Opinião

Crimes contra o sistema financeiro nacional e gestão temerária

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14 de janeiro de 2023, 12h45

O crime em questão trata-se de delito contra o Sistema Financeiro Nacional, previsto na Lei nº 7.492/86. O delito de gestão fraudulenta de instituição financeira é precisamente tipificado no artigo 4° da referida lei, estabelecendo pena de três a 12 anos, e multa, sendo a gestão temerária tipificada no parágrafo único do mesmo artigo, estabelecendo, por sua vez, reclusão de dois a oito anos, e multa.

A ambiguidade conceitual entre o que seja gestão fraudulenta e gestão temerária é um dilema que não se exaure à mera análise da tipicidade, persistindo, assim, a necessidade de irmos à doutrina e à jurisprudência para compreendermos tais conceitos em seus limites de tipicidade estrita — o que por si já coloca em check a constitucionalidade do dispositivo legal, ante as exigências do princípio da reserva legal.

André Callegari afirma [1] que o artigo 4° da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, busca coibir a gestão fraudulenta, muito embora não se diga mais nada a respeito do que seja gestão fraudulenta, sendo um tipo penal amplíssimo, que permite abarcar uma série de condutas. Callegari afirma que é ainda pior a redação dada ao texto do parágrafo único do artigo 4°, vez que deixaria a mera discricionariedade do juiz a compreensão do que seja ou não, no caso concreto, uma efetiva gestão temerária, ainda que este juiz não possua qualquer conhecimento de operações do sistema financeiro.

Contudo, apontada a ambiguidade e a vagueza conceitual do que é juridicamente considerado como Gestão Fraudulenta e do que se compreende por Gestão Temerária, importa, também, definir desde logo o que se entende por instituição financeira. Neste ponto, o próprio legislador estabeleceu no artigo 1° da lei 7.492/76 que a Instituição financeira é a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiro de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação intermediação ou administração de valores mobiliários.

Cabe destacar, também, que o delito de gestão temerária é classificado como crime próprio, sendo somente aplicada responsabilidade penal, de acordo com a legislação vigente [2], ao controlador e aos administradores de instituições financeiras, ou aos assim considerados os diretores e gerentes, além de, por equiparação, o interventor, o liquidante e o síndico. O delito admite coautoria e participação delitiva.

A conduta de gestão temerária, por sua vez, é aquela excessivamente arriscada, porém, o risco não deve ser avaliado conforme a ótica do homem comum, mas sim segundo a visão vigente no próprio mercado financeiro, ultrapassando os limites da prudência, uma conduta demasiada afoita e desidiosa, assumindo riscos de forma desmedida.

Neste ponto, cabe explicar que o risco, por si só, não deve ser analisado genericamente, haja vista que o risco, por si, é natural a relação típica do mercado financeiro. Contudo, o risco aqui relevante para o tipo penal em questão deve ser medido pela ótica da teoria da imputação objetiva.

Como explica André Callegari [3]"o critério mais adequado para avaliar se houve conduta que caracteriza a gestão temerária é a utilização da teoria da imputação objetiva, é dizer, através da estrutura dogmática avaliar se a conduta do gestor se enquadra ou não dentro do risco permitido". Dessa forma, o risco permitido será superado quando violados os atos normativos do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional, mas não se limitando a essas hipóteses.

Explica Camila Velano e Rafael Porto [4] que, doutrinariamente, há divergência sobre a necessidade da habitualidade delitiva ou não para a efetiva configuração do delito de gestão temerária. Há jurisprudência no sentido de afirmar que bastaria um único ato (STJ REsp 200602086152), embora exista, também, quem defenda que o verbo "gerir" exige um conjunto integrado de ações de um mesmo sujeito ou de um grupo de sujeitos que dolosamente agem para o resultado, e ainda há quem diga que o crime se trata de crime habitual impróprio, vez que um único ato é necessário à concretização do delito, mas a reiteração da conduta não consistiria em pluralidade de crimes.

De modo diverso, há quem afirme se tratar de crime de mera conduta, inexistindo a necessidade do resultado para tornar possível um juízo de tipicidade subjetiva, de modo que a existência do dano concreto estaria desprezada. Contudo, por se tratar de crime material, não admite-se a tentativa.

Há divergência quanto à natureza do crime. Parte da doutrina entende como crime de perigo abstrato, parte como crime de perigo concreto. Aos autores que subscrevem o presente texto, parece-nos tratar de crime de perigo abstrato, pois, como bem leciona Luciano Feldens e Thiago Zucchetti Carrion, é o risco de dano ao sistema financeiro nacional o fundamento do delito, requisito necessário para que a conduta adquira contornos típicos.

Além do mais, explica Gamil Foppel [5], que a necessidade da utilização de crimes de perigo abstrato é a justificada através da importância dos bens jurídicos que neles são resguardados. Os bens jurídicos são tão importantes que o legislador não aguarda a ocorrência de uma lesão para que possa intervir. São os delitos que resultam da impaciência do legislador; nestes crimes, o bem jurídico é de tamanha importância que o legislador pune pela produção de um perigo. Não se exige que ocorra, de forma efetiva, um perigo, afastando do Direito Penal o princípio da ofensividade, gerando complicações dogmáticas quanto à adequação do delito às exigências do Direito Penal moderno.

Quanto ao elemento subjetivo do tipo, muito embora a gestão temerária seja definida doutrinariamente como a gestão imprudente, o elemento normativo da imprudência, em questão, não se confunde com a imprudência legal típica dos crimes culposos, nos termos do artigo 18, inciso II do Código Penal. O delito de gestão temerária somente se verifica quando existir o dolo do agente, seja na modalidade direta ou eventual. Há, em termos de tipicidade subjetiva, a assunção propositada e consciente da conduta que, por si só, já causa insegurança ao Sistema Financeiro Nacional enquanto bem jurídico.

Luís Greco [6], por sua vez, polemiza a questão da natureza do crime, nos lembrando que o problema dos crimes de perigo abstrato pouco tem a ver com a questão do bem jurídico que, por sua vez, é o ônus argumentativo que justifica a norma penal. A legitimação dos crimes de perigo abstrato não deve ser discutida à luz das considerações do bem jurídico, e sim sobre outro tópico, que é a estrutura do delito. Afirma Greco que ao tratar do bem jurídico está-se diante da pergunta: o que proteger? Contudo, ao tratar da estrutura do delito, o problema já não é mais sobre o que proteger, e sim como proteger?  e nisso consiste o ceticismo quanto à constitucionalidade do delito em questão.

 


[1] Gestão Temerária e o Risco Permitido no Direito Penal, Revista dos Tribunais nº 837, julho de 2005, Doutrina Penal, Terceira Seção, p. 409-416.

[2] Definição dada pelo artigo 25 da Lei 7.492/86

[3] Callegari (op. cit., 2005)

[4] VELANO, Camila Franco e Silva, PORTO, Rafael Vasconcelos. O Elemento Subjetivo no Delito de Gestão Temerária de Instituição Financeira

[5] HIRECHE, Gamil Foppel El. Notas Críticas Acerca da Tipicidade nos Delitos Penais Econômicos: o viés concreto de análise sobre delito de gestão temerária no artigo 4°, parágrafo único, da Lei 7.492/86, in Temas de de Direito Penal e Direito Processual Penal  Estudos em Homenagem ao Juiz Tourinho Neto. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 274-275.

[6] GRECO, Luís. Princípio da Ofensividade e Crimes de Perigo Abstrato  Uma Introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 49, 2004, p. 89-147.

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