Opinião

Em defesa de uma política de equidade tributária do ponto de vista racial

Autor

  • Cleucio Santos Nunes

    é doutor em Direito do Estado pela UnB (Universidade de Brasília) mestre em Direito Ambiental pela UniSantos professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e da graduação no Centro Universitário de Brasília (Ceub) Ex-Conselheiro do Carf e advogado.

14 de janeiro de 2023, 11h15

No Brasil da atualidade, não é mais surpreendente para ninguém dois consensos: o primeiro, que o país padece do que se convencionou chamar de racismo estrutural; o segundo, que a matriz tributária brasileira é injusta com os mais pobres.

A locução racismo estrutural, cuja ideia central foi importada da sociologia, pode significar que as relações de desigualdade racial estão nas estruturas da sociedade, de modo a oferecer pré-condições mais vantajosas a brancas e brancos e se negar essas mesmas pré-condições aos afrodescendentes. Basta passar os olhos nos espaços do alto escalão de poder da República ou nas chefias dos grupos econômicos privados para se constatar quase nenhum negro nesses lugares. Por outro lado, nos serviços de menor renda e prestígio social — sem querer depreciar qualquer tipo de ocupação — vê-se muito mais homens e mulheres negras trabalhando.

Alguns exemplos dizem muito. De acordo com o Ipea, 73,8% das pessoas em situação de extrema pobreza, ou seja, com renda mensal inferior a R$ 67, é de mulheres negras, enquanto as mulheres brancas são 47,5% nessa mesma situação. Conforme o IBGE, em 2021, brancos ganharam R$ 3.099 por mês em média, contra R$ 1.764 dos pretos e R$ 1.814 dos pardos. Segundo ainda o referido instituto, no mesmo ano, 43,0% dos brasileiros se declararam como brancos, 47% como pardos e 9,1% como pretos. Somando os percentuais de pretos e pardos, tem-se que 56,1% da população brasileira se declara preta ou parda. No entanto, registre-se mais uma vez, é visível que pretas e pretos não estão proporcionalmente representados nos poderes da república (Legislativo, Executivo e Judiciário) e nem nos cargos de chefia das empresas estatais ou privadas.

Sabemos que para se obter qualificação profissional para ocupar espaços decisórios de poder político e econômico, são importantes, desde a infância, estrutura familiar adequada, acesso à saúde e educação de qualidade, segurança alimentar, moradia digna etc. Por outro lado, esses direitos básicos foram historicamente negados ao povo afrodescendente no Brasil, diante da falta de políticas públicas sociais corretivas dos efeitos da escravidão. Hoje se sabe que a omissão do Estado no amparo aos escravos libertos e seus descendentes imediatos não se deveu a uma simples negligência, mas a uma estratégia cruel de se dizimar essa população por meio de uma penalidade silenciosa, qual seja, impedimento de condições básicas para o exercício de uma vida digna. Restou ao povo afro-brasileiro as inúmeras dificuldades de se sobrevier nas periferias das grandes cidades, ou no trabalho no campo sem direitos reconhecidos. Um dos mais relevante resultados desse estado de coisas foi a pobreza da população negra, passando de geração em geração. Todos esses fatores deveriam ser explicados amplamente como uma espécie de prestação de contas à geração atual.

Exatamente em razão dessa falta de políticas públicas inclusivas do povo afro, se cultivou no Brasil uma forma de racismo durante todo o século XX, e que ainda se mantém, apesar de alguns avanços antirracistas nos últimos anos. Trata-se do racismo velado, aquele em que a maioria da população não se reconhece racista e a palavra racismo chega a ser um tabu. Por isso, muitas pessoas aceitam, sem questionar, o fato de que nos espaços de poder citados a ausência de afrodescendentes é normal, pois sempre foi assim.

Felizmente, nas duas últimas décadas, alguns poucos avanços ocorreram, tais como a criação de uma Secretaria Nacional de igualdade Racial (com status de Ministério), o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Cotas no serviço público, mas é necessário ir além.

Voltando-se ao ponto, a falta ou deficiência de determinadas pré-condições para uma vida próspera, conduz à perpetuação da miséria e da pobreza com todas as suas consequências nefastas. Não por acaso, tais flagelos atingem diretamente, em maior proporção, a população negra. Daí a necessidade de políticas públicas reparadoras do problema.

