Tiro n'água

'Decreto do golpe' excluiria Poder Judiciário de análise das eleições

Autores

13 de janeiro de 2023, 20h42

A proposta de decreto para o então presidente Jair Bolsonaro (PL) instaurar estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral e, assim, anular a eleição que perdeu para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apreendida pela Polícia Federal na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, criava a Comissão de Regularidade Eleitoral. O órgão seria composto por militares, procuradores, policiais e políticos. Contudo, não teria nenhum integrante do Poder Judiciário, a quem cabe a palavra final sobre irregularidades no pleito.

Abdias Pinheiro/TSE
Tribunal Superior Eleitoral seria excluído
da análise das eleições presidenciais

A minuta decretava estado de defesa na sede do TSE, em Brasília, "com o objetivo de garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022, no que pertine à sua conformidade e legalidade, as quais, uma vez descumpridas ou não observadas, representam grave ameaça à ordem pública e a paz social". O prazo da medida excepcional seria de 30 dias, prorrogáveis uma vez por igual período.

O documento afirmava que se entende como sede do Tribunal Superior Eleitoral "todas as dependências onde houve tramitação de documentos, petições e decisões acerca do processo eleitoral presidencial de 2022, bem como o tratamento de dados telemáticos específicos de registro, contabilização e apuração dos votos coletados por urnas eletrônicas em todas as zonas e seções disponibilizadas em território nacional e no exterior". Também mencionava que, na constatação de irregularidades, a medida poderia ser estendida às sedes dos Tribunais Regionais Eleitorais.

A apuração da conformidade e legalidade do processo eleitoral seria conduzida pela Comissão de Regularidade Eleitoral. O órgão seria essencialmente militar, com oito membros do Ministério da Defesa, a quem as Forças Armadas se subordinam. Também teria dois integrantes do Ministério Público Federal, dois peritos da Polícia Federal, e um integrante do Senado, um da Câmara dos Deputados, um do Tribunal de Contas da União, um da Advocacia-Geral da União e um da Controladoria-Geral da União.

Seriam convidados a participar do processo, quando da apresentação do relatório final, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, da Organização das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos.

Sem Justiça
Chama a atenção o fato de que o decreto não previa nenhum membro do Judiciário como integrante da Comissão de Regularidade Eleitoral. Os presidentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça apenas receberiam o relatório final do grupo de trabalho.

O TSE é o responsável pela estruturação e fiscalização do sistema eleitoral brasileiro. E compete ao STF a palavra final sobre resolução de disputas, o controle de constitucionalidade e a coordenação da Justiça nacional.

Jair Bolsonaro fez dos ataques ao STF uma estratégia para galvanizar seus apoiadores. As investidas têm duas origens. A primeira está nas decisões que declararam que estados e municípios têm competência para impor medidas sanitárias contra a Covid-19, como as de isolamento social. A segunda está nos inquéritos que apuram a propagação de fake news e atos antidemocráticos, bem como o financiamento dessas atividades por bolsonaristas. Há ainda um terceiro foco de ataques contra o Judiciário, mais especificamente contra o TSE e seus magistrados, relativo ao descrédito das urnas eletrônicas.

Em 2021, Bolsonaro pediu ao Senado o impeachment do ministro Alexandre de Moraes. A medida foi repudiada pelo Supremo Tribunal Federal e pela OAB, e rejeitada pelo presidente da casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem não existem fundamentos para impeachment contra ministros do STF.

Se Bolsonaro tivesse sido reeleito presidente, ele teria maioria no Senado e poderia insistir em pedidos de impeachment de ministros. Levar adiante o projeto de destituição de um magistrado do Supremo, porém, seria bastante complicado mesmo para um chefe do Executivo forte no Congresso. Entre outras coisas, porque é fundamental para isso conseguir a eleição de um aliado como presidente do Senado, que é quem tem o poder de dar andamento ou "engavetar" um pedido de impeachment de integrante do STF.

