Opinião

A necessária defesa do regime democrático

Autores

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

  • Martonio Mont'Alverne Barreto Lima

    é doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt/M professor titular da Universidade de Fortaleza e procurador do município de Fortaleza.

12 de janeiro de 2023, 14h16

O artigo inaugural da Constituição de 1988 define a República Federativa do Brasil com um Estado Democrático de Direito, em que União, estados, Distrito Federal e municípios, além de formarem uma união indissolúvel, têm competência comum de zelar pela guarda das instituições democráticas (artigo 23, I).

Demais Poderes e órgãos públicos devem se comprometer com o Estado Democrático de Direito, ficando responsáveis os partidos políticos pela mesma democracia, conforme o artigo 17. Eis a origem dos membros do Legislativo, que são responsáveis por resguardar o regime democrático, juntamente com a guarda da Constituição pelo Supremo Tribunal Federal.

A Constituição desenhou, ainda, um complexo orgânico na "Organização dos Poderes" (Título IV), formado pelas instituições protagonistas do sistema de acesso à Justiça: Defensoria Pública, Ministério Público e advocacia pública e advocacia privada. Tais instituições foram inscritas topicamente em capítulo próprio, fora dos demais, que preveem os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e devem guardar em suas missões o valor máximo da defesa do regime democrático.

De forma explícita, a Constituição incumbe ao Ministério Público a defesa do regime democrático e à Defensoria Pública o ser expressão e instrumento do regime democrático. Também a Constituição revela que a Advocacia-Geral da União é a instituição que representa a União, e, em sendo a esta incumbida a competência de zelar pela guarda das instituições democráticas, por uma decorrência lógica a execução das leis que buscam salvaguardar a democracia, deve ser realizada pelo Poder Executivo por todos os seus órgãos, inclusive pela AGU.

Apesar dessa expressa missão conferida aos entes de direito público interno, houve estranhas surpresa e crítica quando, no dia 1º de janeiro de 2023, edição especial do Diário Oficial publicou o Decreto 11.328, que "Aprova Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Advocacia-Geral da União e remaneja cargos em comissão e funções de confiança", criando Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), cujas funções seriam: (1) representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para defesa da integridade da ação pública e da preservação da legitimação dos Poderes e de seus membros para exercício de suas funções constitucionais; e (2) representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas (artigo 47).

A crítica à criação da PNDD se fundamentaria na ausência de definição de critérios e esclarecimentos sobre a atuação desta nova Procuradoria. A oposição à recém-criada Procuradoria tem feito críticas como um possível mecanismo de censura, ou de que suas funções caberiam melhor ao Ministério Público, como se este não já detivesse essa atribuição, na conformidade da solar redação do artigo 127 da Constituição.

A partir dos estarrecedores, embora esperados, acontecimentos de dia 8 de janeiro de 2023 e da pronta atuação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia ante a inação de outros atores, parecem sem razão as críticas proferidas.

Os atos praticados na capital da República, que destruíram as sedes dos três Poderes, podem ser considerados como uma obra conjunta: de terroristas, de grande parte da mídia, de políticos e de instituições que não funcionaram como e quando se esperava.

Na ordem apresentada, os terroristas disfarçados de "patriotas" foram incentivados e organizados ao longo dos últimos seis anos para esse desfecho, especialmente por uma elite econômica que jamais aceitou a universalização de direitos, tampouco assimilou a ideia de uma democracia econômica para amplos setores de nossa sociedade. A empregada doméstica na Disney e sua filha nos bancos da faculdade de medicina incomodaram muito.

Quanto à grande mídia, até um desatento observador saberia qual o resultado da equação promovida quando fora potencializada a criminalização e espetacularização da política, transformando a avareza econômica e intelectual de uma classe média em covarde e falsa indignação moral, em ódio aos mais fracos e pobres e idolatria aos fortes e ricos.