Outro consenso que se formou no país é que a matriz tributária nacional é regressiva, ou seja, a maior parte da arrecadação dos tributos se concentra sobre o consumo de bens e serviços e menos sobre renda e propriedade. Como os tributos sobre o consumo não distinguem rendas, porque estão embutidos nos preços dos produtos, o resultado é que a carga tributária pesa mais fortemente sobre quem tem menos, acirrando a concentração de renda em poder dos mais ricos.

Quando esses dois problemas estão combinados, isto é, racismo estrutural e regressividade tributária, os efeitos socioeconômicos são deletérios para toda a sociedade e não apenas para o grupo diretamente atingido. Todos sabem que aumentando o poder de compra dos mais pobres também se eleva a produtividade e desenvolvimento econômico. Considerando que a população negra no Brasil é a mais atingida pela pobreza, toda ação pública que vise reduzir esta chaga social será bem-vinda, pois, consequentemente, auxilia no combate ao racismo.

Assim, a política tributária pode ser uma aliada forte na luta antirracista, desde que se paute por critérios equitativos, observando sempre certos fundamentos constitucionais. Um desses critérios é a devolução dos tributos para população de baixa renda. Vejamos por quê.

Desde 2004, tramitam no Congresso Nacional, PECs visando reformar o sistema tributário. Em geral, tais propostas giram em torno da mesma temática, que é a simplificação do sistema. Realmente, o regime tributário brasileiro não resolveu muito bem a sua relação com o federalismo, razão pela qual, só de ICMS, temos 27 leis e de ISS, mais de 5.000. No âmbito da União, os regimes do IRPJ, CSLL, PIS/Cofins e IPI são cansativamente complexos, demandando esforços significativos em atividades-meio até para as grandes corporações. Daí por que, é urgente uma reforma tributária simplificadora, o que traria mais segurança e economicidade ao ambiente de negócios.

Embora a simplificação do sistema seja uma medida urgente, torná-lo equitativo é uma exigência moral necessária, podendo-se começar pela regulamentação nacional da restituição dos tributos sobre o consumo para os mais pobres. Como dito acima e sabido por todos, o peso da tributação sobre o consumo não distingue classes sociais, mas os efeitos sobre as economias individuais são bem diferentes. Uma família com renda de R$ 1.818, isto é, 1,5 salários-mínimos, que adquire, parceladamente, um celular de R$ 1.500 para o trabalho, pagará de tributos embutidos cerca de R$ 597, ou seja, 39,80%, sem falar nos juros. O peso dessa tributação é bem diferente na compra do mesmo bem, pago à vista e com desconto, sobre uma renda familiar de R$ 36.360, equivalente a 30 salários-mínimos.

Por aí se vê a falta de equidade tributária ao se exigir igual quantia de tributos sobre o consumo entre rendas tão díspares. Por outro lado, diante de tantos compromissos para tornar a sociedade brasileira mais igualitária, não é plausível que se renuncie aos tributos sobre o consumo para todos, ricos ou pobres, diante do seu alto poder arrecadatório. Nem tem como, no ato da compra, investigar-se a renda pessoal dos consumidores para dosar uma carga tributária equitativa.

Por isso, uma solução sensata é devolver os tributos para quem precisa, isto é, a população mais pobre que, como visto — e não por mera coincidência — em sua grande maioria, são pretas e pretos. Essa política tributária nem necessita de alteração no texto constitucional, podendo ser regulamentada por lei complementar, por exemplo.

Voltando ao começo deste texto, o racismo, inclusive o estrutural, é incompatível como os objetivos da república fixados no artigo 3º da Constituição Federal e com a leitura moral de todo o texto da Carta Magna.

Portanto, diagnosticar que o racismo existe e combatê-lo é cumprir mandamentos constitucionais e não um debate ideológico. Pensar em políticas equitativas do ponto de vista racial pode ter início aumentando-se a renda da população mais pobre, composta majoritariamente por pretas e pretos. Se os brasileiros mais pobres, na sua grande maioria, são afrodescendentes, restituir os tributos do consumo a essa ampla camada da população permite que as pessoas utilizem esses recursos na própria subsistência. A tributação contemporânea não pode prescindir da equidade, o que significa, em linguagem simples: dar a cada um o que lhe cabe como medida de justiça.

P.S: em tempos de aperto orçamentário, uma medida razoável seria devolver os tributos sobre o consumo para os beneficiários do bolsa família e a União somente completaria a diferença até chegar nos R$ 600,00. Talvez, seja um caso a se pensar futuramente.

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    é doutor em Direito do Estado pela UnB, mestre em Direito Ambiental pela UniSantos, professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e da graduação no Centro Universitário de Brasília (Ceub), advogado e consultor jurídico.

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