Opinião

Os elementos para a responsabilização criminal de Bolsonaro

Autores

  • Fernando Hideo I. Lacerda

    é doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP professor da Escola Paulista de Direito e advogado criminalista sócio do Warde Advogados.

  • Laura de Azevedo Marques

    é advogada e pós-graduada em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

  • Rômulo Monteiro Garzillo

    é advogado sócio-fundador do Garzillo de Azevedo Marques Advogados mestre em filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) doutorando em Direito do Estado pela USP e professor de Direito Constitucional da Faculdade Nove de Julho.

12 de janeiro de 2023, 9h17

De tudo que foi dito sobre os atos golpistas e terroristas cuja concretização se iniciou no dia 8 de janeiro, a questão que ainda merece reflexão mais atenta é se a fuga de Jair Bolsonaro poderá poupá-lo da responsabilização criminal. Para seu homem de confiança, o ex-ministro da Justiça e então secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, o abandono do país não foi suficiente para eximi-lo do início da persecução criminal deflagrada para apurar sua participação nos atos golpistas e terroristas. Nesse cenário, a pergunta que se coloca é: há elementos para responsabilização criminal de Jair Bolsonaro?

A tese proposta neste breve artigo é a de que a responsabilização criminal de Jair Bolsonaro passa pela análise da relevância penal da sua omissão à luz do artigo 13, §2º, alínea "c", do Código Penal, que determina ser a omissão penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado, impondo o dever de agir a quem criou o risco da ocorrência do resultado com seu comportamento anterior. Para tanto, é necessário analisar dois pontos: 1) se ele tinha o dever jurídico de evitar os atentados e 2) se ele tinha a possibilidade fática de agir para evitar os atentados.

Em primeiro lugar, é notório que Jair Bolsonaro tem incitado manifestações golpistas e atos terroristas desde quando exercia o cargo de presidente da República. Em abril de 2020, em uma das primeiras manifestações golpistas organizadas por seus apoiadores, os quais exibiam faixas pedindo intervenção militar, o então presidente afirmou: "Nós não queremos negociar nada, nós queremos uma ação pelo Brasil. Vocês têm obrigação de lutar pelo país".

Também naquele ano, em 4 de maio, o presidente derrotado declarou por live em rede social: "Temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, pela liberdade". A fala vinha dentro do contexto de manifestações de seus apoiadores nas quais se viam faixas pela intervenção militar e contra o Congresso e o STF.

A cada endosso do então presidente, os fanáticos bolsonaristas avançavam cada vez mais nos ataques às instituições. Em 31 de maio de 2020, manifestantes marcharam pela Esplanada dos Ministérios na penumbra, trajados de preto, com máscaras e empunhando tochas de fogo. Na Praça dos Três Poderes, em frente ao STF, encenaram uma espécie de coreografia que fazia alusão clara à grupos neonazistas e à Ku Kux Klan.

No dia seguinte à invasão ao Capitólio, nos EUA, Jair Bolsonaro disse a apoiadores: "Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar voto, nós vamos ter problema pior que o Estados Unidos”. Em fevereiro daquele ano, durante formatura de cadetes em Campinas (SP), Jair afirmou: "Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este (o democrático) o regime que nós estaríamos vivendo".

Falas como essas, de cunho evidentemente golpista e destinadas a inflamar ódio e violência em manifestações antirrepublicanas, foram diuturnamente proferidas pelo então presidente: as ofensas à ordem democrática, ao processo eleitoral e às instituições foram presença constante durante seu mandato.

Após a vitória do presidente Lula, quando bolsonaristas ingressaram num episódio coletivo de descolamento da realidade e pediam a anulação do processo eleitoral, Jair Bolsonaro assumiu uma postura deliberadamente silenciosa, intercalada com mensagens dúbias, garantindo, assim, que seus apoiadores permanecessem mobilizados em rodovias e portas de quartéis. Em 30 de dezembro, Jair abandonou o país e fugiu para o Estados Unidos da América. Pouco mais de uma semana depois, iniciaram-se os atos golpistas e terroristas no Distrito Federal, com repercussão em todo país.

Portanto, a primeira conclusão é que Jair Bolsonaro tinha o dever jurídico de agir para evitar a deflagração dos atos golpistas e terroristas, uma vez que foi ele quem criou o risco da ocorrência do resultado com seu comportamento anterior e reiterado durante os anos de exercício do seu mandato, incitando a associação de pessoas com propósito de abolir o Estado Democrático de Direito e impedir o exercício dos Poderes constitucionais, devendo responder pela omissão à luz do artigo 13, §2º, alínea "c", do Código Penal.

Em segundo lugar, a surpreendente decisão de abandonar o país e fugir para os Estados Unidos da América nos últimos dias do ano revela, para além da covardia já há muito denunciada, o propósito deliberado e manifesto de se omitir publicamente para agir nos bastidores e no submundo das redes de comunicação da extrema direita, o que ficou claro com a ida de Anderson Torres para encontrá-lo na véspera dos atentados e pelos discursos dos golpistas e terroristas que depredaram o Distrito Federal.

Fato é que, após pelo menos dois anos de falas golpistas, incitando o ódio e o desrespeito à democracia e às instituições, de 31 de outubro de 2022 até o último domingo, Jair Bolsonaro teve incontáveis oportunidades de reconhecer o resultado das eleições, de apaziguar os ânimos do seu rebanho e sair de cabeça erguida. Não o fez. Ao contrário, estimulou a fantasia bolsonarista que gravita em torno de um sebastianismo tupiniquim. Uma das entrevistas colhidas em meio à horda golpista ilustra com clareza essa estratégia: "Os patriotas estão vendo a esperança, a luz no fim do túnel, porque nós confiamos, em primeiro lugar em Deus, e temos um capitão das Forças Armadas, ele está com as estratégias, que nós não vamos saber quais são, mas temos que apenas confiar".

