Limite Penal

O Processo Penal e a democracia: as prisões em flagrante do dia 8/1

Autores

  • Daniel Kessler de Oliveira

    é doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Professor nas áreas do direito penal e processo penal na Universidade Feevale em Novo Hamburgo. Advogado criminalista.

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

13 de janeiro de 2023, 8h00

Já dizia Goldschmidt: "A estrutura do processo penal de uma nação nada mais é do que um termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de sua constituição" [1]. Com isso, iniciamos o raciocínio frisando que não se defende uma democracia abrindo mão dela. A democracia se sustenta em diversas bases, estando dentre as principais, os direitos do indivíduo frente ao Estado. A defesa e a observância desses direitos, para que sejam genuínas e autênticas, não pode variar de acordo com o rosto, com o fato imputado ou com o viés ideológico do detentor desses direitos, pois, se assim for, trata-se de, pura e simplesmente, defesa de pessoas e não de direitos. Inúmeros são os graves episódios históricos, antigos e recentes, que mostram o perigo de se relativizar a defesa dos direitos de alguma ou algumas pessoas, independente do motivo.

Portanto, por mais grave e repugnante que sejam os atos praticados e, ainda, que visem atentar contra a própria democracia, a resposta precisa ser dentro da regra democrática. Sabemos que não existe vácuo de poder, mas, também, não existe um gap autoritário, que permita suspender as diretrizes democráticas por uns instantes, sem que isso represente uma grave e irreversível ruptura.

Fixando essas premissas, passaremos a breve análise dos fatos envolvendo prisões em flagrante dos indivíduos que vilipendiaram símbolos da República e causaram gravíssimos danos culturais e patrimoniais no último dia 8 de janeiro de 2023, bem como dos desdobramentos possíveis a partir disso e uma análise da prisão preventiva decretada ao ex-secretário de segurança do Distrito Federal, Anderson Torres.

Importa frisar que se noticiam mais de 1.200 pessoas presas. Isso é algo absolutamente excepcional. E assim o é pela própria excepcionalidade dos atos praticados. Nunca na história do país se viu algo como o ocorrido no último domingo e, obviamente, o processo penal brasileiro nunca teve de lidar com tal situação. Mas essas prisões em flagrante foram legais?

Spacca
Nos termos do artigo 302, I e II do Código de Processo Penal brasileiro, é plenamente possível a prisão em flagrante daqueles que estavam cometendo crimes ou tinham acabado de cometer. Em relação aos que foram detidos momentos depois (no "acampamento"), estamos diante de situações previstas nos incisos III ou IV do artigo 302 do CPP, ou seja, a prisão de quem é perseguido logo após em situação que o faça presumir ser autor do crime ou, ainda que tenha sido encontrado, logo depois, possuindo objetos que o faça presumir ser autor da infração. Mesmo considerando a complexidade fática em contraste com a previsão legal aparentemente simplificadora, as prisões em flagrante encontram, pelo que se tem notícia, abrigo nos incisos do artigo 302 do CPP.

Advertimos que inexiste o mitológico prazo de 24 horas para a prisão em flagrante, uma verdadeira lenda urbana que habita o discurso dos leigos. O artigo 302 do CPP, nunca estabeleceu isso. O prazo de 24 horas é para a formalização do auto de prisão em flagrante e depois de mais 24 horas para a realização da audiência de custódia.

Ainda, em relação ao flagrante, ao ver a natureza de alguns delitos que se atribuem aos indivíduos, percebem-se alguns crimes de natureza permanente, como organização criminosa, por exemplo, e nestes casos, à luz do artigo 303 do CPP, está autorizado o flagrante enquanto não cessar a permanência. Com isso, em relação aos flagrantes, não há, em tese, ilegalidade consoante a norma processual penal.

Outro ponto que surge, a partir disso, são as audiências de custódia que devem ser realizadas em até 24 horas. Não olvidemos que o próprio Supremo, tempos atrás, esvaziou essa obrigatoriedade, na decisão do ministro Luiz Fux de suspender parte das reformas legislativas em matéria processual penal, dentre as quais, a regra do Artigo 310, § 4º, que tornava ilegal a prisão no caso de não realização da audiência de custódia no prazo de 24 horas. Com isso, em que pese a nossa discordância, a não realização da audiência em 24 horas não culmina na ilegalidade da prisão.

Não se pode desconhecer, também, a dificuldade estrutural de realização de todas as audiências. Poderia o ministro Alexandre de Moraes ter designado juízes e desembargadores para a realização das audiências? Isso é plenamente possível, na medida em que, mesmo em processos com prerrogativa de função, a serem julgados originariamente pelo Supremo, a instrução processual pode ser delegada a outros magistrados (vimos isso no caso Mensalão).

