Para muitos, o prognóstico dos acontecimentos de domingo já era anunciado. Radicais e extremistas, derrotados nas urnas em 2022, insuflaram parcela da população a aderir a uma narrativa golpista em face das instituições de Estado, enquanto fruem do "american way of life" — inclusive o próprio ex-presidente.
É consenso na comunidade jurídica, sobretudo na especializada, a veemente reprovação dos atos de vandalismo realizados na capital federal. Os atentados vistos merecem total repúdio, e em hipótese alguma podem ser classificados como livre manifestação. Há, notadamente, distinção entre manifestar descontentamento com o governo da pura e simples balbúrdia, ainda mais quando aglutinada com discursos golpistas de abolição do Estado de Direito.
E frise-se, não se trata de fazer a defesa de um governo ou de um político em específico, trata-se exclusivamente de defender as instituições de Estado — a duras penas construídas —, posto que são a última trincheira para salvaguarda contra a barbárie.
As medidas ainda brandas do governo federal, ao exarar o decreto para a intervenção federal no DF, podem vir a ser superadas em caso de os golpistas tornarem a cena do crime. As palavras são duras, mas não existe designação distinta no vernáculo para caracterização de ações dessa natureza.
O decreto presidencial para intervenção federal, calcado nos artigos 84, caput, inciso X, e artigo 34, inciso III, ambos da CF/88, enuncia o objetivo de "pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública".
Nessa linha, as medidas mais incisivas e passíveis de serem tomadas, a depender da continuidade da truculência dos supostos "manifestantes", são: primeiramente, a tão afamada entre os apoiadores do ex-presidente derrotado nas urnas em 2022, que é a Garantia da Lei e da Ordem [1] (GLO).
Realizada exclusivamente por ordem do presidente da República, só ocorre nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem. Esse instrumento concede aos militares, em caráter provisório, a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade.
Nessas ações, as Forças Armadas agem de forma episódica, em área restrita e por tempo limitado, com o objetivo de preservar a ordem pública, a integridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições. A decisão sobre o emprego excepcional das tropas é feita pelo presidente, seja por motivação ou não dos governadores ou dos presidentes dos demais Poderes.
Em sequência, a legislação recepciona ainda o Estado de Defesa [2], que possibilita ao presidente, após ouvir os Conselho da República e de Defesa Nacional, decretá-lo para preservação ou pronto restabelecimento, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
E, por fim, a mais drástica medida prevista para a defesa das instituições democráticas, o Estado de Sítio [3], que faculta ao presidente, também após ouvir os Conselhos da República e de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso — que decidirá por maioria absoluta — a autorização para a decretação, nos casos de: 1) comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; ou 2) declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
Muito do discurso golpista, falsamente trajado de patriotismo, vem de uma real insatisfação da população com o próprio Poder Judiciário. Pois bem, este um Poder essencialmente contramajoritário. Ou seja, age estritamente nos termos da lei, de forma inerte, pois só age se requisitado, e com a devida equidistância para o julgamento imparcial das partes envolvidas no litígio.
Questiono, há necessidade de que uma instituição dessa natureza agrade a opinião leiga da maioria da população? A resposta cabalmente é não. Nunca foi e nunca esteve em pauta que as decisões técnicas do Poder Judiciário agradem parcela da coletividade. Sequer é essa a sua missão constitucional. O que por outro lado, evidentemente não impede que se critique ou proteste, de forma ordeira e dentro da legalidade, as decisões e os seus julgadores.
Isso são os conceitos básicos do "rule of law" e do "judicial review", que são sinônimos de civilização. Essa é a missão precípua do Poder Judiciário, sobretudo dos tribunais constitucionais, que dizem o Direito em última instância, gostemos ou não da decisão.
Em tempos sombrios como estes, o STF e o TSE foram fiadores da estabilidade democrática. Contudo, para muitos, pode surgir neste momento a indagação sobre a compatibilidade entre o controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário e o regime democrático em si: como um magistrado não eleito pode impedir a vontade da representação nacional eleita pelo sufrágio democrático? Há legitimidade do juiz constitucional?
Nesse sentido, duas são as teorias mais aceitas na doutrina constitucionalista. A primeira, a visão positivista, capitaneada por Hans Kelsen, e a segunda, a ótica jusnaturalista, proposta por Carl Schmitt.
Na primeira, segundo o pensamento de Georges Vedel [4], o juiz constitucional não é incompatível com a democracia, pois não há outro que guarde o direito positivo — aquele imposto pelos homens em uma sociedade.
