Opinião

A Defensoria Pública Eleitoral no papel de instrumento do regime democrático

Autores

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

  • Alberto Carvalho Amaral

    é doutorando em sociologia (UnB) mestre em Direito (UniCeub) especialista em Direito Processual (UniSul) e Ciências Criminais (UniSul) e defensor público do Distrito Federal.

12 de janeiro de 2023, 7h17

A Defensoria Pública, incumbida constitucionalmente de promover os direitos humanos e de prestar  de forma exclusiva como instituição estatal  assistência jurídica integral e gratuita à população necessitada do Brasil, constitui, nos termos do artigo 134, caput, da Constituição da República, instrumento indispensável à implementação de uma Justiça efetivamente cidadã e à materialização do próprio Estado Democrático de Direito.

À instituição defensorial, portanto, cabe o papel de viabilizar o acesso da população assistida (hipossuficientes e hipervulneráveis) aos direitos mais comezinhos, conferindo cidadania a um grande contingente de brasileiros e estrangeiros que aqui habitam e promovendo, por conseguinte, a redução das desigualdades sociais, objetivo comum à Defensoria Pública [1] e à República Federativa do Brasil [2].

O cotejo entre a Lei Orgânica da Defensoria Pública e a Constituição Federal autoriza concluir, sem margem de dúvidas, que a Defensoria Pública foi a instituição incumbida pelo legislador de garantir a essência do próprio Estado Democrático de Direito, viabilizando que os cidadãos, socialmente integrados, participem não só da vida política do Estado (por meio do regular exercício do direito ao voto), mas também na vida jurídica estatal (recebendo orientação jurídica por parte de instituição oficial e tendo resguardado o respeito a direitos individuais e coletivos reconhecidos na Carta Magna), e com isonomia de condições, propiciando, assim, o alcance da tão almejada igualdade material entre os cidadãos [3].

Da leitura atenta do artigo 3º, I, III e IV, da CF/88, extrai-se que a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a promoção da igualdade material foram definidas pelo legislador constituinte originário como norte a ser observado em todas as ações desempenhadas pelos Poderes da República.

E não é por acaso que os referidos vetores também constituem a base de atuação da Defensoria Pública, já que, segundo o artigo 3º-A, I, II e III, da LC nº 80/94, representam objetivos dessa instituição a primazia da dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais, a afirmação do Estado Democrático de Direito e a prevalência e efetividade dos direitos humanos.

Especificamente no que tange aos direitos humanos, tem-se que o Poder Constituinte erigiu a Defensoria Pública ao patamar de ente responsável pela sua promoção a nível nacional (estando legitimada, inclusive, a acionar os sistemas internacionais de proteção [4]), instituição do sistema de justiça que, justamente por estar em permanente contato com a população desassistida de políticas públicas em nosso país, primeiro tem conhecimento acerca de eventuais abusos e omissões estatais.

Constata-se que o próprio direito de acesso à Justiça e de representação perante os órgãos públicos competentes encontra-se inserido no conceito de direitos humanos, sob pena de não haver como se falar em dignidade da pessoa humana. É nesta acepção que os direitos podem ser efetivados, na medida em que instrumentos jurídicos de garantia são viabilizados pelo fazer defensorial enquanto metagarantia (órgão instrumental para a garantia do acesso à Justiça), em atuação jurídica não limitada ao âmbito judicial e que abranja aspectos diversos, inclusive afetivos [5], para o alcance e tutela.

Nesse diapasão, André de Carvalho Ramos prescreve que[6]:

"Uma sociedade pautada na defesa de direitos (sociedade inclusiva) tem várias consequências. A primeira é o reconhecimento de que o primeiro direito de todo indivíduo é o direito a ter direitos. Arendt e, no Brasil, Lafer sustentam que o primeiro direito humano, do qual derivam todos os demais, é o direito a ter direitos".

Sobre o tema, confira-se trecho de voto exarado pela ministra Rosa Weber nos autos da ADI nº 5.296 [7], oportunidade em que o STF firmou entendimento pela essencialidade da Defensoria Pública na instrumentalização do acesso à Justiça e, por conseguinte, ao próprio Estado democrático de Direito:

"No desempenho do seu mister, as Defensorias Públicas concretizam esse direito fundamental que, além de se tratar de um direito de inclusão em si mesmo, traduz mecanismo pelo qual é garantido o exercício, por toda uma massa de cidadãos até então sem voz, dos demais direitos assegurados pela Constituição do Brasil e pela ordem jurídica".

