Opinião

A "volta à vida" do artigo 309 por força da decadência do artigo 303, ambos do CTB

Autor

  • Paulo Roberto Santos Romero

    é promotor de Justiça titular do Jecrim de Belo Horizonte (MG) mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais ex-conselheiro do Conselho de Criminologia e de Política Criminal da Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais.

13 de janeiro de 2023, 6h13

1. Introdução e interposição do problema
Nos casos em que um condutor inabilitado lesiona, no trânsito, uma vítima que não representa em seu desfavor, surge uma pergunta: inviável o processamento do delito de lesões corporais culposas qualificadas, o crime de direção inabilitada, descartado em razão do conflito aparente de leis penais, deve "voltar à vida"? Para tentar solucionar o impasse hermenêutico, primeiro apresentarei seus delineamentos normativos, depois trarei a notícia da regra conhecida por "Wielderaufleben” para, em seguida, justificar e, finalmente, propor a solução dogmática inerente ao problema.

A Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (que "institui o Código de Trânsito Brasileiro" — doravante CTB) suscita várias controvérsias na práxis judiciária. Uma delas, irresolvida, versa sobre o concurso de leis penais [1] envolvendo a sobreposição do artigo 303, § 1º, c.c. o artigo 302, § 1º, inciso I (lesões corporais culposas praticadas, em via pública, por condutor de veículo automotor inabilitado), em detrimento do artigo 309 (condução inabilitada, com perigo de dano). É que as disposições que consubstanciam o primeiro delito exigem — para seu processamento criminal e por força do artigo 88 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995— a representação do ofendido (ou de quem possa substitui-lo), observado o prazo decadencial, nos termos do artigo 291, § 1º, do CTB.

Vide este exemplo: motorista inabilitado, embora transitando em velocidade compatível à máxima permitida para a via em 50 km/h, em ofensa à segurança das relações viárias, por pura imperícia, perde o controle de seu veículo e atropela um ciclista, seu amigo de infância, causando-lhe lesões corporais. Em nome da antiga amizade, o ofendido decide não processar o condutor do automóvel que, no acidente, fraturou-lhe um dos braços. A pergunta é: "desde que a vítima não oferte representação a tempo e modo em desfavor do agente inabilitado que lhe causou lesões corporais culposas qualificadas, todo fato restará impune, ou deverá ele responder, ao menos, pelo delito de direção inabilitada, cuja ação penal, com natureza pública incondicionada, tramita perante o Juizados Especiais Criminais?"

O gargalo está em que a resposta à indagação não é apodítica, considerando-se o arsenal dogmático regulador das relações determinantes e de suas respectivas regras de solução do concurso de leis penais. Com efeito, se, por um lado, a determinação da norma prevalente naquele complexo normativo não gera qualquer dificuldade (a ser resolvida pelos critérios norteadores das relações de especialidade entre leis penais [2], com descarte do artigo 309 em contrapartida à eficácia do artigo 303, § 1º c.c. artigo 302, § 1º, inciso I, todos do CTB), por outro lado, a falta de condição de procedibilidade, pela ausência de representação, gera embaraços que apenas podem ser equacionados à luz da "Wielderaufleben", manejado na penalística alemã.

2. Aplicação da "Wielderaufleben" na resolução do problema posto na ordem jurídico-penal brasileira
Praticamente desconhecido pela doutrina e jurisprudência brasileiras, a "Wielderaufleben" informa, em linhas gerais que, no concurso de leis penais, a norma sucumbente, que antes houvera sido descartada por força da aplicação daquela prevalente, "volta à vida", i.e., tem seus efeitos jurídicos restaurados, retornando à possibilidade de eclodir as consequências jurídicas do preceito incriminador que já não mais servia à regulação do fato [3]. Não existe, rigorosamente, óbice algum à transposição da "Wielderaufleben" para o campo dogmático-penal brasileiro. Pelos três seguintes motivos.