Para Charles Eisenmann [5] — normativista e aluno de Kelsen —, mesmo não sendo eleito, o juiz constitucional não traz prejuízo à democracia, pois, o juiz constitucional exerce o controle processual, e não um controle de fontes. E ainda, o juiz possui um poder constituído — por óbvio, a ele concedido — e não um Poder Constituinte, sendo assim, não possui a última palavra em uma democracia, esta caberá ao Poder Constituinte, que promove a investidura no cargo de magistrado para que se exerça a judicatura.
Nos dizeres do professor Alexandre Alain René Viala, na cadeira de "Controle de constitucionalidade no Direito Comparado", no curso de especialização em Direito Constitucional da ABDConst: "O Direito é produto da vontade, e submisso à arbitrariedade do poder público, sob a condição de que o processo seja respeitado e que a hierarquia de competências seja observada. Não há nada de essencialista no Direito, tudo é relativo e submisso à vontade do soberano".
Em contraponto à segunda teoria, balizada pelo pensamento de Carl Schmitt, o pensamento de Eisenmann conduz à banalização do Poder Constituinte, pois permite — mediante maioria qualificada — a revisão e transgressão de princípios fundamentais. Nesse sentido, para Schmitt, oposicionista de Kelsen, a Constituição não seria uma norma como as outras [6].
A sua teoria, datada de 1928, diz que a Constituição é produto de uma decisão, e portanto, não é mera norma banal. Carl Schmitt era decisionista, o que significa dizer que, para ele, o fundamento do Direito não são as normas em si, mas a decisão do soberano [7].
Justifica a legitimidade do juiz constitucional para ser uma "fechadura". A hipótese de anular determinada lei, não representa perigo à democracia, vez que apenas encara o espírito da Constituição. O traduz como um oráculo, pois não emite vontade, apenas aplica o Direito Natural, aquele gravado no mármore da Constituição.
Portanto, como emitem conhecimento e não vontade, os juízes constitucionais não podem ser considerados um Poder. E se não o são, não podem atentar contra a democracia. Nesse caso, a resposta trazida é a mesma da teoria positivista, de que o juiz constitucional não representa em si um atentado à democracia. Mas, sob o argumento distinto de que o juiz não guarda o direito positivo, o chamado por Eisenmann de "controlador do tráfego", mas sim a "fechadura" ou o "oráculo", pois mostra ao legislador ordinário o que é inderrogável.
Se contenta em conhecer o que é sagrado, logo, não é um Poder e tampouco um perigo à democracia – mesmo que não lhe seja concedido mandato eletivo por meio do sufrágio democrático.
Feita a breve conceituação teórica, voltemos aos fatos do último domingo. De um lado temos aqueles que destruíram parte da história da nação, destruíram patrimônios públicos tombados da capital federal, enquanto brincavam de revolucionários.
A lista de destruição de símbolos nacionais é extensa, mas algumas merecem destaque, como: a pichação da escultura A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, na praça dos três poderes; o furto de um dos únicos exemplares originais da CF de 1988; a destruição de obras de Di Cavalcanti e Athos Bulcão; os bustos de Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco deixados aos pedaços, e a destruição da pintura de José Bonifácio — respectivamente, o maior jurista da história da República e duas enormes figuras, uma para a abolição da escravatura e a outra para a Independência do Brasil.
Sim, de um lado temos o golpismo e a barbárie. Do outro, temos a civilidade, aqueles que têm como ponto comum, a liberdade para dialogar, se expressar e divergir, sem castrações ideológicas, mas com responsabilidade. Isso é democracia.
Os cacos do reacionarismo, ainda estão em Brasília. Aos que se jactam por serem favoráveis às bandeiras do liberalismo e do conservadorismo, o façam por meio de uma oposição propositiva e responsável, para que se vença (e se convença) através das ideias e não da violência e da instituição das armas.
Nessa linha, na reunião de urgência ocorrida entre o presidente, seus ministros de Estado, parlamentares, ministros do STF e governadores, a fala escorreita do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, traduz a sensação de restauração da legalidade. Citou a semelhança da situação com uma avenida, em que uns podem transitar mais à direita e outros mais à esquerda, porém todos devem cumprir as mesmas regras de trânsito, transitem por onde transitarem.
Outro ponto que merece destaque, é o de que as Forças Armadas brasileiras não sucumbiram ao canto das sereias, e não embarcaram na narrativa golpista. Em um momento de crise como este, o fato de as forças armadas sequer estarem sendo citadas, é preciso também reconhecer mérito na atuação do ministro da Defesa.