Na mesma toada, o ministro Herman Benjamin, nos autos do AgInt no REsp 1.573.481/PE [8], definiu que:

"A rigor, mormente em países de grande desigualdade social, em que a largas parcelas da população  aos pobres sobretudo  nega-se acesso efetivo ao Judiciário, como ocorre infelizmente no Brasil, seria impróprio falar em verdadeiro Estado de Direito sem a existência de uma Defensoria Pública nacionalmente organizada, conhecida de todos e por todos respeitada, capaz de atender aos necessitados da maneira mais profissional e eficaz possível".

Nessa temática, vale conferir a advertência feita pelo ministro Celso de Mello nos autos da ADI nº 2.903 [9], oportunidade em que retratou de forma categórica a relevância dos serviços prestados pela Defensoria Pública:

"É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas  carentes e desassistidas , que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado".

Dissertando sobre a importância do papel da Defensoria Pública na consolidação do regime democrático, Pedro Gonzalez afirma que [10]:

"Muitas vezes instável, a democracia se estrutura em três princípios (ou valores) fundamentais: 1) supremacia da vontade popular; 2) preservação da liberdade; e 3) igualdade de direitos. (…)

Nessa trilha, ser instrumento do regime democrático é ser um meio para se defender e aprofundar a consolidação democrática. (…)

Tais características apontam para a possibilidade de a Defensoria Pública funcionar como instrumento para a inclusão das pessoas e grupos sociais em situação de vulnerabilidade na sociedade aberta dos intérpretes, superando as desigualdades estruturais".

Ainda sobre o tema, o ministro Gilmar Mendes, de forma lapidar, asseverou, no julgamento do RE 1.240.999, que "A importância da Defensoria Pública para a consolidação da democracia e a realização da justiça social é inegável" [11].

Neste ponto, releva destacar a advertência feita por Luís Roberto Barroso sobre a importância decisiva das instituições para a consolidação da democracia e consequente desenvolvimento dos povos:

"Uma das lições do século XX é o papel decisivo das instituições no desempenho político e econômico dos países. Instituições são as 'regras do jogo' e os mecanismos necessários ao seu cumprimento" [12].

E foi justamente com o escopo de exercer o munus constitucional de promover a assistência jurídica integral e gratuita aos eleitores (atribuição que não se resume ao ajuizamento de ações, mas, também, envolve a orientação jurídica dos hipervulneráveis [13] e o exercício da função de ombudsman [14]), que a Defensoria Pública brasileira, com respaldo na Resolução nº 23.678/21 do TSE, atuou, nas eleições gerais de 2022, como observadora eleitoral [15], tendo visitado mais de 300 seções eleitorais em 20 estados e no Distrito Federal e elaborado relatório parcial no qual aponta, dentre outros pontos, 1) seções eleitorais com muitos (as) eleitores (as), mesmo sem a devida capacidade para receber um alto número de pessoas, 2) falta de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida em alguns colégios eleitorais, 3) ausência de equipe habilitada adequadamente para prestar as informações solicitadas pelos (as) eleitores (as) e 4) falta de agentes de segurança pública em algumas seções eleitorais.

Feitas essas considerações acerca da relevância da atuação defensorial na concretização do Estado Democrático de Direito, tem-se que o Projeto de Lei que trata do novo Código Eleitoral (PLP nº 112/2021, em trâmite no Senado) previa, em sua redação original [16], a criação da Defensoria Pública Eleitoral, destinando oito dispositivos na Seção III à regulamentação da instituição no âmbito da Justiça Eleitoral. No que pertine ao presente ensaio, destaque-se a redação integral do artigo 107 e a redação parcial do artigo 115 do referido Projeto:

"Artigo 107. Compete à Defensoria Pública Eleitoral exercer, no que couber, junto à Justiça Eleitoral, as funções da Defensoria Pública, atuando em todas as fases e instâncias do processo eleitoral.

Parágrafo único. Como instrumento do regime democrático, a Defensoria Pública Eleitoral tem legitimação para propor, no juízo competente, as ações individuais ou coletivas destinadas a proteger o interesse das pessoas necessitadas, hipossuficientes e vulneráveis durante o processo eleitoral, preservando a normalidade do exercício dos direitos fundamentais de cidadania e fortalecendo a legitimidade das eleições. (…).