Chama a atenção, contudo, a "cisão" da audiência de custódia feita pelo ministro, ao determinar que aos juízes (delegação de poder) ficaria reservada a análise de regularidade formal da prisão, cabendo à Suprema Corte a análise de pedidos das partes, no que diz respeito ao 310 do CPP (prisão preventiva/temporária, medidas cautelares diversas etc.).

Aqui, nos parece um equívoco, pois esvazia a própria função da audiência de custódia (AC), reduzindo a sua função, transformando-a em um ato meramente simbólico. A AC serve para analisar e decidir sobre a legalidade da custódia, mas também sobre a necessidade de manutenção ou não da prisão. Recordemos que o flagrante não prende por si só, eis que sua natureza de pré-cautelaridade não permite que seja automaticamente convertido em uma medida cautelar ou que se estenda para além do prazo legal. Dessa forma, deve competir ao juiz que preside a AC a análise sobre a legalidade do flagrante e sobre a imposição ou não de medidas cautelares (diversas da prisão ou de prisão preventiva/temporária, caso haja pedido neste sentido).

Por fim, em relação à prisão preventiva do ex-secretário Anderson Torres, existem alguns pontos a serem considerados na decisão. Primeiro, há de se frisar que houve requerimento da autoridade policial para tal fim, o que é previsto na legislação, isto é, não se trata de decisão de ofício do ministro Alexandre de Moraes. No que tange aos fundamentos da decisão, esses não fogem a um padrão decisório comumente visto em todos os fóruns e tribunais do país. Contudo, assim como criticamos o uso desmedido e banalizado da prisão preventiva em inúmeros destes casos, também entendemos ser a referida decisão merecedora de críticas.

Isso porque o que se percebe na decisão é um conjunto de elementos a evidenciar uma possível prática delitiva por parte do ex-secretário, apontando o requisito do fumus comissi delicti, sem o qual ninguém poderá ser, sequer, denunciado, quiçá preso. Todavia, ausente a demonstração do, igualmente fundamental, periculum libertatis. A priori, não houve a demonstração de como e por qual razão a liberdade do indivíduo colocaria em perigo às investigações, o processo ou mesmo a famigerada ordem pública. O que se percebe na decisão (assim como em tantas que lamentavelmente vemos por todo país), foi uma espécie de determinação de prisão antecipada, como uma forma de resposta imediata ao (ainda suposto) crime. Esquecendo-se que o indivíduo é presumidamente inocente e que a prisão não pode representar uma antecipação de uma incerta e, tão somente, especulada pena. Nesse contexto, parece-nos abusiva a decretação de prisão na forma como fora justificada, ao passo que já havia o afastamento do cargo e outras cautelares diversas previstas em lei poderiam se demonstrar necessárias e adequadas ao caso.

Por fim, cumpre manifestar nosso absoluto rechaço e reprovação diante do bárbaro ataque à democracia e suas instituições, que extravasam o campo da liberdade de manifestação e opinião, para ingressar — sem qualquer dúvida — no campo dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, contra o patrimônio público e vários outros tipos penais. Punir é necessário, punir é civilizatório, e os crimes praticados naquele vergonhoso domingo precisam ser apurados, e seus responsáveis, devidamente punidos. Mas tudo isso, sempre, dentro do marco do devido processo penal e da Constituição [2].

Precisamos seguir firmes e intransigentes em relação ao respeito às regras do jogo de maneira a preservar os direitos e garantias constitucionais. Não existe defesa da democracia fora do espectro democrático ou mesmo com interpretações de conveniência. Nós, que tanto lutamos e defendemos a democracia, temos que defendê-la para todos e todas, pois isso é o que nos difere daqueles que a desprezam e, ironicamente, agora clamam por direitos fundamentais por eles desprezados no passado.

 


[1] GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Conferencias dadas en la Universidad de Madrid en los meses de diciembre de 1934 y enero, febrero y marzo de 1935. Buenos Aires: BdeF, 2016. P: 73

[2] Como já nos manifestamos anteriormente, apenas com o respeito a todas as garantias penais e processuais, é que "a punição será legítima, justa e transmitirá uma forte mensagem para a sociedade afetada pelo crime".

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    é advogado criminalista, doutor em Ciências Criminais pela PUC-RS e professor de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Feevale do Rio Grande do Sul.

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    é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

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    é advogado criminalista habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor em Neurociências (UFMG), mestre em Direito, coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e professor de Processo Penal da FAE.

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