Em uma normalidade democrática, não se estar falando de Forças Armadas — principalmente para quem viveu durante 21 anos sob as botas de uma ditadura militar como o Brasil —, significa estarmos vivendo uma possibilidade de Estado Democrático de Direito.
Na mesma oportunidade, o ministro da Justiça terminou a fala dizendo "o melhor modo de enfrentamento do ódio e do terrorismo, é a calma, a ponderação, a serenidade e a união nacional. Não se combate extremismo com outro extremismo, se combate extremismo com contraste, sendo diferente dele."
Após o findar da reunião, o Brasil se debruçou sobre a cena icônica do presidente eleito, chefe de Estado e de governo, juntamente com os representantes da Suprema Corte e o procurador-geral da República, representantes das duas casas legislativas do Congresso Nacional, líderes partidários, Governadores ou seus representantes, de todas as 27 unidades da federação, indo juntos pela praça dos três poderes, ao prédio destruído do Supremo Tribunal Federal, traduzindo a fala do que tanto era caro a Ulysses Guimarães:
"A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. […] Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil."
Diante disso, os que choraram com o episódio, tiveram consigo a razão. E quem não chorou com os olhos, e é democrata, certamente, chorou com a alma.
Tristemente, o cenário não acomete apenas o Brasil, pois o extremismo hoje é um mal que assola o mundo. Por aqui, a porteira do fascismo foi aberta à luz do dia. Primeiramente, com o questionamento da democracia, através do pedido de recontagem dos votos nas eleições presidenciais de 2014, em que os derrotados não aceitaram o resultado eleitoral. Culminando no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, por pura e simples represália do ex-presidente da Câmara dos Deputados.
Não bastando, o cenário foi majorado com ondas de fake news, que permearam tanto as eleições de 2018 quanto as de 2022. Nesta última, somada ainda, a mais uma contestação do resultado das urnas, estranhamente, apenas no plano do executivo nacional, sem questionar os resultados de governadores, senadores e deputados. Assim, gestando o inflamado discurso de descrença nas instituições, negação da política e desrespeito a voz da maioria.
Conforme iniciei, os atos parodiando a invasão do Capitólio em 2021, eram mais que previsíveis, eram anunciados. Por logo, exige-se a responsabilização não apenas no âmbito criminal, mas também no âmbito cível, para a reparação dos danos ao patrimônio público e a memória nacional.
No momento em que escrevo, ainda não se sabe de forma delimitada se houveram mandantes que patrocinaram os eventos, se foram ataques devidamente orquestrados, se houve omissão por parte das forças de segurança pública e do governador do Distrito Federal — já afastado por decisão do ministro Alexandre de Moraes. Neste ponto, se impõe que aguardemos as investigações antes de tecer mais comentários.
Mesmo com o saldo extremamente negativo e com a escalada do autoritarismo no Brasil, arrisco dizer que a democracia sai fortalecida. Foi um tiro no próprio pé dos golpistas, isso porque demonstrou a união e a crença nas instituições nacionais, aglutinando forças entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, na defesa uníssona e inegociável do Estado Democrático de Direito.
[1] Art. 142, da Constituição Federal, Lei Complementar 97, de 1999, e Decreto 3897, de 2001.
[2] Art. 136, da Constituição Federal.
[3] Art. 137, da Constituição Federal.
[4] (LOPES, Ana Maria D’Ávila. Bloco de constitucionalidade e princípios constitucionais: desafios do poder judiciário. Revista Seqüência, no 59, p. 43-60, dez. 2009). Georges Vedel, que afirmou que o juiz constitucional deveria apoiar-se somente nas disposições contidas expressamente nos citados textos constitucionais, e não em conceitos vagos.
[5] (TAVARES, André Ramos. Justiça Constitucional e suas fundamentais funções. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 43 n. 171 jul./set. 2006). O Tribunal Constitucional, em realidade, mais do que aplicar, acaba por completar a Constituição, como concluiu Eisenmann (1986, p. 216). O grande perigo, nessa atuação dos tribunais constitucionais, encontra-se no assenhoreamento da Constituição e de seu significado.
[6] (SCHMITT, 1996, p. 93-94). O poder constituinte origina uma Constituição que é dada ao Estado e à sociedade. Esse processo de produção de uma Constituição decorre de uma vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando assim a existência da unidade política como um todo.
[7] Carl Schmitt sustenta que o poder constituinte é poder político "existencial: soberano é quem, de fato, toma a decisão soberana" (SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, histórias e método de trabalho. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum Editora, 2012, p. 295).