O presidente e seus aliados tinham o plano de apoiar, em um novo mandato, proposta de emenda à Constituição para aumentar o número de ministros da corte, conforme informaram os jornalistas Elio Gaspari, dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo; Andréia Sadi, da GloboNews; Guilherme Amado, do portal Metrópoles; e Lauro Jardim, de O Globo.

Apresentada há cerca de dez anos pela deputada Luiza Erundina (Psol-SP), a PEC 275/2013 transforma o STF na Corte Constitucional. A competência do tribunal seria restrita a processos relativos à interpretação e aplicação da Constituição. As demais atribuições atuais do Supremo, como as de julgar ações penais de autoridades com foro privilegiado, Habeas Corpus, mandados de segurança e pedidos de extradição de estrangeiros, iriam para o Superior Tribunal de Justiça.

A Corte Constitucional manteria os 11 ministros do STF e adicionaria quatro integrantes, totalizando 15 julgadores. O processo de escolha seria diferente do atual. Hoje, o presidente da República indica um nome e ele é submetido a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, composta por 27 parlamentares. Se for aprovado por maioria simples, o parecer da CCJ é encaminhado ao Plenário da casa legislativa. O candidato preciso do aval de 41 dos 81 senadores para se tornar ministro do Supremo.

De acordo com a PEC 275/2013, os postulantes a uma vaga na Corte Constitucional seriam selecionados a partir de listas tríplices elaboradas pela magistratura (feitas pelo Conselho Nacional de Justiça), pelo Ministério Público (feitas pelo Conselho Nacional do Ministério Público) e pela advocacia (feitas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil). Os candidatos precisariam da aprovação da maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado para serem nomeados para o tribunal.

Em 2017, a PEC 275/2013 recebeu parecer favorável da relatora, a então deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ), filha de Roberto Jefferson, mas não chegou a ser votada pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara.

Embora fosse perder o poder de indicar diretamente os ministros da corte, Bolsonaro, com a manutenção da maioria governista no Parlamento, conseguiria emplacar nomes de seu agrado. Caso a proposta fosse aprovada, o presidente controlaria seis nomeações em um segundo mandato — duas decorrentes das aposentadorias dos ministros Ricardo Lewandowski (em maio deste ano) e Rosa Weber (em outubro) e quatro geradas pela ampliação do tribunal.

Dessa maneira, Bolsonaro poderia indicar oito dos 15 magistrados da Corte Constitucional, incluindo os ministros Nunes Marques e André Mendonça, que indicou para o STF em seu primeiro mandato.

O estado de defesa
Durante o estado de defesa, de acordo com o documento encontrado na casa de Anderson Torres, ficaria suspenso o sigilo de correspondência e de comunicação telemática e telefônica dos ministros do TSE. A medida compreenderia o período eleitoral até a diplomação do presidente eleito, em 12 de dezembro. Os magistrados também ficariam proibidos de ingressar em dependências da corte.

Na vigência da situação excepcional, qualquer decisão judicial "direcionada a impedir ou retardar os trabalhos da Comissão de Regularidade Eleitoral" teria seus efeitos suspensos.

A prisão por crime contra o Estado, determinada pelo presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral, um militar, não iria poder ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Judiciário.

A detenção seria comunicada imediatamente ao juiz competente, que iria poder promover o relaxamento, em caso de comprovada ilegalidade, facultado ao preso o requerimento de exame de corpo de delito à autoridade policial. Esse servidor faria declaração do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação. Seria proibida a incomunicabilidade do preso.

O relatório final da Comissão de Regularidade Eleitoral deveria ser apresentado ao presidente da República e aos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Senado e da Câmara dos Deputados.

O documento conteria a apresentação das supostas fraudes eleitorais; a metodologia utilizada nos trabalhos; as contribuições técnicas recebidas; as eventuais manifestações dos membros componentes; as medidas aplicadas durante o estado de defesa, com as devidas justificativas; o material probatório analisado; e a relação nominal de eventuais envolvidos e os desvios de conduta ou atos criminosos verificados, de forma individualizada.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!