com o tempo das facções, que James Madison identificou no The federalist” número 10 como o principal obstáculo que se queria enfrentar através da Constituição. Supunha-se — como Madison reconhece no referido texto — que as causas das facções estavam enraizadas na natureza humana e, portanto, não poderiam ser eliminadas. O que se buscava, então, era através de todos os meios eliminar seus efeitos. No caso da Itália, como no da Alemanha, o que se buscava por todos os meios era eliminar para sempre o risco de que o nazifascismo pudesse se reimpor. Mais uma vez, e como no caso dos Estados Unidos, o que se buscou foi colocar toda a estrutura constitucional a serviço daquele objetivo fundamental, relacionado ao passado trágico: que isso não volte a acontecer”.

O raciocínio se complementa quando o maestro argentino menciona: “o que os italianos temiam e queriam evitar através do constitucionalismo estava fundamentalmente relacionado com o passado fascista. Mas, no entanto, aquele "pesadelo maior" que eles queriam evitar explicava e resumia toda uma série de outros medos presentes na mesma cena. Eu mencionaria pelo menos mais dois "medos", ligados ao "momento constitucional" italiano de 1947: um é — junto com o medo do retorno de um líder autoritário todo-poderoso — o medo das "massas desencadeadas" — ou massas dispostas a impor sua vontade a todo custo, destruindo as liberdades de todos, e alinhadas atrás desse líder”.

Em linhas gerais, Gargarella ainda observa que os constitucionalistas americanos sintetizaram muito bem essa dupla fonte de medo, falando da rejeição simultânea da “tirania” (ou abuso de um) e da ‘anarquia’ (o abuso de ‘muitos’).

Diante dos riscos como os que foram resumidos, a Constituição italiana teria procurado se estruturar em vários níveis e de várias formas, num “pacto defensivo”. E, com isso, uma constituição defensiva usa as energias constitucionais para evitar, sobretudo a repetição do infortúnio autoritário do passado, enquanto a constituição ofensiva equivale a uma tentativa de criar o novo, fundamentalmente despreocupada com o velho que se supõe não mais se repetir.

Conclui Gargarella: “A classificação, como todas elas, ajuda a chamar a atenção para algumas questões, algumas ênfases ou acentos (coloque aí "constituições aspiracionais", pode-se dizer também que são todas, mas usamos o termo porque nos acrescenta algo), a dos EUA ou da Itália ficaram na defensiva, porque estavam acima de tudo olhando para trás, vendo garantias para evitar o pânico anterior. Já as ofensivas olham pra frente basicamente, pois o passado ‘acabou”.

Com efeito, segundo a referida classificação, podemos afirmar sem receio de errar que a Constituição brasileira de 1988 é uma “constituição defensiva”, pois surgiu após longos anos de trevas e ditadura civil-militar, que se valeu sistematicamente de tortura e terrorismo de estado a partir de 1964, e que usou, inclusive, bombas napalm de maneira cruel e sanguinária contra suas vítimas[ii], além de dizimar os povos indígenas[iii], realizar perseguição de servidores públicos, juízes e ministros do STF[iv], calando a imprensa e internando em manicômios os que contestavam o regime como se fossem doentes mentais[v], sem contar, claro, a tortura de crianças e estupro de mulheres[vi], num passado que jamais pode se repetir (nem como farsa; muito menos como tragédia).

Cabe ao Supremo Tribunal Federal, a propósito, a defesa intransigente da Constituição Federal, notadamente quando ela mesma, a constituição, é uma constituição de caráter defensivo, estabelecedora do inegociável rechaço contra a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, circunstância que “constitui crime inafiançável e imprescritível” (artigo 5º, XLIV), ou, ainda, demarcando a “defesa do Estado democrático” como uma das principais atribuições do Conselho de Defesa Nacional (artigo 91, IV).

Em 2018, quando o deputado federal Eduardo Bolsonaro disse que bastava “um cabo e um solado para fechar o STF”, começaram ataques sistemáticos ao Estado Democrático de Direito e às instituições que duraram longos 4 anos, com o sistemático incentivo e naturalização de pedidos de intervenção militar e decretação de um “novo AI 5”, com tais “avisos” e “mensagens” espalhados em cartazes nas “manifestações” de caráter antidemocrático disfarçados de liberdade de reunião e expressão.