O ex-presidente derrotado contribuiu, de forma absolutamente evidente, para que seus fanáticos se engajassem nos lamentáveis eventos de terrorismo na capital federal. Jair Bolsonaro tinha o dever de evitar o resultado porque anteriormente incitou, de forma intensa e reiterada, atos golpistas e terroristas. E está claro que ele tinha, e continua tendo, a possibilidade fática e jurídica de agir para desmobilizar os crimes ainda em curso.

Todavia, sua decisão, consciente e voluntária, foi de se omitir, inclusive abandonando o país e silenciando publicamente com o evidente propósito de seguir ecoando seu discurso de ódio e incitação da violência institucional, com o propósito já declarado de abolir o Estado Democrático de Direito e impedir o exercício dos poderes constitucionais, incitando sua horda a tentar depor, por meio de violência e grave ameaça, o governo federal legitimamente constituído.

Portanto, a segunda conclusão é que Jair Bolsonaro tinha não apenas o dever, mas também a possibilidade fática de agir para evitar os atentados golpistas e terroristas que estimulou com sua conduta anterior, optando deliberadamente por se omitir, o que caracteriza omissão dolosa e criminosa, à luz do artigo 13, §2º, alínea "c", do Código Penal.

Como visto, o Código Penal Brasileiro prevê a figura da omissão imprópria em seu artigo 13º, §2º, segundo o qual será a "omissão penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado", acrescendo que "o dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado".

Foi com base nesse artigo, na alínea "a", aliás, que o ministro Alexandre de Moraes deferiu acertadamente a representação da Polícia Federal, decretando a prisão preventiva de Anderson Gustavo Torres e Fábio Augusto Vieira: "Em momento tão sensível da Democracia brasileira, em que atos antidemocráticos estão ocorrendo diuturnamente, com ocupação das imediações de prédios militares em todo o país, e em Brasília, não se pode alegar ignorância ou incompetência pela OMISSÃO DOLOSA e CRIMINOSA. A omissão das autoridades públicas, além de potencialmente criminosa, é estarrecedora, pois, neste caso, os atos de terrorismo se revelam como verdadeira “tragédia anunciada”, pela absoluta publicidade da convocação das manifestações ilegais pelas redes sociais e aplicativos de troca de mensagens, tais como o WhatsApp e Telegram".

Os agora ex-comandante da Polícia Militar e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal teriam, em razão de seus cargos, a "obrigação de cuidado, proteção ou vigilância", como previsto na alínea "a" do §2º, do artigo 13º do CP. Já o ex-presidente Jair Bolsonaro deve ser responsabilizado criminalmente pela omissão dolosa e criminosa à luz do artigo 13, §2º, alínea "c", do CP, que impõe o dever de agir a quem "com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado".

Todos devem responder, nos termos do artigo 29 do CP, juntamente com aqueles que concorreram para a prática dos atentados golpistas e terroristas, sejam aqueles que financiaram, instigaram e executaram a depredação dos prédios públicos com propósito de abolir o Estado Democrático de Direito, de impedir o exercício dos poderes constitucionais e de depor o governo federal legitimamente constituído.

A situação se agrava na medida em que Jair Bolsonaro voltou a incitar atentados contra o governo federal, ao compartilhar em seu Facebook, no dia 10 de janeiro, vídeo com a mensagem: "Lula não foi eleito pelo povo. Ele foi escolhido e eleito pelo STF e TSE". Em linha de continuidade com suas manifestações tradicionais de violência contra o Estado Democrático de Direito, as instituições republicanas e os Poderes constitucionais, Jair Bolsonaro parece subir o tom e sinalizar a deflagração de mais atos golpistas e terroristas contra o governo federal.

Nessa toada, a escalada da violência e os elementos já reunidos pelo Supremo Tribunal Federal justificam não apenas o início da persecução criminal contra Jair Bolsonaro, em razão de sua omissão dolosa e criminosa à luz do artigo 13, §2º, alínea "c’" do Código Penal, mas a adoção de medidas cautelares tais como a retenção imediata do seu passaporte e a decretação da prisão temporária ou preventiva, como medida necessária para cessar a incitação à prática de atos golpistas e terroristas com grave comprometimento da ordem pública.

Visando evitar a reiteração das práticas criminosas a que assistimos no dia 8 de janeiro, é de rigor a atuação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal na investigação e requerimento de medidas cautelares, não apenas em face daqueles que diretamente procederam à depredação dos prédios e interdição das vias públicas, mas especialmente contra os financiadores e organizadores do movimento golpista e terrorista, cuja maior liderança, sem dúvida, é Jair Bolsonaro.

Diante desse cenário, nossa terceira conclusão é que, além de ser investigado e processado criminalmente pela liderança do movimento golpista e terrorista que busca a abolição do Estado Democrático de Direito e a deposição do governo federal legitimamente constituído, Jair Bolsonaro deve ser impedido de seguir liderando sua horda golpista e terrorista, o que reclama a imposição de medidas cautelares, tais como a retenção imediata do seu passaporte e a decretação da prisão temporária ou preventiva, considerando-se a contemporaneidade de suas ações (haja vista o post reproduzido por ele no dia 10/1 no Facebook), a iminência da realização de novos atentados, o já evidente risco de se furtar à aplicação da lei penal e o grave comprometimento da ordem pública.

Autores

  • é advogado criminalista, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito.

  • é advogada, sócia-fundadora do Garzillo de Azevedo Marques Advogados, pós-graduada em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

  • é advogado, sócio-fundador do Garzillo de Azevedo Marques Advogados, mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP e professor de Direito Constitucional da Faculdade Nove de Julho.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!