Artigo 115. São funções institucionais da Defensoria Pública Eleitoral, dentre outras:

I – prestar orientação jurídica eleitoral e exercer a defesa dos necessitados, hipossuficientes e vulneráveis em todos os graus;
II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios eleitorais entre eleitores, candidatos ou partidos políticos, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos; (…)
VI – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais necessitadas, vulneráveis ou hipossuficientes, em processos administrativos eleitorais e judiciais eleitorais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses como eleitores ou candidatos; (…)
IX – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos do eleitor ou candidato idoso ou com necessidades especiais, da mulher eleitora ou candidata, do preso eleitor, da pessoa em situação de rua eleitora ou candidata e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado em respeito à cidadania e a suas prerrogativas eleitorais;".

A previsão do projeto abrangia, assim, diversas formas de intervenção relevantíssimas ao fazer defensorial, na tutela e orientação jurídica dos socialmente vulnerabilizados, no âmbito da Justiça Eleitoral.

Tal atuação se mostra imprescindível, seja nas relações, eventualmente conturbadas, entre eleitores, candidatos e partidos políticos, seja na garantia da cidadania e na atuação preventiva (e repressiva, se o caso) para a garantia da lisura do pleito e para que eleitores e candidatos menos abastados não sejam feridos em seus direitos de cidadania, bem como na atuação como custos vulnerabilis eleitoral, para "preservar a normalidade do exercício dos direitos fundamentais de cidadania e fortalecendo a legitimidade das eleições".

No âmbito das defensorias, essa atuação também se daria de forma similar à atuação do Judiciário e do Ministério Público, especialmente porque a Defensoria Pública Eleitoral deverá atuar de forma abrangente, prestigiando, em sua atribuição, o acesso jurídico eleitoral a todos eleitores e candidatos, não apenas no período eleitoral, mas na matéria [17].

Esse tipo de interlocução, hoje, seria possível pelo esforço conjugado de membros das Defensorias Públicas da União, dos estados e do Distrito Federal, mantendo-se a unidade e a indivisibilidade em sua atuação federal e estadual, com objetivo explícito de ampliar os direitos de cidadania pela atuação permanente e duradoura do órgão metagarantidor.

Ocorre que, embora a Seção III do PLP 112/2021 tenha sido suprimida quando da votação do texto na Câmara dos Deputados [18], o Projeto de Lei encaminhado ao Senado continua fazendo menção à Defensoria Pública Eleitoral em três dispositivos.

Revela-se, portanto, imperioso que o referido Projeto de Lei seja revisto no Senado Federal, a fim de viabilizar que a instituição defensorial possa se desincumbir da atribuição constitucional que lhe foi conferida e contribuir, efetivamente, para a solidificação paulatina do Estado Democrático de Direito.

 


[1] Artigo 3º-A, I, da LC nº 80/94

[2] Artigo 3º, III, da CF/88

[3] REIS, Rodrigo Casimiro. (Re)pensando custos vulnerabilis e Defensoria Pública. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. P. 200.

[4] Artigo 4º, VI, da LC n. 80/94

[5] A esse respeito: AMARAL, Alberto Carvalho. A violência doméstica a partir da perspectivas das vítimas: a Lei Maria da Penha em juízo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.

[6] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2020. P. 33.

[7] ADI 5296, Relator (a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 04/11/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-280  DIVULG 25-11-2020  PUBLIC 26-11-2020

[8] AgInt no REsp 1573481/PE, relator ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 27/05/2016

[9] ADI 2903, relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/12/2005, DJe-177  DIVULG 18-09-2008  PUBLIC 19-09-2008 EMENT VOL-02333-01  PP-00064 RTJ VOL-00206-01 PP-00134

[10] GONZALES, Pedro. Acesso à Justiça e Defensoria Pública. Londrina: Thoth, 2021. P. 171/173.

[11]RE 1240999, relator (a): Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 04/11/2021, PUBLIC 17-12-2021.

[12] BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2021. P. 81.

[13] Artigo 4º, I, da LC nº 80/94

[14] REIS, Rodrigo Casimiro. (Re)pensando custos vulnerabilis e Defensoria Pública. P. 207/210.

[15] Disponível em: < https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=53045> Acesso em 08.dez.2022

[17] Importante destacar, neste ponto, a simetria conferida pelo Poder Constituinte à arquitetura institucional da Defensoria Pública e do Ministério Público, fato reconhecido pelo STF, conforme trecho de voto proferido pelo ministro Alexandre de Moraes, nos autos da ADI nº 6.852, relator ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2022.

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