Ao revés do concurso de delitos — disciplinado pelos artigos 69, 70 e 71, todos do Código Penal —, o conflito de leis penais não é disciplinado normativamente: a doutrina e a jurisprudência é quem operam as regras do citado instituto. Assim, e diante do vácuo de referências seguras à solução da perplexidade acima exemplificada, tão corriqueira no foro criminal, a utilização da Wielderaufleben (a "volta à vida" da norma desprezada no conflito de leis penais) soa apropriada ao enfrentamento dos casos em que a vítima de lesões corporais culposas se lhe causadas, no trânsito, por condutor inabilitado, deixa de representar contra ele. Depois, porque o conflito de leis penais parte do fundamento da proporcionalidade. Este superprincípio informador de toda a ordem jurídica também irradia seus efeitos para a ambiência juspenal, inclusive vedando a proteção insuficiente de bens jurídicos relevantes ao convívio social harmônico. É equívoco conceber a segurança das relações viárias como interesse exclusivo de quem, v.g., teve os braços quebrados pelo velho amigo e que, em gratidão aos costumeiros churrascos de domingo, perdoa-lhe o atropelamento criminoso, não processado, por conseguinte, apenas pela falta de uma condição formal de procedibilidade. Ademais, sublinhe-se a dúplice natureza jurídica do concurso de leis penais: é tanto um problema dogmático [(i.e., a subsunção de uma ou mais condutas típicas a diversas disposições penais que se sobrepõem, total ou parcialmente, à candidatura de apreciação de seu desvalor: uma disposição excluirá a outra como decorrência do princípio do non bis idem (proibição de dupla valoração do mesmo fato)], quanto — e sobretudo, talvez — um feixe de critérios identificados à solução de casos concretos (seja por meio relações lógico-formais seja mediante o manejo de operações materiais, teleológicas ou valorativas, entre as disposições convergentes: apenas uma das disposições incriminadoras deve ser aplicada, qual seja, a que reconhece de forma mais ampla o desvalor ou o significado social do comportamento em exame) [4].

Quanto ao último motivo, mister se faz uma digressão. Duas teorias tentam explicar os problemas derivados do concurso de leis e da determinação legal e judicial da pena em casos concretos. Segundo a "teoria da absoluta exclusão delitiva", prestigiada na Espanha, o preceito derrotado no concurso de leis não gera efeito jurídico algum, porquanto totalmente absorvido pelo delito prevalente: o tipo incriminador preterido já não pode fundamentar a eclosão de quaisquer consequências jurídicas. Na contraface, há a "teoria da combinação" (Kombinationstheorie), amplamente adotada na Alemanha: dizendo o oposto da anterior, estabelece que, no concurso de leis, todos os preceitos resultam formal e materialmente infringidos, mesmo quando afirmada a existência de apenas um delito; portanto, admite os diversos efeitos residuais decorrentes do tipo desconsiderado, malgrado ele não conste na condenação (na declaração de culpabilidade, na "Schuldspruch") [5].

A cisma com a teoria alemã se erige diante daquilo que os seus críticos espanhóis designam por "efecto de cierre". É que na Kombinationstheorie mesclam-se, sobretudo, os "marcos penais" (i.e., os limites sancionatórios) de todos os tipos penais em tese infringidos; destarte, salvo a detecção, no concurso de leis, de um tipo privilegiado, aquele citado efeito opera no marco penal da mais grave sanção prevista: a pena a ser imposta jamais poderá ser inferior ao mínimo máximo cominado nas leis em disputa, independentemente de esse "maior mínimo" constar no preceito secundário da disposição descartada no conflito de normas [6]. Para o caso ora examinado, tem-se que o mínimo cominado à direção inabilitada é de seis meses de detenção, ou multa, menores que o piso estipulado às lesões corporais culposas qualificadas pela desvalorização das relações de segurança viárias, punidas com oito meses de detenção. Esse, pois, o mais grave mínimo extraível da combinação havida entre os citados preceitos.

Além disso, a hipótese de "volta à vida" do artigo 309 do CTB encontra amparo no rol de possibilidades de aplicação do instituto, que não incide indiscriminadamente no Direito Penal alemão: os "efeitos residuais" próprios do delito ressurrecto sempre indagam o motivo-fundamento para a inaplicação da norma prevalente, como meio de evitar confusão entre problemas alusivos à tipicidade com aqueles genuinamente respeitantes ao concurso de leis. A propósito, GARCÍA ALBERO7 anota:

"El problema se circunscribe por ello a la incidencia que la presencia de causas personales de exclusión de pena y de levantamiento de pena (“Strafausschliessungs” und “Strafaufhebungsgrunde”) puede tener en el desplazamiento propio del concurso aparente. Igualmente se examina la incidencia de obstáculos procesales referidos al delito principal."

Cabe também salientar que a natureza jurídica da representação necessária ao processamento criminal das lesões corporais culposas qualificadas decorrentes de acidentes de tráfego viário é de caráter processual, porquanto consistem em "condição de procedibilidade" a regular eclosão da respectiva actio. Tal representação em nada se confunde com uma cogitável (mas inexistente) condição objetiva de punibilidade devida à subsunção do fato à figura delitiva, exigível para o reconhecimento da própria relação de tipicidade. Mais ainda: as referidas lesões passam longe de ser crime autônomo que pudessem configurar atos preparatórios do delito de direção inabilitada. Fosse pouco, esse último delito não se subordina àquelas lesões criminosas por força de relações de subsidiariedade ou de consunção, mas por inequívoca especialidade [8].