O ponto mais baixo de tais comportamentos, infelizmente, ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023, quando o presidente Lula precisou decretar intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, e o Supremo Tribunal Federal acabou determinando o afastamento do governador do DF com a decretação da prisão do secretário de Segurança Pública e do comandante-geral da PM-DF, primeiro por meio de decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, referendada pelo plenário, após a invasão e lamentável destruição das sedes dos três poderes da república, com um saldo de mais de mil pessoas presas em flagrante delito, grupos que há meses se reuniam acampadas e financiadas nas portas dos quartéis, contestando o resultado das eleições e as urnas eletrônicas, com pedidos de golpe de estado através de intervenção militar. Uma cambulhada de crimes que foram sendo indevidamente tolerados.

Por mais surreal que pareça, após diligência investigativa de busca e apreensão, achou-se até mesmo na residência do ex-ministro da Justiça do ex-presidente Jair Bolsonaro, então secretário de Segurança, uma minuta de decretação de estado de defesa para fraudar as eleições, com a projetada possibilidade de prisão do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Alexandre de Morais, por sua corajosa e intimorata defesa do Estado Democrático de Direito e das instituições democráticas.

Contudo, os criminosos, sejam financiadores, executores e líderes intelectuais, não contavam com o fortalecimento do espírito de união e reconstrução que começa a recuperar as instalações destruídas, pois a democracia brasileira vem sendo amadurecida desde 1988 para que suas raízes sejam fortes o suficiente para resistir e não tergiversar, algo que somente se torna possível pela conjunção de 3 eixos fundamentais, como uma espécie de metáfora intuída por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer ao tracejar os primeiros esboços da praça dos 3 poderes: 1) uma Constituição Defensiva; 2) Juízes como Alexandre de Morais e os demais ministros do STF e do TSE, essencialmente dispostos a defender a Constituição; e, 3) repúdio popular massivo à aventuras ditatoriais e golpistas. A Constituição é o jardim da democracia, o qual devemos regar todos os dias, no espírito do Constitucionalismo Defensivo de 1988.


[i] Todas as menções à classificação esboçada pelo prof. Roberto Gargarella são retiradas, em tradução livre, da fonte ora mencionada: GARGARELLA, Roberto. La Constitución italiana de 1947: Constitucionalismo defensivo y Constitucionalismo ofensivo. Em: Seminario de Teoría Constitucional y Filosofía Política, de 11 de fev. 2016.

[ii] Confira-se o texto de Anne Vigna, Luciano Onça, Natalia Viana, da Agência Pública: "Força Aérea utilizou napalm contra guerrilha no Vale do Ribeira em 1970", de 26/08/14.

[iii] Veja-se, entre outros, o texto de Rubens Valente, “História de sangue e resistência indígena na ditadura”. São Paulo: Cia das Letras, 2017.

[iv] Confira-se, também entre outros, o livro de Felipe Recondo, “Tanques e togas: O STF e a ditadura militar”. São Paulo: Cia das Letras, 2018.

[v] A esse propósito, a terrível documentação contida no documentário “Memória da Ditadura: Caminhos da Reportagem", de Ana Graziela Aguiar, Mariana Fabre, Beatriz Abreu e outros, TV Brasil, 2012.

[vi] Dentre outras trágicas histórias praticamente esquecidas, o caso de Carlos Alexandre Azevedo, que foi torturado durante a ditadura militar brasileira quando tinha apenas um ano e oito meses de idade. Os torturadores foram anistiados, mesmo sendo crime contra a humanidade contrário ao Pacto de San José.

Autores

  • Brave

    faz pós-doutoramento em Direito (Università degli Studi di Perugia, Univali e UnB). É doutor e mestre em Direito. Professor do programa de mestrado em Direito do UDF (Centro Universitário do Distrito Federal). Professor da pós-graduação em "Direito e Poder Judiciário" da Escola Judicial de Goiás do TJ-GO. Membro do CBEC (Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais). Membro da Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal). Membro da ABPC (Associação Brasiliense de Processo Civil). Membro da ABrL (Academia Brasiliense de Letras). Ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Advogado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!