Por sua vez, os políticos que deram apoio ao golpe de 2016 rapidamente compreenderam que o espaço para Bolsonaro e o bolsonarismo estava se abrindo. Embarcaram nessa aventura e, a despeito de pandemia, notícias de corrupção, aparelhamento da burocracia pública, benesses para apoiadores e destruição de nossa soberania econômica, não arredaram pé do apoio a um dos piores governos que o Brasil conheceu. Após 30 de outubro de 2022, muitos saltaram do barco. Outros ainda tocam seus violinos no convés.

Quanto às instituições omissas, a marcha dos terroristas contra a institucionalidade democrática cruzou caminho com uma apática e aparentemente conivente força policial, que somente interveio quando as sedes dos Poderes da República estavam praticamente destruídas. Antes, entre 2014 até 2022, alguns membros do Ministério Público Federal e da Justiça Federal se constituíram em pivôs da instabilidade institucional do país, sendo necessário que o acaso providenciasse as provas do conluio da operação "lava jato", para que o Supremo Tribunal Federal revisse o estrago democrático, e procurasse salvar o que ainda poderia ser salvo.

Como foi possível a sucessão de acontecimentos que levaram ao 8 de janeiro, quando já se sabia dos planos dos terroristas? Onde estavam as autoridades federais e do Distrito Federal que não se moveram para qualquer ação preventiva? O caldo fica mais entornado quando se sabe que o Ministério Público tem como obrigação constitucional do controle externo da atividade policial. Não sabiam do que se preparava, desconhecendo as ligações políticas de integrantes das forças policiais federais, estaduais e distritais com os partidários do bolsonarismo? Essas ligações são tão abertas que basta um desatento olhar para a representação política das bancadas da bala no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e Câmara Distrital, e Câmaras Municipais.

Não se pode admitir que o setor armado de nossa sociedade esteja nas mãos de dirigentes que sejam mais leais aos seus interesses localizados do que à institucionalidade democrática. Não se pode admitir que decida aquela que tem as armas: quem tema armas obedece; quem decide — os Poderes eleitos, isto é, Executivo e Legislativo — não tem armas. É assim que está na Constituição.

Eis a inação institucional que também responde pelos episódios de 8 de janeiro de 2023, cujos atos de destruição — física e institucional — envergonharam o Brasil perante a comunidade internacional, como bem destacou Lenio Streck em sua coluna neste ConJur [1].

Decorrente dessa omissão, a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia é uma necessidade, cuja implantação algumas sociedades já há muito tempo compreenderam, como a Alemanha que criou seu Serviço de Proteção Constitucional desde novembro de 1950. De lá para cá, nenhum governo de direita, de esquerda ou centro-esquerda da Alemanha foi acusado de censura. E a existência desse serviço não se confundiu com a atuação da persecução penal e civil sob a responsabilidade do Ministério Público ou com a atuação de porta de acesso à cidadania e à dignidade às pessoas e coletividades necessitadas a cargo da Defensoria Pública.

O temor em torno da criação da PNDD resta ainda esvaziado com a publicação da Portaria Normativa nº 80/2023 da Advocacia-Geral da União, que cria um Grupo Especial de Defesa da Democracia (Gedd) para realizar o "acompanhamento das apurações e investigações relacionadas com os atos antidemocráticos praticados na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, e outros danos a bens públicos federais correlatos", convidando a participar deste grupo representantes do Supremo Tribunal Federal, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Casa Civil da Presidência da República, Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República e Ministério da Justiça e Segurança Pública [2].

O certo é que a promoção, consecução e defesa da democracia é atribuição de todos os entes, órgãos e agentes públicos, bem assim de todo e qualquer cidadão, não havendo respaldo constitucional para que qualquer um destes se arrogue na exclusiva competência de fazê-lo.

As lições que tiramos desta tragédia recente brasileira somente serão conhecidas com o passar do tempo. O que temos até o momento, porém, é revelador da urgência do compromisso de formação de cultura democrática na burocracia nacional, para além dos Poderes constituídos e das instituições responsáveis pela defesa e pela guarda da Constituição, em especial, relativamente aos componentes das Forças Armadas e policiais, e se espera que a criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia seja uma alentadora iniciativa neste sentido.

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