Notadamente quando — como na hipótese ora examinada —, o concurso de leis não envolve preceitos em que o crime legitimado como principal descreve um tipo privilegiado (dado que per se inviabilizaria o espírito da derivação incriminadora mais benéfica), a regra da Wielderaufleben pode e deve, observados os parâmetros aqui considerados, fazer com que os efeitos residuais do delito antes descartado retornem ao julgamento de parte da conduta imputada ao causador do fato, conquanto indecomponível em sua real totalidade fenomênica. Por isso, VOEGLER parece estar mesmo certo ao ponderar no sentido de que se o exercício da representação ou da queixa, necessário ao processamento do delito prevalente, pretender evitar o streptus forii do ofendido, não é plausível, caso ele não o faça, ressuscitar o delito antes descartado e que não exige nenhuma condição especial de procedibilidade, pois isso também pode acarretar prejuízos à vítima, em detrimento do cuidado que a lei lhe quis garantir, confiando-lhe parte da administração dos graves efeitos inerentes ao processo penal [9]. Sob essa perspectiva, é razoável e proporcional aderir ao seguinte critério à legitimidade da eficácia dos efeitos do crime redivivo, em razão da aplicação da Wielderaufleben: "quando a condição de procedibilidade do delito prevalente não proteger exclusivamente os interesses processuais do seu sujeito passivo, nada obsta reanimar o crime antes preterido em concurso de leis penais, desde que esse último não corresponda a um tipo privilegiado" [10].

3. Conclusão
Diante do exposto e visto que a representação exigida para o processamento do delito previsto no artigo 303, § 1º c.c. artigo 302, § 1º, inciso I, ambos do CTB, não serve apenas à redução do streptus forii do ofendido imediato, restando intacto, mesmo diante do seu desprendimento em manejar a persecutio criminis contra o sujeito ativo do crime, o interesse público pela efetiva segurança do tráfego, é cabível, em casos assim, a aplicação da regra da Wielderaufleben em relação ao artigo 309 do CTB, para restaurar a eficácia de todos os seus efeitos penais, a ser sancionado, no mínimo, com oito meses de detenção, em razão do maior desvalor do resultado real subjacente à conduta ofensiva à segurança social das relações viárias.

 


NOTAS

[1] Também designado, amiúde, "conflito de leis penais" ou, ainda, "concurso aparente de normas". Principalmente no bojo das relações de especialidade, o que se verifica é a concorrência de disposições legais (elas é que estão escritas de forma diversa, pois as normas de conduta que lhes são subjacentes são, do ponto de vista substancial e lógico, as mesmas); nesse sentido cf., por todos, HORTA, Frederico Gomes de Almeida. Do concurso aparente de normas penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 24 et seq. (sobre a nomenclatura do instituto) e p. 114-129 (sobre a regra da especialidade).

[2] Vide, a respeito, inclusive sob o apuro da mesma terminologia: HORTA, Frederico. Elementos fundamentais da doutrina do concurso de leis penais e suas repercussões no direito penal brasileiro contemporâneo. In: PACELLI, Eugênio; CORDEIRO, Nefi; REIS JÚNIOR, Sebastião dos [Coords.]. São Paulo: Editora Atlas Ltda., 2019, v. 1, p. 53 usque 56.

[3] GARCÍA ALBERO, Ramón. "Las consecuencias jurídicas del concurso de leyes e su repercusión en la naturaleza jurídica del instituto" (Capítulo IV). In: . "Non bis in idem" material y concurso de leyes penales. Barcelona: Cedecs, 1995, p. 185 usque 226.

[4] Nesse sentido, cf.: HORTA, Frederico. Elementos fundamentais… op. cit., p. 49 usque 53.

[5] Nesse sentido, cf. GARCÍA ALBERO. “Las consecuencias jurídicas… op. cit., p. 187 usque 189.

[6] Esse efeito, na Alemanha, aplica-se também ao concurso ideal de delitos, fundado em razões de política-criminal que, em suma, estabelecem que não ser razoável maior brandura no tratamento penal dispensada ao agente que ao invés de um, com uma única conduta, perpetra ao menos dois crimes. Note- se, porém, que o argumento é problemático no âmbito do conflito de leis penais: dizer que o agente não pode ser beneficiado em situações nas quais concorram mais de um delito, a rigor, é não levar em conta a própria essência do conflito aparente de normas, pois o instituto encarta uma concorrência de leis apenas virtual (só uma norma é infringida).

[7] GARCÍA ALBERO. “Las consecuencias jurídicas… op. cit., p. 196.

[8] Tais argumentos reafirmam a possibilidade do recurso ao delito preterido, mesmo se se cogitasse a sua eficácia sob a perspectiva da falta de punibilidade do crime prevalente. Nesse sentido, cf.: ibidem, p. 196 usque 200.

[9] Nesse sentido, cf. VOEGLER apud GARCÍA ALBERO (“Las consecuencias jurídicas… op. cit., p. 202). Em sentido contrário: JAKOBS apud ibidem, loc. cit.

[10] Nesse sentido, ibidem, p. 203.

Autores

  • Brave

    é mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo, no Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e promotor de Justiça titular dos Juizados Especiais Criminais de Belo Horizonte (MG).

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